Negacionismo do governo federal em relação aos efeitos de suas políticas vai na contramão dos alertas dos próprios liberais sobre a grave crise que estamos enfrentando
Com a pandemia de Covid-19, o xadrez político-econômico mundial tem movimentado suas peças, e o Brasil, a partir das políticas implementadas pelo atual governo, tem ficado cada vez mais distante de seu principal aliado comercial, a China. “A China é há mais de dez anos nosso principal parceiro comercial. Há superávits expressivos com esse país. Já os Estados Unidos são nosso concorrente no mercado internacional e costumamos ter déficit com eles”, pontua o professor e pesquisador Róber Iturriet Avila, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O Brasil é palco de uma disputa de poder entre China e EUA. Michel Temer marcou o alinhamento aos EUA, mas o governo Bolsonaro demarca uma total submissão à Casa Branca. Os inimigos dos EUA se tornaram imediatamente inimigos do Brasil. Recentemente, as farpas diplomáticas com a China se acumularam e não há dúvida de que o Brasil tem muito a perder com isso”, complementa.
Não obstante os desafios no cenário econômico global, o paradigma econômico que orienta as políticas adotadas no país apresenta um déficit teórico que beira o ridículo em relação à teoria econômica liberal atual. “Vivemos um tempo em que, ao contrário do que se defendeu durante décadas, apenas o Estado tem a capacidade de minimizar os efeitos deletérios da pandemia. Precisaremos de atuação do Estado como em poucas vezes na história mundial”, destaca Avila. É nesse sentido que uma autocrítica é mais do que urgente às atuais políticas do Ministério da Economia. “Já havia vozes liberais, aqui e acolá, argumentando que o déficit público aumenta a demanda agregada. E que a política fiscal tem impactos redistributivos. E que, portanto, tal política não deve se orientar pela busca do equilíbrio e sim olhar para a equidade e para a produtividade. Trata-se de uma autocrítica não trivial”, assevera.
“Antes da crise de 1929, o Estado era realmente mínimo e a prescrição para uma crise como esta seria a autorregulação. Contudo, os liberais absorveram críticas nas décadas seguintes e atualmente é um consenso entre eles de que, em uma situação como a que vivemos, o Estado deve agir com intensidade. Caso isso não ocorra, teremos uma depressão econômica histórica, quebradeira generalizada, escassez de todos os bens, desemprego muito elevado, fome, miséria, mortes majoradas e uma possibilidade real de fragmentação social e colapso. Por isso, salvo as primeiras manifestações de Paulo Guedes, não há economistas relevantes que defendam que não deve haver intervenção do Estado”, recorda o pesquisador.
Róber Iturriet Avila (Foto: Arquivo IHU)
Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística - FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul - Semapi.
IHU On-Line – Qual o papel da China no contexto econômico mundial, tanto no que toca às consequências econômicas que o país asiático enfrentou no pico da pandemia, quanto, agora, na relação com os EUA e o Brasil?
Róber Iturriet Avila – A China tem crescido na representatividade comercial de todos os países e regiões. A ascensão desse país é bastante visível, eles acumularam reservas internacionais em um volume sem precedentes, estão adquirindo empresas com tais reservas, constituem grandes multinacionais, conformam o principal parque fabril do mundo e correspondem a 20% da produção de bens.
Desde o governo George Bush, os Estados Unidos têm demonstrado incômodo com a ascensão chinesa, passando a contestar suas políticas em fóruns internacionais. Com Donald Trump, essa disputa ficou explícita e virou uma guerra comercial aberta. Mudanças na geopolítica internacional vinham ocorrendo e a crise do coronavírus pode acelerar tais alterações. No momento presente, a China é o único país que conseguiu controlar a pandemia e os Estados Unidos são os mais afetados. Existe uma possibilidade concreta de ocorrer um segundo surto na China, então, é bastante cedo para saber o que vem à frente, mas o que é possível visualizar é um aguçamento das tensões entre esses dois países.
No caso do Brasil, a China é há mais de dez anos nosso principal parceiro comercial. Há superávits expressivos com esse país. Já os Estados Unidos são nosso concorrente no mercado internacional e costumamos ter déficit com eles. Os governos de Lula e Dilma tinham uma clara aliança com a China; mesmo que o Brasil não tenha rompido com os EUA, havia um bloco com Rússia, China e Índia, que, ao final das contas, disputava algum espaço pertencente aos estadunidenses. Tais países estabeleceram o banco dos BRICS, formaram vozes de contestação à ingerência dos EUA nos organismos multilaterais.
Então, o Brasil é palco de uma disputa de poder entre China e EUA. Michel Temer marcou o alinhamento aos EUA, mas o governo Bolsonaro demarca uma total submissão à Casa Branca. Os inimigos dos EUA se tornaram imediatamente inimigos do Brasil. Recentemente, as farpas diplomáticas com a China se acumularam e não há dúvida de que o Brasil tem muito a perder com isso.
Não sabemos qual será a estratégia chinesa. O gigante asiático vinha investindo maciçamente no Brasil e no continente africano, pois tem interesse em consolidar áreas de influência política e comercial que também sejam fontes de recursos naturais. Eles têm interesses em petróleo, carvão, energia elétrica, na agropecuária, na infraestrutura, no setor financeiro, enfim, em várias áreas. Neste momento, seria uma fonte preciosa de recursos para preencher tantas carências que temos. Mas a política do governo Bolsonaro pode colocar tudo isso em xeque. Precisaríamos de mais vozes contra esses ataques despropositais ao principal parceiro comercial do Brasil, sobretudo por parte de líderes empresariais e do agronegócio, os quais têm motivos suficientes para contestar um conflito gratuito com a China, país que deve continuar se consolidando como polo de poder mundial.
IHU On-Line – Qual o preço de não se investir em capital produtivo, em termos de macroeconomia nacional? Como os países ricos sequestram o arranjo produtivo global e quais os impactos?
Róber Iturriet Avila – A economia global vive a era da financeirização, que significa não apenas a dominância financeira sobre as demais atividades, como uma lógica de valorização patrimonial que é apropriada em todos os segmentos da economia, marcando as ações dos variados agentes e da gestão macroeconômica. Essa mentalidade é majoritária no Brasil e no mundo. Seguindo essa concepção, a política econômica deve priorizar a estabilização de preços e da dívida pública. No comércio internacional, o livre-cambismo baliza essa ideologia. Nesse arranjo, os países tendem à especialização produtiva, ou seja, sua inserção internacional se dá nos setores em que há maiores vantagens comparativas, que no caso brasileiro, trata-se do setor primário.
A constituição da indústria brasileira se deu por meio do apoio estatal, seja através de política econômica, creditícia ou industrial, seja através da produção física propriamente dita. A industrialização induzida é explicada pela condição de país subdesenvolvido e, portanto, com escassez de capital e de tecnologia, o que significa menor competitividade industrial. Dessa maneira, a partir do momento em que houve uma redução da participação do Estado na produção e, sobretudo, a partir da abertura econômica, houve também redução da participação industrial no produto. Portanto, a lógica da liberalização comercial nos levou ao processo de desindustrialização.
Nas últimas décadas, o parque fabril mundial se deslocou para a China e para seus países satélites, região essa que ganha representatividade econômica e política cada vez maior, com reação de outros países, conforme destacado acima.
IHU On-Line – No contexto brasileiro, em termos de projeção e execução macroeconômica, temos tido recessão técnica desde 2015. O que explicou a estagnação anteriormente à pandemia e qual o cenário para 2020?
Róber Iturriet Avila – Em primeiro lugar, é preciso ter referência de que os ciclos do capitalismo são naturais, há fases de expansão e de retração. A crise que inicia em 2015 tem múltiplas determinações, que passam pela 1) variação das relações de preços internacionais que ocorreram naquele momento, a redução do preço das commodities, fato que se repete agora em 2020; 2) houve uma crise política que instalou-se no país; 3) a destruição de diversos setores desencadeados pela operação Lava Jato (naval, petrolífero, construção civil, agroindústria, metalmecânico etc.); e também 4) a aposta de que era necessário reduzir os gastos públicos e os salários no Brasil.
Sobre esse último ponto, cabe destacar que acreditou-se que a redução de gastos públicos e de salários seria capaz de viabilizar a dinamização da atividade econômica. Isso não ocorreu. A justificativa dos liberais é sempre a de que as reformas não foram fortes o suficiente, mas, na realidade, o Estado é o principal agente da economia e sua retração afeta o nível de produção com intensidade. Além disso, a flexibilização da legislação trabalhista compromete o nível salarial e, portanto, o consumo das famílias. Esse quadro nos trouxe uma festejada “recuperação”, que nunca se concretizou: o nível de renda per capita está abaixo de 2014 e não retomará tão cedo. O desemprego está elevado e há uma insuficiência de demanda que se repete ano após ano.
A conjuntura já não era favorável e a pandemia agravou demais o quadro. Ainda é cedo para saber o que nos espera até o final do ano, porque há múltiplas variáveis em movimento. O tempo de distanciamento social, a evolução da curva epidemiológica e as ações dos governos afetarão a cena vindoura. Contudo, é possível prever uma crise de grandes proporções, possivelmente a maior desde 1929. Haverá elevação do desemprego, falência de muitas empresas, redução da receita fiscal dos governos, elevação da miséria, redução de exportações, rebaixamento geral do nível de renda. A restrição de produtos básicos e o caos social não podem ser descartados. A conjuntura é de fato sombria e à medida que os governos tiverem ciência disso, poderão lançar mão de políticas capazes de mitigar esses efeitos, vale dizer, é possível evitar uma nova depressão histórica.
IHU On-Line – Em seu artigo intitulado “A pandemia cobra a autocrítica dos liberais”, o senhor defende uma autocrítica neoliberal. Em que sentido? Por quê?
Róber Iturriet Avila – A crise de 2008/2009 mudou as estruturas do campo econômico convencional. Uma série de estudos passou a rever as concepções antigas. Mesmo textos publicados pelo Fundo Monetário Internacional - FMI passaram a defender mudanças na macroeconomia. Antes disso, a visão hegemônica era a de que a política fiscal deveria buscar o equilíbrio e a política monetária ficaria encarregada de ações contracíclicas. Contudo, compreendia-se que uma expansão monetária teria impactos inflacionários. No período da crise de 2008/2009, políticas monetárias fortemente expansionistas foram utilizadas, injetando mais de US$ 15 trilhões na economia. A esperada elevação de preços não se verificou. Nesta medida, uma série de economistas passou a argumentar que os efeitos multiplicadores dos gastos públicos são consideráveis, e que ajustes fiscais podem ter efeitos deletérios sobre o nível de endividamento.
Outros economistas deste campo têm abandonado ideias que foram ensinadas durante décadas, como a Teoria Quantitativa da Moeda. Há uma nova concepção de que o Banco Central não controla a quantidade de reservas bancárias, assim, a política monetária se dá pelo controle da taxa de juros e não da quantidade de moeda em circulação.
O Quantitative Easing deste período provou a todos que o excesso de reservas não provoca a expansão do crédito e da demanda agregada. Então, houve uma autocrítica de alguns autores, os quais passaram a defender que, ao contrário do que se acreditava, a moeda não provoca inflação, mas pode restringir uma crise de grandes proporções. Sem, contudo, ampliar o consumo e o investimento, necessariamente.
Assim, essa crise mudou o paradigma neoliberal. As principais instituições que defendem este ideário passaram a reconhecer as falhas teóricas e a realidade objetiva de que a desigualdade estava aumentando acima do desejável, sem trazer impactos sobre o crescimento econômico, conforme concebido. Mais do que isso, outras pautas ganharam força em instituições como o FMI: estabelecimento de uma renda mínima universal, gastos em saúde e em educação, absorção de pautas ambientais etc.
A crise que vivemos tem o potencial de colocar abaixo mais um pilar fundamental da ideologia liberal: o orçamento equilibrado. Vivemos um tempo em que, ao contrário do que se defendeu durante décadas, apenas o Estado tem a capacidade de minimizar os efeitos deletérios da pandemia. Precisaremos de atuação do Estado como em poucas vezes na história mundial.
Já havia vozes liberais, aqui e acolá, argumentando que o déficit público aumenta a demanda agregada. E que a política fiscal tem impactos redistributivos. E que, portanto, tal política não deve se orientar pela busca do equilíbrio e sim olhar para a equidade e para a produtividade. Trata-se de uma autocrítica não trivial.
A concepção antiga exige cortes de gastos constantes, uma contínua restrição de liquidez e seus resultados são evidentes para quem está disposto a observar evidências empíricas: recessão, desemprego e crises periódicas.
Infelizmente, no Brasil, nossos liberais, aparentemente, não têm acompanhado essas ideias e não chegaram a este nível de autocrítica. O ministro da Economia, Paulo Guedes, não está sequer na modernização desta concepção teórica da década de 1990, ele possui a mentalidade da década de 1970, mais defasada ainda. Ainda em solo doméstico, após cinco anos consecutivos de implementação da agenda liberal, os resultados na atividade econômica foram sucessivamente frustrantes. A cada ano, prometia-se um crescimento de 3% e ao final é entregue algo em redor de 1%. O fracasso é óbvio, passou da hora de os liberais admitirem. A crise atual traz a oportunidade de nossos liberais se atualizarem e se livrarem de antigas ideias.
IHU On-Line – De que ordem são as reservas internacionais brasileiras e qual seu papel no atual contexto? O que se sabe hoje sobre o que existe nos cofres do Banco Central?
Róber Iturriet Avila – Nos primeiros anos do século XXI, o Brasil acumulou um volume expressivo de reservas internacionais, algo inédito na nossa história. Isso ocorreu sobretudo entre 2006 e 2012. Elas foram originadas das exportações e do influxo de capitais produtivos e financeiros. O Brasil tem um histórico secular de escassez de divisas externas, que nos trouxe inúmeros problemas, desde restrição à capacidade de importar, passando por inflação até a imposição de política econômica desempregadora e acúmulo de dívida externa.
Uma das piores situações em que um país pode se colocar é em default, ou seja, calote da dívida externa, evento que ocorreu várias vezes na nossa história, devido à escassez de moeda externa. Um país quebra quando ele não consegue liquidar suas contas em moeda estrangeira. Portanto, seria um tremendo erro vender reservas internacionais neste momento em que há fuga de capitais especulativos e a iminência de uma grave crise. As reservas estão em moedas que não são emitidas e é um equívoco deixá-las escapar. Lamentavelmente, há quem defenda a sua venda para honrar compromissos em Reais, a moeda que o Brasil emite. Paulo Guedes está entre as vozes que defendem esse absurdo. Tal caminho pode aumentar sensivelmente a vulnerabilidade externa em um momento grave, um erro primário, uma ação suicida.
IHU On-Line – Voltando ao contexto mundial, quais foram as medidas econômicas tomadas nos países atingidos pela pandemia em contraste com as políticas adotadas pelo Brasil?
Róber Iturriet Avila – A crise em tela é de grandes proporções e a maioria dos países agiu rapidamente para restringir seus impactos. Os efeitos sobre a atividade econômica ainda não são plenamente claros, mas sabe-se que serão muito graves. As principais medidas foram: expansão monetária e creditícia a taxas de juros baixas, aumento das linhas de assistência dos Bancos Centrais, aquisição de títulos públicos por parte das autoridades monetárias, compra ilimitada de dívida privada, adiamento de dívidas, ampliação de políticas de proteção de pessoas mais vulneráveis, flexibilização de regras fiscais, proteção de empresas em dificuldades, pagamento de salários de empresas privadas, dilatação e postergação de serviços de utilidade pública, estatização de hospitais privados, reconversão de indústrias para a produção de bens vinculados à área da saúde, contratação temporária de profissionais de saúde etc.
No Brasil, a primeira reação do ministro Paulo Guedes foi afirmar que a reforma administrativa e a PEC emergencial seriam capazes de fazer a economia retomar. Ou seja, a continuidade das reformas de ajuste fiscal seria suficiente. Claramente, o governo não havia entendido o que estava acontecendo. Posteriormente, houve um anúncio de medidas fiscais que remanejavam rubricas e antecipavam despesas. Contudo, a pressão política da sociedade, a organização dos governadores e do Congresso Nacional, que assumiram grande protagonismo nessas ações, foi levando o governo a adotar medidas semelhantes às que outros países estavam pondo em prática: renda básica temporária a informais, repasse de recursos novos para a saúde, políticas de crédito para pequenas empresas, ampliação de garantias a bancos comerciais, atuação mais consistente do Banco Central. A principal diferença é que em muitos países o governo bancará o salário dos trabalhadores privados e aqui esse pagamento ficou limitado à parcela que seria do seguro-desemprego e as empresas poderão reduzir os salários em até 70%, o que gerará impactos sobre a demanda agregada e, portanto, sobre a crise.
IHU On-Line – Em linhas gerais, o modelo liberal sustenta a participação mínima do Estado, contudo em momentos de crise o Estado sempre aparece para “salvar” a economia liberal, aportando recursos na iniciativa privada. Duas questões: Como compreender essa dimensão da política econômica liberal que, no fundo, é dependente do Estado? Quais seriam as consequências se o Estado não interviesse?
Róber Iturriet Avila – Sempre falo em aula que existem muitos liberalismos e acho que essa referência é importante. Além disso, o “liberalismo” mudou muito ao longo do tempo. Antes da crise de 1929, o Estado era realmente mínimo e a prescrição para uma crise como esta seria a autorregulação. Contudo, os liberais absorveram críticas nas décadas seguintes e atualmente é um consenso entre eles de que, em uma situação como a que vivemos, o Estado deve agir com intensidade. Caso isso não ocorra, teremos uma depressão econômica histórica, quebradeira generalizada, escassez de todos os bens, desemprego muito elevado, fome, miséria, mortes majoradas e uma possibilidade real de fragmentação social e colapso. Por isso, salvo as primeiras manifestações de Paulo Guedes, não há economistas relevantes que defendam que não deve haver intervenção do Estado.
Adam Smith defendia atuação do Estado em algumas situações, inclusive de concessão de monopólios temporários e proteção da indústria nacional em momentos específicos. Léon Walras, outro ilustre liberal, argumenta que o laissez-faire é um ideal que nem sempre se observa na realidade objetiva. Para ele, há lugar para o Estado para intervir, inclusive para organizar a produção. Milton Friedman é outro autor que deixa claro que o Estado tem sim um papel relevante, inclusive para a produção para quando o mercado falha. Friedman afirma que um liberal consistente não é um anarquista.
Infelizmente, no Brasil e no debate público, a percepção sobre o liberalismo é limitada. Na internet difundiram-se ideias de liberais extremados, com noções pouco razoáveis, mas que possuem patrocínio de bilionários, atingindo grande enraizamento entre os jovens. Dessa forma, ouso dizer que o liberalismo no Brasil é pouco consistente e muito atrasado. Gostaria de deixar a recomendação de dois áudios que gravei sobre a transformação nas teorias de Estado do século XVI ao XIX e também um sobre o século XX.
IHU On-Line – Será possível que os liberais admitirão a culpa dos fracassos econômicos de suas políticas diante da Covid-19, classificada como “gripezinha”, ou apresentarão um bode expiatório?
Róber Iturriet Avila – As primeiras medidas sugeridas por Paulo Guedes são desconectadas da realidade e muitos liberais apontaram que não era hora de o Estado poupar, ao contrário. Contudo, no último trimestre de 2019 e nos dois primeiros meses de 2020, antes da pandemia, os principais indicadores estavam vindo ruins, sinalizando que a “recuperação” não havia chegado mais uma vez. Neste ponto em específico, estamos carentes de autocrítica. Toda a agenda liberal tem sido implementada: corte de gastos, privatizações, flexibilização do mercado de trabalho, reforma da previdência, governos pró-mercado, desburocratização para empresas etc. Mas os resultados em termos de empregos e de crescimento econômico não vieram, sendo que tais medidas começaram em 2015 e foram ficando cada vez mais intensas após a queda de Dilma Rousseff. Passou da hora de o resultado ser cobrado. Além disso, houve uma desmobilização de investimentos públicos em saúde, na ciência, em pesquisa, na educação e retração nos bancos públicos, os quais agora se mostram fundamentais para reduzir os impactos da crise.
Outro ponto em que precisamos de autocrítica é a constatação de que a política pró-mercado não trouxe capital externo ao Brasil. Ao contrário, o ano de 2019 marcou a maior saída de capitais desde 1982, mas este ano de 2020 deve superar essa péssima marca.
Há ainda frases de efeito que foram utilizadas no debate brasileiro como “o Brasil está quebrado”, “o dinheiro acabou” e o “PIB público”. Tais categorias ofendem a inteligência e desrespeitam o conhecimento acumulado pela Ciência Econômica.
De toda forma, gostaria de fazer uma demarcação relevante: desconheço liberais que estejam com o discurso negacionista sobre os efeitos da crise que viveremos. O governo atual é formado majoritariamente por conservadores e os liberais são minoritários. Dentre os conservadores, há aqueles com uma mentalidade pré-iluminista, que se diferenciam bastante do liberalismo, mesmo que, por vezes, estejam em aliança. Esses conservadores poderão se valer da narrativa de que a crise econômica foi gerada pelas políticas de isolamento social e pela restrição de atividades produtivas. A toda sorte, a provável perda de muitas vidas deve deixar esse discurso sem base.