17 Fevereiro 2017
“A recuperação da herança espiritual do cardeal Martini deve ter uma chave pessoal, deve tocar a nossa consciência para depois sermos, com maior convicção, testemunhas do Evangelho. E, certamente, nunca devemos fazer dele um ‘santinho’: seria trair a sua memória.” Marco Garzonio, jornalista do Corriere della Sera, presidente da Fundação Ambrosianeum, certamente é uma das pessoas que foram mais próximas e que mais estudaram a figura do biblista, arcebispo de Milão de 1979 a 2002.
A reportagem é de Gianni Borsa, publicada por Servizio Informazione Religiosa (SIR), 15-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 31 de agosto de 2012, Martini falecia no Aloisianum de Gallarate (Varese): Garzonio estava à beira do leito do bispo. E, a partir do quarto do terceiro andar daquela residência dos jesuítas, começa o filme de Ermanno Olmi, intitulado Vedete, sono uno di voi [Vejam, sou um de vocês], cujo roteiro foi escrito a quatro mãos pelo diretor e pelo jornalista.
Trata-se de uma das inúmeras iniciativas que se desenvolvem nestes dias em Milão por ocasião do 90º aniversário de nascimento de Martini, que ocorreu no dia 15 de fevereiro de 1927: o programa está disponível aqui.
Garzonio, comecemos a partir dessa recuperação da memória. Qual é o significado?
Eu considero que se trata de uma importante iniciativa de caráter histórico, mas deve ser entendida ainda mais como uma oportunidade para verificar a continuidade da semente evangélica que vem do cardeal, o frescor e a atualidade de uma mensagem que dura no tempo e que ainda nos interroga. Nos seus anos em Milão, lemos também, nas entrelinhas, uma fase da história da cidade e da diocese, tão significativamente marcada pelo magistério de Martini.
Você fala de um vínculo que encontra inúmeras e significativas correspondências entre dois jesuítas, Martini e Bergoglio. Poderia nos indicar alguns “pontos de contato”?
São realmente muitos! Poderíamos partir da ideia martiniana sobre o governo da Igreja através de uma “dimensão colegial”. Trata-se de um antigo desejo seu, que reencontramos na “sinodalidade” à qual o Papa Francisco se refere hoje. Salientaria, depois, a constante referência do cardeal aos temas ligados à família, às relações afetivas: Martini insistia na necessidade de se colocar à escuta das famílias para responder às suas necessidades. Pois bem, Francisco dedicou dois sínodos a esse tema. E depois os jovens, sempre presentes no pensamento do arcebispo, a partir da “Escola da Palavra”. E agora a Igreja é chamada a um novo Sínodo precisamente sobre os jovens.
Outras sensibilidades em comum? Outros pontos de contato?
A centralidade da Bíblia, obviamente: o farol que guiava a vida e cada ação e discurso do cardeal. Se hoje formos rever as homilias de Santa Marta do Papa Francisco, encontramos precisamente autênticas lectio divinas. Mas, para continuar com os exemplos, poderíamos citar a dimensão ecumênica, o papel da mulher na Igreja, a constante referência ao “sonho” (“Sonho com uma Igreja...”), a atenção aos últimos (“fazer-se próximo”, os pobres, os encarcerados, os migrantes).
Martini “sonhava” uma Igreja “alegre e leve”. Uma visão que alguns definiram como profética. O que você acha?
Uma comunidade fundada sobre a Palavra, próxima dos últimos, “alegre e leve”, mas também fermento na sociedade, pequena semente de mostarda que acolhe os desafios postos pelo mundo e se empenha em anunciar a mensagem de Jesus nas dobras da história. Sim, a visão de Martini é profética porque faz prospecções, ilumina a Igreja de hoje e imagina a do futuro. Pensemos mais uma vez na “Igreja em saída” de Bergoglio.
Em Carlo Maria Martini, repete-se a referência à cultura, ao conhecimento. Em que sentido?
Para o arcebispo e biblista, não se tratava apenas de um conhecimento intelectual ou de uma compreensão humana da realidade. Havia e há mais. Ele partia do texto bíblico para compreender a humanidade e o mundo, de modo a levar-lhes a luz da fé.
E o “fazer-se próximo”?
O Congresso sobre a Caridade, de 1986, acima de tudo, representou, na minha opinião, a “conversão” de Martini à cidade e vice-versa. A passagem de “cientista da Escritura” a pastor de grande coração. Tudo isso acontecia – não se deve esquecer – no contexto da “Milão de beber”, totalmente negócios e política. A diocese liderada por Martini sinalizava, ao contrário, uma desintegração do tecido social, a presença generalizada da pobreza e chamava à responsabilidade da solidariedade. Uma responsabilidade individual e comunitária que se fundamenta em uma inquietação de fundo, que chama a atenção aos irmãos e ao seu serviço.
Martini é considerado um bom comunicador. É verdade?
Ele era um ótimo comunicador. Descobrimos isso relendo as duas cartas pastorais sobre o assunto, “Efatá” e “A orla do manto”. Revendo o seu estilo nas relações interpessoais e na pregação. Assim como na sua ideia particular de “opinião pública” na Igreja, sempre invocada: uma Igreja que discute em seu interior, que tem algo a dizer ao mundo, depois, pode e deve comunicar. No entanto, eu diria que Martini era um ótimo comunicador porque era uma pessoa e um cristão autêntico.
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Martini, entre Palavra e profecia. Um fio dourado o une a Francisco. Entrevista com Marco Garzonio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU