28 Março 2022
"Muito será decidido no processo de recepção e na qualidade dos curiais. Se as competências requisitadas se fundirem com a vida interior, a disponibilidade pastoral e a partilha da espiritualidade do serviço, muito do que hoje parece estar em tensão poderá ser resolvido para melhor", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 24-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Praedicate Evangelium, sobre a cúria romana e seu serviço à Igreja no mundo: este é o título da constituição apostólica que redesenha o sistema curial da Santa Sé (21 de março de 2022).
O texto é atravessado por declarações importantes, mas também por tensões subjacentes. Entre as primeiras, recordo: o primado da evangelização, a sinodalidade, a reforma da Igreja, a caridade e o serviço aos pobres.
Entre as segundas: a dialética entre burocracia e inspiração evangélica, entre instituições e criatividade, entre serviço petrino e abertura aos leigos (homens e mulheres), entre equiparação dos dicastérios e acefalia, entre cúria e bispos, entre profissionalismo e santidade.
Um sistema de relações dialéticas já evidente entre a longa espera pelo documento e a surpresa de sua publicação. Depois de alguns dias, vários curiais ainda não o tinham lido com atenção, os jornalistas formalmente reclamaram de uma apresentação que chegou tarde demais, a recepção eclesial nem parece ter começado.
Um preâmbulo, dois capítulos sobre princípios e normas, as atribuições da Secretaria de Estado, a lista dos 16 dicastérios e de seus âmbitos de atuação e, em seguida, os artigos sobre os órgãos de justiça, economia, departamentos, advogados, instituições ligadas ao Santa Sé.
A norma transitória encerra os 250 artigos que marcam o documento. Lançado há nove anos e submetido a duas amplas consultas em 2020, foi revisada pelo Conselho dos Cardeais (o chamado C9) e depois pela Congregação para a Doutrina da Fé e pelo Pontifício Conselho para os Textos Legislativos. Promulgado em 19 de março de 2022, entrará em vigor em 5 de junho.
Menciono apenas os princípios de referência que emergem com evidência. Em primeiro lugar, a evangelização e a proclamação.
O dicastério da evangelização é o primeiro da lista. A Igreja está destinada a isso, para "anunciar o Evangelho do Filho de Deus, Cristo Senhor, e com ele suscitar a escuta da fé em todos os povos". A renovação da fé passa pela conversão missionária solicitada a todos e em particular aos colaboradores do Papa.
A sinodalidade permeia o conjunto dos artigos, ao lado do primado da missão e da comunhão. "Para a cúria romana isso significa que o exercício do seu serviço deve ser sinodal" (M. Mellino). Se os três primeiros dicastérios (Evangelização, Doutrina da fé, serviço de caridade) dão o tom à constituição apostólica e a dimensão sinodal a atravessa, isso é fruto da graça e da vontade da reforma de toda a Igreja, além da cúria. Em coerência com a inspiração da Evangelii gaudium.
Tudo isso determina uma primeira tensão dialética, aquela entre estruturas anteriores e novas instituições. Se ao Dicastério para a Doutrina da Fé, mesmo nas formulações mais recentes (em duas seções), a referência é às competências precisas e já orgânicas, o novo dicastério da caridade pode valer-se das práticas da antiga esmolaria apostólica e ainda deve encontrar os espaços adequados para concretizar a proximidade do papa com os pobres, os vulneráveis e os excluídos. A identificação das competências não será imediata.
Uma segunda tensão que atravessa alguns dos dicastérios reformulados é aquela entre gestão e inovação criativa. Colocar juntas no dicastério cultura e educação, por exemplo, proporciona, por um lado, a coordenação de milhares e milhares de escolas, centenas de universidades, miríades de cursos de formação e, por outro, a criatividade imaginativa do "pátio dos gentios" ou de eventos sobre inteligência artificial.
Uma terceira tensão é entre a reconfirmação do poder papal e a abertura da colaboração com a cúria a homens não ordenados e a mulheres não consagradas. A possibilidade, além de ter já sido experimentada, foi justamente indicada como uma inovação de peso.
Ao contrário dos temores daqueles que temiam uma diminuição do papel pontifício, indica uma reconfirmação precisa do poder supremo e pleno do pontífice sobre toda a Igreja. Somente a autoridade indiscutível do papa permite os novos horizontes da cooperação dos leigos. Há quem até mesmo inverteu a imagem do papa negro (o preposto dos jesuítas) como figura do papa branco (o pontífice).
Segundo alguns, o segundo seria impulsionado pelo primeiro. A relação entre quem toma as decisões e os colaboradores leigos não tem mais os amortecedores do pertencimento clerical e poderia induzir formas de mimetismo e servilismo. Por enquanto, os casos já presentes (Paolo Ruffini no dicastério da comunicação, Nathalie Becquart na secretaria do Sínodo, Alessandra Smerilli no desenvolvimento humano integral, Raffaella Petrini na secretaria geral da Cidade do Vaticano) desfrutam de grande estima.
Também a duração dos cargos (cinco anos, que só podem ser reconfirmados uma vez), considerada por todos oportuna e necessária para evitar a formação de lobbies e dar uma maior escolha de colaboradores, poderia penalizar a construção prolongada de competências bastante valiosas.
Outra possível tensão surge da equiparação dos dicastérios. Estão todos no mesmo plano. Perde-se a tradicional função de direção da Secretaria de Estado. O seu papel de filtro e de ligação permitiu aos departamentos um mais imediato esclarecimento.
Se a temporada de card. T. Bertone, visto como um "segundo papa", tinha sido denunciada como imprópria por muitos, inclusive nos diálogos pré-conclave, o rebaixamento do perfil da secretaria, reconduzida a secretaria papal, poderia revelar-se a libertação para a ampliação dos conflitos de competência e a corrida a vias privilegiadas para entrar no "apartamento", como é indicada a residência do papa. A experiência destes anos de card. P. Parolin mostrou uma tolerância e uma robustez de orientação e de visão bastante apreciadas.
Outra dialética possível é aquela entre a cúria e os bispos. Repete-se com ênfase que o trabalho curial está a serviço tanto do papa como dos bispos, que as conferências episcopais estão entre as formas mais significativas de comunhão eclesial, que a cúria não deve decidir sobre o que compete individualmente aos bispos, mas ainda permanecem intactos os limites incómodos a que o Apostolos suos, o motu proprio de João Paulo II, os havia confinado em 1988.
E embora dando como certo que as Conferências mais frágeis se apoiam fortemente em Roma, restam laços a serem dissolvidos. Como foi feito para a revisão dos textos litúrgicos que podem hoje ser submetidos à confirmação e não a mudanças substanciais pelo dicastério.
Muito será decidido no processo de recepção e na qualidade dos curiais. Se as competências requisitadas se fundirem com a vida interior, a disponibilidade pastoral e a partilha da espiritualidade do serviço, muito do que hoje parece estar em tensão poderá ser resolvido para melhor.
“A reforma da Cúria Romana será real e possível se brotar de uma reforma interior, com a qual assumimos o paradigma da espiritualidade do concílio, expresso na antiga história do Bom Samaritano.” “Trata-se aqui de uma espiritualidade que tem sua fonte no amor de Deus que nos amou primeiro, quando ainda éramos pobres e pecadores, e que nos lembra que nosso dever é servir como Cristo os irmãos, especialmente os mais necessitados e que o rosto de Cristo se reconhece no rosto de cada ser humano, especialmente do homem e da mulher que sofrem” (n. 11).
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Reforma da cúria: notas marginais. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU