29 Março 2017
Milão não se esqueceu de seu arcebispo cardeal Carlo Maria Martini, desaparecido em 2012 e que este ano teria chegado aos 90 anos de idade. Nas últimas semanas tem sido lembrado por jornais e televisão, com artigos, eventos, concertos, leituras, exposições, livros, até um belíssimo filme de Ermanno Olmi, Vedete, sono uno di voi (Vejam, sou um de vocês, em trad. livre). O risco das celebrações é de transformar o celebrado, mais de que em um santo, em um santinho, aplaudido por todos e criticado por ninguém. Martini, biblista e pastor, Arcebispo de Milão de 1979 a 2002, não foi assim.
A reportagem é de Gianni Barbacetto, publicada por Il Fatto Quotidiano, 25 -03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sua força era obrigar todos os seus interlocutores, cristãos ou laicos, a refletir e se envolver. Morto, Martini parece agradar a todos. No entanto, como vivo, muitos, dentro e fora da Igreja, se consideravam seus inimigos declarados. Para dissipar as névoas da hipocrisia, o Fatto Quotidiano recorda algumas passagens de sua vida e de seu magistério, reconstruindo uma imagem do cardeal, parcial, mas certamente fiel à verdade.
Era 1991, quando o Partido Democrata Cristão, que ainda era a base da Primeira República, decidiu celebrar em Milão uma convenção para reciclar o partido e salvá-lo da crise que já se pressentia. Os líderes da DC, representados por Arnaldo Forlani e Amintore Fanfani foram naquela ocasião visitar o arcebispo. Martini, que normalmente não recebia políticos, atendeu-os em 27 de novembro de 1991, no arcebispado. Ouviu-os em silêncio, e depois citou uma passagem do Evangelho de Lucas, a parábola da "figueira estéril": "Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e, vindo procurar fruto nela, não achou. Então disse ao viticultor: 'Há três anos venho procurar fruto nesta figueira, e não acho: podes cortá-la; para que ela ainda está ocupando inutilmente a terra?’ Ele, porém, respondeu: ‘Senhor, deixa-a, ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar frutos bem está; se não, mandarás cortá-la’".
Era um ultimato aos democratas cristãos e à política. O ambiente tornou-se gélido. Uma testemunha conta que Forlani e os outros se olharam consternados. O ultimato não foi entendido, ou talvez fosse tarde demais: três meses mais tarde, em fevereiro de 1992, teve início a investigação do escândalo da Tangentopoli (na operação Mãos Limpas) que desencadeou a implosão do sistema de partidos. Na Milão das Mãos Limpas, Martini permaneceu como a única autoridade moral reconhecida na cidade.
Quanto à DC, figueira estéril, foi "cortada" em 1993.
Em 1995, Silvio Berlusconi chegou para ocupar o cenário político italiano. Para o tradicional "discurso à cidade", por ocasião da festa de Santo Ambrósio, padroeiro de Milão, Martini escolheu como tema uma frase do Eclesiastes "Há um tempo de estar calado e um tempo de falar". Contra "a afasia da Igreja, como se não soubesse mais o que dizer", o cardeal afirmou que a Igreja precisava dizer claramente sobre o que devia falar e sobre o que devia calar. "Não deve se envolver com nenhum posicionamento político ou partidário","deixando aos cristãos laicos a tarefa de se expressar de acordo com sua consciência e competência. No entanto, a Igreja não deve apenas calar, mas também deve falar": "Sobre os princípios éticos que regem as escolhas políticas". Porque "não é a Igreja que está em perigo; é a própria natureza da política e, portanto, da democracia e, em última análise, do costume social que está na base da democracia".
Martini trouxe exemplos concretos de fenômenos sobre os quais não é possível silenciar:
1. Uma "atitude que contesta o papel do Estado na tutela dos mais fracos e, por fim, compromete o próprio pacto social que está na base da Constituição, para o benefício de acordos contratuais que mais facilmente curvam-se às conveniências e às maiorias contingenciais".
2. Uma "lógica decisória que não respeita as exigências do paciente amadurecimento do consenso, que tenta extorqui-lo por plebiscitos generalizados ou ilude-se de operar com o levantamento dos desejos, simplificando a complexidade da política, dos seus tempos e das suas mediações".
3. O "liberalismo utilitarista que não ordena as expectativas e as necessidades de acordo com uma hierarquia de valores, mas elege como seu fim o lucro e a eficiência ou a competitividade, subordinando a ele as razões de solidariedade".
4. A "política do espetáculo, do confronto verbal acompanhado também de ameaças; uma política concebida como lugar de sucesso e palco de personagens vencedoras, que exigem outorgas para governar não com base em programas avaliados e executáveis, mas com base em promessas ou perspectivas genéricas".
Como não ler nesses pontos uma crítica a Berlusconi e ao berlusconismo? Martini concluiu: "Não é este, portanto, um tempo de indiferença, de silêncio, e nem de alheia neutralidade ou tranquila equidistância. Não basta dizer que não estou de um lado e nem do outro, para se sentir bem; não é lícito pensar que seria possível escolher indiferentemente, no momento oportuno, um ou o outro lado dependendo das vantagens que são oferecidas. Este é um momento em que é preciso ajudar a discernir a qualidade moral inscrita não apenas nas escolhas políticas individuais, mas também na maneira geral como são tomadas e na concepção de ação política que elas implicam. Não está em jogo a liberdade da Igreja, está em jogo a liberdade do homem; não está em jogo o futuro da Igreja, está em jogo o futuro da democracia".
Martini foi o bispo da crise das grandes fábricas milanesas. Do desfecho dos Anos de Chumbo: foi para ele que alguns terroristas entregaram suas armas. Foi o bispo das visitas à prisão de San Vittore. Foi o pastor da "cátedra dos incrédulos", criada para "colocar na cátedra também os não-crentes e aprender a ouvi-los": estiveram ali Massimo Cacciari, Gustavo Zagrebelsky, Paolo De Benedetti e Stefano Levi Della Torre. "Esses encontros ajudaram a ampliar minha visão e aprender a ouvir sem preconceitos os argumentos de cada um".
Martini tinha ideias radicais sobre a pobreza: "Talvez seja necessário esperar por uma invasão de pessoas vindas de outras culturas, que acabem destruindo e de alguma forma façam tabula rasa de todo o nosso modo de vida".
Acolhedor nos confrontos dos separados e divorciados: "Vale o princípio básico de que o casamento é único e indissolúvel. Mas, quando estamos diante de náufragos, é necessário fazer todo o possível para que eles não se afoguem". E dos homossexuais: " Para cada indivíduo, na prática, é preciso saber ouvir e entender bem a situação".
O Padre Silvano Fausti, biblista e teólogo, jesuíta como Martini, foi seu confessor e guia espiritual, o homem mais próximo do cardeal, o depositário de seus segredos. Foi Fausti que contou sobre as relações entre Carlo Maria Martini e Joseph Ratzinger. Os dois se enfrentaram na eleição para papa, no Conclave de 2005. O primeiro era apoiado pela frente dos cardeais que poderíamos chamar de "progressistas", o segundo pelos "conservadores". "Eram os dois que tinham mais votos", conta Fausti, "e Martini um pouco mais". Nenhum dos dois, no entanto, conseguiu prevalecer sobre o outro. Então entrou em ação, prossegue Fausti, uma manobra para "derrubar os dois": "truques sujos" para eliminar ambos e eleger como papa "um da Cúria, muito dissimulado".
"Descoberto o truque, à noite Martini foi visitar Ratzinger e disse: aceite amanhã se tornar Papa com os meus votos, aceite você que está na Cúria há trinta anos, é inteligente e honesto. Se você conseguir reformar a Cúria, ótimo, se não, saia de lá".
E assim aconteceu: Ratzinger tornou-se o Papa Bento XVI e tentou reformar a Cúria Romana. Imediatamente fez um discurso, relata Fausti, "que denunciava as manobras sujas e deixou ruborizados muitos cardeais". Em sua homilia no início do pontificado, em 24 de abril de 2005, disse: "Orem por mim, para que eu não fuja, por medo, diante dos lobos".
Padre Fausti recorda também o gesto feito por Ratzinger em 28 de Abril de 2009, na cidade de Aquila devastada pelo terremoto: estava programada apenas uma parada em frente à basílica de Collemaggio; em vez disso, Bento XVI atravessou o portal da basílica parcialmente destruída, entre o pânico da comitiva e dos presentes, e foi depositar o seu pálio papal sobre o túmulo de Celestino V, o papa da ‘grande recusa’.
"Estavam sempre tentando colocá-los um contra o outro para inventar notícias", disse Fausti, porém Martini e Ratzinger, tão diferentes, respeitavam-se e estimavam-se mutuamente. O Papa enfrentou ataques internos, conflitos com a Cúria, venenos, e até o Vatileaks. O último abraço entre os dois foi em 02 de junho de 2012, quando o Papa Ratzinger esteve em Milão para o Encontro Mundial das Famílias. Martini, doente há algum tempo, praticamente sem voz, encontrou o papa em um salão da arquidiocese e sussurrou-lhe: "Está na hora", conta o Padre Fausti, "aqui não se consegue fazer nada mesmo. A Cúria não se reforma, só te resta desistir".
Bento XVI havia retornado exausto de uma viagem a Cuba, no final de março. No início do verão começou a falar em renunciar com seus colaboradores mais próximos, que tentaram dissuadi-lo. Em dezembro convocou o Consistório nomeando seis cardeais - nem mesmo um europeu - para "reequilibrar" o Colégio de Cardeais responsável pela eleição do papa.
Enquanto isso, Martini tinha morrido em 31 de agosto de 2012. Em 11 de Fevereiro de 2013, Ratzinger cumpriu o compromisso assumido com Martini no Conclave e comunicou sua renúncia ao pontificado. Um mês depois, ocorreu a eleição de Jorge Mario Bergoglio. Padre Fausti conclui: "Quando eu vi Francisco bispo de Roma cantei o Nunc dimittis, finalmente! Eu estive esperando desde os dias de Gregório Magno um Papa assim...".
Em seu último livro, Il vescovo (‘O bispo’, Ed. Paulus), publicado pela Rosenberg & Seller, Martini explica o que é um bispo, não só do ponto de vista teológico e eclesial, mas, também, prático. Ele deixou a direção da maior diocese do mundo em 2002, retirando-se primeiro em Jerusalém e, em seguida, doente, na cidade de Gallarate, na Itália.
O livro saiu em 2011, ano em que na maior diocese do mundo ocorreu uma mudança de
Direção: saiu o Cardeal Dionigi Tettamanzi, que conduziu a diocese de Milão depois de Martini, e o Papa precisou escolher um sucessor. No capítulo "Como alguém se torna bispo?" Martini escreveu: "Existiam no passado, e ainda hoje, nos seminários e nas outras áreas da diocese, pessoas sobre as quais se dizia: “Estudam para bispos”. São jovens um tanto ambiciosos, que não perdem a ocasião de se fazerem notar tanto pelos superiores locais como pelos de Roma. De fato, inclusive para apaziguar suas almas, quando alcançam a meta desejada, cobrem com gestos de esquecimento tudo o que foi feito para atingir a meta".
É uma outra figura de bispo que Martini tinha em mente. Um homem de oração e de estudo. Mas "um Bispo deve ser criativo e até mesmo ousado". Tanto é assim que, como lema escolheu uma frase de São Gregório Magno: "Pro veritate adversa diligere". "Pela verdade, amo as adversidades", ou seja, o bispo também precisa estar disposto a enfrentar as situações desfavoráveis. "Foi útil para mim em muitas circunstâncias”, escreveu Martini: "quando eu sentia que as críticas adensavam-se em torno de algumas das minhas escolhas pastorais e parecia-me mais correto não desistir".
No livro também tratou do problema da sucessão. "Quando chegou a hora de nomear meu sucessor", escreveu Martini, "convoquei o conselho pastoral e presbiteral em sessão conjunta para que eles discutissem, na minha ausência, sobre as qualidades esperadas do novo bispo. Este texto foi apresentado à Congregação dos Bispos e poderia ter sido de alguma utilidade para a escolha do candidato". Foi escolhido Tettamanzi, que dirigiu a diocese em continuidade com o magistério de Martini, mesmo sem ter seu carisma. Não foi assim depois de Tettamanzi, quando o Papa Bento XIV escolheu, rompendo com a tradição ambrosiana, Angelo Scola, oriundo da CL (Fraternidade de Comunhão e Libertação) e que o predecessor de Martini, Giovanni Colombo, nem sequer havia aceitado ordenar padre.
Prevaleceram outros percursos, pesou uma carta enviada ao Papa por Julián Carrón, o diretor da Comunhão e Libertação, que propôs o nome de Scola após ter duramente criticado, mesmo sem citá-lo, Tettamanzi, acusando-o de "intimismo e moralismo", de "um sutil, mas sistemático partidarismo com uma única tendência política, a centro-esquerda, negligenciando, se não obstaculizando, as tentativas de católicos envolvidos na política, mesmo com altas responsabilidades no governo local" (a referência era ao filiado da CL Roberto Formigoni, então Presidente da Região) e repreendendo-o por ter rotulado "como especulação as obras educativas, sociais e de caridade dos movimentos, que são considerados cada vez mais como um problema e não como um recurso" (as "obras" dos "movimentos" eram, naturalmente, aquelas da CL). "Dada a gravidade da situação", concluiu Carrón, Milão precisa de "um pastor que saiba como reforçar os laços com Roma e com Pedro. Por estas razões, a única candidatura que eu me sinto em condições de submeter à atenção do Santo Padre é a do atual Patriarca de Veneza, o Cardeal Angelo Scola".
Ratzinger, em 28 de junho de 2011, nomeou Scola, para grande assombro da Igreja ambrosiana, "martiniana" até a medula. Mas quando isso aconteceu, Carlo Maria Martini já havia se silenciado. Em sua última entrevista, datada de 8 de Agosto de 2012 e publicada no Corriere della Sera no dia após sua morte, tocou em temas sensíveis como o sexo, a indissolubilidade do matrimônio, o escândalo da pedofilia: "O Igreja está cansada, na Europa do bem-estar e na América". "A Igreja está 200 anos atrasada.
Por que não se apruma? Estamos com medo? Medo em vez de coragem?". No dia 31 de agosto de 2012, depois de recusar alimentação forçada por sonda, o cardeal dos milaneses fechou os olhos para sempre.
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Martini, aquele que queríamos como Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU