07 Abril 2020
Marina Garcés é doutora em Filosofia e professora da Universidade Aberta da Catalunha. Avalia que agora estamos assistindo, ao mesmo tempo, duas realidades contraditórias: redes de apoio mútuo e policiais de sacada. Diante disso, considera que caso vença o medo e a suspeita entre vizinhos, daremos um passo a mais para uma sociedade autoritária. Também destaca que um dos grandes beneficiados por esta pandemia será o controle social, justificado por uma maior segurança para os cidadãos diante dos perigos externos.
A entrevista é de Èlia Pons, publicada por Catalunya Plural, 02-04-2020. A tradução é do Cepat.
Acredita que a crise da COVID-19 mostrou a fragilidade do sistema?
O que a crise da COVID-19 nos mostra de maneira muito crua é que o capitalismo global, que parece um sistema muito poderoso, baseia-se em grandes camadas de precariedade econômica, social, material, sanitária... É uma precariedade individual e estrutural, porque também afeta o estado em que se encontram os serviços de atenção pública em diferentes países do mundo. É um sistema baseado na atividade e no crescimento, mas quando há uma patologia não consegue deter, nem cuidar das vidas que cotidianamente espolia e explora. Tampouco daquelas que deixou à margem, como as pessoas idosas. Mais que a fragilidade do sistema, o que nos mostra é a desigualdade e a violência social sobre a qual nossa normalidade funciona.
A alerta de saúde manifestou a vulnerabilidade humana?
Fico surpresa que haja tantas pessoas repetindo esta frase, de filósofos a Antonio Banderas. Pergunto-me que vidas tinham e quais realidades conhecem aqueles que a afirmam. Não têm pessoas idosas dependentes em suas famílias? Não convivem com pessoas deficientes ou com transtornos mentais? Não conhecem a realidade altamente vulnerável de muitos bairros e territórios de nossas cidades? Não sofrem o impacto dos cânceres e outras patologias em razão de fatores ambientais e sociais? A vulnerabilidade e a interdependência já estavam, todos os dias, como realidade cotidiana para a maioria. O que nos impedia de as ver e pensar a partir delas?
Seres sociais como nós, humanos, podemos viver nesta situação de confinamento muito tempo?
Nós, humanos, nos adaptamos a tudo se temos medo, e vivemos coisas muito piores. Guerras, perseguições, fechamentos massivos. Há setores da população mundial que sofrem assim todos os dias, nos campos de refugiados, países em guerra, guetos, coletivos encarcerados... e a história também nos oferece exemplos constantes. A sociabilidade confinada não é nenhuma novidade. Sua dimensão global e generalizada e o fato de que afete aqueles que normalmente temos mais direitos e acesso à mobilidade, sim.
Durante os últimos dias, vimos que foram criados muitos movimentos de cooperação coletiva entre vizinhos. Mas, por outro lado, este distanciamento social pode fazer com que nos tornemos mais individualistas?
Estamos vendo as duas coisas: redes de apoio mútuo e policiais de sacada. Moradores que ajudam e vizinhos que se deletam. As atuais condições de vida tiram o melhor e o pior que podemos chegar a ser. Não é preciso apenas cuidar, pois, de cada um de nós e da saúde dos nossos. Penso que é muito importante que cuidemos do ambiente geral em que estamos vivendo esta experiência, as representações que damos, os imaginários que sairão do fato de ter sido confinados. Caso vença o medo e a suspeita entre vizinhos, daremos um passo a mais para uma sociedade autoritária.
E as crianças, como o confinamento pode afetá-las? Como voltarão à normalidade?
Vou dizer claramente: não entendo como os cachorros podem sair, mas não as crianças. Entendo que os pais e mães são os primeiros interessados em seu cuidado e, portanto, de não as expor a riscos desnecessários. Penso que o confinamento sobre as crianças é muito drástico, tendo em conta que será longo e que muitos meninos e meninas vivem em moradias precárias, em lugares escuros e muito estreitos, sem acesso a recursos culturais, nem sequer a um raio de sol. Alegro-me de que existam vozes questionando esta situação, que pode ter um impacto emocional e físico sobre muitas delas. Existem aquelas que estão vivendo pequenas “férias” com seus país... Existem as que estão metidas em verdadeiros infernos. Como se reencontrarão? Penso que antes é preciso se perguntar como fazer da experiência do confinamento uma experiência compartilhada, desde agora.
Acredita que os governos populistas, que fecham fronteiras e pregam a ideia de ‘primeiro os de casa’, sairão reforçados?
Eu, infelizmente, penso que sim, sairão reforçados os populismos e também as respostas classistas e excludentes de todo os tipos. Esta crise se acrescenta às anteriores, como a terrorista e econômica, e às posteriores, como a climática. São crises que vão fragilizando o tecido social e distanciando os grupos humanos e as classes sociais em sua relação com as expectativas e os futuros compartilhados. Diante desta crise dos futuros compartilhados, é fácil que cada um se proteja por trás de seus privilégios e perceba os outros como uma ameaça. Não basta, pois, um plano de choque social para aliviar os danos desta crise, mas um trabalho crítico que nos ajude a perceber coletivamente como chegamos até aqui e como queremos sair como sociedade.
Acredita que teremos confiança nas instituições para nos proteger ou não confiaremos mais?
Isso deve ir por países, mas me parece que no nosso [Espanha] a confiança nas instituições sempre foi relativa, o que não me parece ruim, porque nem sempre estamos nas melhores mãos. Também depende do que chamamos de instituições. Uma coisa são os serviços públicos como a saúde e a educação, a assistência social... que, em geral, são bem avaliados, e são muito apreciados pelo conjunto da sociedade, exceto por aqueles que não os necessitam e se ocupam de menosprezá-los. Outra coisa são as que chamamos de instituições políticas e que já há tempo mostram sua insuficiência no momento de dar respostas à altura dos problemas de nosso tempo.
Pode acontecer que esta crise faça aumentar o controle social sobre a população? Pode ser que cheguemos a normalizar determinadas formas de controle social com “a desculpa” do vírus?
Sim, penso que o controle social será um dos grandes ganhadores desta pandemia. Se em troca de uma geolocalização, de um QR ou sejam dos dados que for nos deixam voltar a sair de casa, quem não estaria disposto a ceder esses dados? A liberdade de movimentos, ainda que seja de movimentos vigiados, está em nossa percepção melhor avaliada que muitas outras liberdades.
Os controles telemáticos do telefone, por exemplo, das mobilidades, com a desculpa da segurança frente às doenças, aumentarão até extremos perigosos?
Já há tempo estamos fornecendo dados sem controle. É muito difícil saber como e quando fazemos isso, porque não é diretamente perceptível. Ao contrário. Ocorre por meio de dispositivos e aplicativos de uso individual, que parecem multiplicar nossa independência, nossas comunicações, nossos mundos privados. Inclusive, nossos segredos. Contudo, o que fazem é contribuir para privatizar nossas experiências comuns e seu rendimento econômico, político e ideológico... nas mãos de alguns.
O confinamento não é igual para todos e esta crise também fez aflorar a diferença de classes.
O classismo do confinamento me parece uma realidade sinistra. Disse isso em um programa de televisão e recebi todos os tipos de insultos, como se estivesse negando que o vírus pode matar pessoas influentes ou de classes altas. Claro que pode e mata. Mas falamos do confinamento, da gestão da crise, das consequências trabalhistas e sociais, dos metros quadrados da moradia da rainha Letícia ou das de seus súditos... Falamos de quem tem que sair para realizar determinados trabalhos de limpeza e de cuidados, por exemplo. Falamos dos autônomos mais precários, falamos dos pequenos negócios, falamos da cultura que parece muito glamorosa, mas que há anos acumula dívidas e precariedade... Falamos de migrantes que ficaram na fronteira ou com os trâmites pela metade... Falamos de tudo isso. Pergunto-me pelo que acontecerá.
Que mundo podemos imaginar para além de um mundo apocalíptico?
Os relatos apocalípticos são ideológicos, estejam nas mãos da religião, da política ou dos meios de comunicação. Quem possa colocar um ponto final em nossas existências é que está exercendo seu poder. Portanto, os relatos apocalípticos devem ser desmascarados e contestados: a quem interessam? Quem sai beneficiado? Para respondê-los não se deve autoenganar e dizer que, agora, sim, com esta crise aprenderemos o verdadeiro valor da vida. Se fosse assim, já teríamos aprendido em guerras ou crises anteriores. O valor da vida é lutar todos os dias, e são as pessoas anônimas mais castigadas que nunca deixam de fazer isso.
Como indivíduos e como sociedade, como poderemos nos recuperar de tudo isto?
Recuperar-nos é continuar vivendo sem reproduzir o que nos levou até aqui. Saberemos fazer isso? Ou queremos esquecer bruscamente tudo o que sofremos? Não devemos dramatizar, mas tampouco esquecer. Caso contrário, não teremos aprendido nada.
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“O controle social será um dos grandes ganhadores da pandemia”. Entrevista com Marina Garcés - Instituto Humanitas Unisinos - IHU