21 Março 2022
"Um sistema que confunde o império com o Reino de Deus do Evangelho, que diviniza o Estado, que é prisioneiro de uma etnia, que abandona a universalidade da salvação e que instiga ao ódio e à divisão. Não somente. Esta posição teológica anula a responsabilidade histórica do cristão e impede os dons da paresia e da profecia. A Igreja Russa, que continua sendo uma joia do cristianismo apesar de seus erros atuais, precisa de uma mudança de liderança", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 19-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe uma oposição dentro das Igrejas Ortodoxas a Kirill e sua justificativa da agressão russa contra a Ucrânia?
“Acredito que seja uma questão de tempo. Há uma opinião pública, inclusive dentro da Igreja, que está amadurecendo e que está, na minha opinião, crescendo. Mas, por enquanto, é minoritária”: assim se expressou Giovanni Guaita, padre católico convertido à ortodoxia e signatário do protesto de cerca de 300 papas ortodoxos contra a guerra na Ucrânia, em 8 de março no SIR.
Antes, houve uma clamorosa e fundamental tomada de posição do arcebispo ucraniano da Igreja pró-Rússia, Onufrio, que em 24 de fevereiro disse: "A Rússia iniciou tragicamente operações militares contra a Ucrânia e, neste momento histórico, exorto vocês a não cederem ao pânico, a serem corajosos e a manifestar amor à pátria e entre vós”.
Poucos dias depois, o sínodo de sua Igreja compartilha sua posição: "A Igreja sempre apoiou e continua apoiando a soberania do Estado e a integridade territorial da Ucrânia". Cinco bispos de dioceses ucranianas pró-Rússia suspenderam a menção a Kirill na oração eucarística.
A um deles, o metropolita Eulogio (Sumy e Akhtyka), o patriarca de Moscou responde: "É um cisma e quem o cometer responderá diante de Deus". Isso não impede o bispo pró-Rússia de Lviv de pedir um rompimento com Moscou: "Nossos padres estão sob enorme pressão... Caso se prolongar em demasia, a situação pode se tornar perigosa para nossos fiéis".
No início de março, um grupo de sacerdotes ortodoxos russos (quase 300) assinou uma petição pública pedindo um cessar-fogo imediato. Eles não querem que a Igreja assuma a responsabilidade pelas maldições das mães dos soldados que morrerão no conflito e pelo abismo que está sendo cavado entre familiares e gerações que se colocam nas duas frentes.
É preciso pedir perdão àqueles que foram feridos e humilhados e abster-nos de reprimir aqueles que no país protestam contra a guerra. Sergey Chapnin, ex-colaborador do patriarca, em um texto publicado no Wiez na Polônia, ataca Kirill, que costuma "evitar constantemente qualquer avaliação moral das decisões das autoridades políticas, apesar de sua autoridade na sociedade" e invoca o dom da profecia para a sua Igreja.
"Nos últimos anos, os bispos da Igreja Ortodoxa na Rússia, e especialmente o próprio patriarca, se preocuparam com o consenso com a ordem ideológica do Kremlin, com a cooperação com as autoridades políticas que ignoram completamente os mandamentos evangélicos, substituindo-os por 'valoriza o tradicional'". Kirill Hovorun, teólogo ortodoxo que leciona em Estocolmo, denuncia a confusão entre o projeto pastoral de Kirill e o neoimperialismo de Putin.
A pretensão de uma "civilização ortodoxa" (em paralelo ao "choque de civilizações" em voga algumas décadas atrás) justifica a relação hegeliana de Putin com a história e uma redução do cristianismo a etnia por parte de Kirill. A dimensão profética desaparece e a obediência eclesial ao novo imperador permanece. Vitaly Vlasenko, batista e secretário-geral da Aliança Evangélica na Rússia, também escreve a Putin apoiando o pedido dos responsáveis religiosos ucranianos por uma solução pacífica para o conflito.
Representantes de todas as religiões e confissões ucranianas escreveram em 24 de fevereiro: "Apoiamos as forças armadas da Ucrânia e todos os nossos defensores" e apelam aos líderes religiosos do mundo para invocar a paz.
O bispo da Geórgia na Bélgica, uma Igreja até agora ao lado de Moscou, pede o reconhecimento da Igreja autocéfala na Ucrânia (contra as expectativas russas). Um colega dele, Stefano de Tsageri, pede a Kirill que renuncie e peça desculpas. Na França, entre as três jurisdições ortodoxas, a do bispo Jean e sua Igreja de tradição russa, fala de “guerra monstruosa e insensata”, distinguindo-se das outras duas, mais inclinadas a apoiar a posição de Moscou.
As palavras do Patriarca Bartolomeu de Constantinopla são duríssimas e repetidas. A guerra é contra o Evangelho, “o mundo inteiro está contra a Rússia. Estamos entrando em um novo período da guerra fria”. Epifânio, primaz da Igreja autocéfala ucraniana, continua a comunicar o grito do povo ucraniano e admite, com base nos serviços secretos, que é um dos predestinados à morte.
Enquanto os responsáveis ortodoxos de Antioquia, República Tcheca, Canadá, Bulgária, Jerusalém e Sérvia se escondem atrás da posição russa e não falam da guerra em curso, as Igrejas da Romênia, Finlândia, Coreia e Lituânia se manifestam para condenar a ação militar russa. Na Holanda, toda uma comunidade com seus líderes passa à obediência de Constantinopla.
O primaz ortodoxo de Atenas admite: "a guerra entre povos da mesma confissão cristã diminui nossa credibilidade como cristãos" e penaliza a presença ortodoxa no mundo e entre as confissões cristãs.
Em 13 de março, torna-se público um apelo argumentado de 500 teólogos ortodoxos (principalmente de tradição helênica e operando no Ocidente) em que se denuncia a má teologia do Russky Mir (mundo russo).
"Este ensinamento sustenta que este ‘mundo russo’ tem um centro político comum (Moscou), um centro espiritual comum (Kiev, como a mãe de todas as 'Rus), uma língua comum (russo), uma Igreja comum (a Igreja Ortodoxa russa, patriarcado de Moscou) e um patriarca comum (o patriarca de Moscou), que trabalha em ‘sinfonia’ com um presidente-chefe nacional comum (Putin) para governar este mundo russo, bem como para apoiar uma espiritualidade, moralidade e cultura comuns, distintas daquelas do mundo não-russo”.
Um sistema que confunde o império com o Reino de Deus do Evangelho, que diviniza o Estado, que é prisioneiro de uma etnia, que abandona a universalidade da salvação e que instiga ao ódio e à divisão. Não somente. Esta posição teológica anula a responsabilidade histórica do cristão e impede os dons da parrésia e da profecia. A Igreja Russa, que continua sendo uma joia do cristianismo apesar de seus erros atuais, precisa de uma mudança de liderança.
Até agora nenhum bispo da Rússia se opôs expressamente à liderança de Kirill e seus colaboradores imediatos, mas há razões para acreditar que o bloqueio não permanecerá assim por muito tempo. Algum sinal pode até ser detectado até na cabine de comando.
Muitos notaram a retração, as palavras suaves e o silêncio de Hilarion Alfeyev, presidente do Departamento de Relações Exteriores do Patriarcado de Moscou. Talvez uma posição instrumental e estratégica, mas não desprovida de interesses. Em 14 de março ele profere uma extensa palestra sobre a contribuição de Kirill para a unidade da Igreja Ortodoxa, mas se limita a reconstruir com precisão as relações de Moscou com Constantinopla antes e depois do Concílio de Creta e não diz uma única palavra sobre suas posições após duas semanas de guerra na Ucrânia.
Nas últimas linhas limita-se a destacar a convergência das Igrejas ortodoxas na ajuda à Ucrânia, a denunciar a atividade sectária de Epifânio e Bartolomeu e a prever uma luta importante pela unidade da Igreja russa. Ainda mais porque, quatro dias antes, ele assistiu à explicação que Kirill ofereceu a toda a liderança de sua Igreja, reconduzindo o confronto russo-ucraniano àquele entre Rússia e Ocidente.
Um certo mal-estar também pode ser percebido na carta de resposta ao decano da faculdade de teologia de Friburgo (Suíça), M. Delgado, que o informou da suspensão de sua atividade docente: "Depois de 2014, data do início do conflito na Ucrânia do Leste, investi muito esforço e energia para alcançar a reconciliação e a paz entre os povos russo e ucraniano e ajudei muitos cristãos ucranianos a sobreviver. Quando se deseja obter resultados, geralmente não se recorre a declarações públicas, mas sim a um trabalho cotidiano difícil e exaustivo que ocorre em grande parte a portas fechadas. Um trabalho muito intensificado nos últimos dias e que continuará até o fim do conflito”.
Em seu programa semanal de televisão, ele é questionado sobre muitas questões (desde críticas de outras Igrejas Ortodoxas a casos pessoais discutidos na mídia local, de vários projetos de lei a publicações literárias), mas nunca sobre a guerra. Ele aceita a questão sobre as relações fraternas entre os povos russo e ucraniano, mas se limita a dizer que a questão está aberta. As raízes remontam ao batismo do príncipe Vladimir e a relação não pode ser destruída. "Portanto, aquelas forças que trabalham contra nossa unidade trabalham tanto contra a Igreja quanto contra Deus."
O site Orthodox Times (Grécia-Constantinopla) ironiza: "O normalmente falador Metropolita Hilarion no site do Departamento (em 12 idiomas), dez dias após o ataque russo à Ucrânia, ainda não expressou uma única palavra sobre a guerra".
E o bispo da Igreja autocéfala ucraniana, Yevstatiy de Cherniyiv, propôs que ele, Kirill e duas outras figuras importantes fossem incluídos "na lista daqueles que estão sujeitos a sanções internacionais e ucranianas, como membros ativos do regime do Kremlin, responsáveis pelo planejamento, execução e implementação da guerra contra a Ucrânia”.
Felizmente, ainda existem diálogos diretos entre os mais altos líderes religiosos. Kirill respondeu por carta ao Pe. Ioan Sauca, secretário-geral temporário do Conselho Ecumênico das Igrejas (CEI), que o convidou para atuar junto a Putin para a suspensão da guerra.
Ele lembra a perigosa aproximação da OTAN à Federação, o peso das sanções sobre a população e a missão do CEI de ser um lugar de diálogo imparcial, chamado a abster-se de qualquer ato incompatível com as relações fraternas. As duas conversas subsequentes, com o Papa Francisco e o Arcebispo da Cantuária, são mais importantes.
O papa expressou-lhe a necessidade de superar os temas da guerra justa: as guerras são sempre injustas porque quem paga é o povo de Deus. Por sua vez, Kirill destacou a importância central das conversações bilaterais entre Rússia e Ucrânia.
Semelhante é o diálogo com Justin Welby ao qual Kirill lembrou a perseguição sofrida pelos ortodoxos de Donbass.
J.-F. Colosimo sublinha a oportunidade de Kirill compensar a perda de crédito interna com conversações internacionais, para escapar à incômoda posição de "ajuda de campo de Putin". E conclui: “Ele não tem nenhuma influência real sobre Vladimir Putin. Suas posições acompanham a retórica política do líder, mas Kirill não é o ideólogo do Kremlin”.
Sua incapacidade de relatar a guerra atesta a fragilidade de seu poder.
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Críticas a Kirill e ao nicodêmico Hilarion. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU