14 Outubro 2016
"Martini foi um amante da Palavra que consumiu toda a sua vida para que a boa notícia do Senhor ressuscitado chegasse ao coração e à existência de todos e de cada um."
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal Avvenire, 11-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Estar entre vocês, para que possamos degustar o conforto através da fé que eu e vocês temos em comum" (Rm 1, 12). O desejo expressado pelo apóstolo Paulo aos cristãos de Roma é o mesmo que animava há 40 anos o padre Carlo Maria Martini, então reitor do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, ao pregar um curso de exercícios sobre a luta espiritual para uma comunidade de freiras carmelitas.
E é o mesmo sentimento que habita o leitor ao se aproximar destas páginas inéditas (Il sole dentro, 250 páginas), que literalmente emergiram de uma gaveta esquecida e propostas com o frescor do discurso.
Lembro-me do sorriso desencantado com que o novo arcebispo de Milão me confidenciava se surpreender com a grande quantidade dos seus "livros" recém-publicados: até mesmo duas editoras diferentes tinham publicado quase simultaneamente os mesmos exercícios espirituais sobre o Evangelho de Marcos, tirando-os de duas gravações em fita das suas meditações...
Até poucos meses antes da consagração episcopal, a sabedoria evangélica do padre Martini era conhecida e muito apreciada apenas pelo restrito público dos estudiosos das ciências bíblicas e, particularmente, de exegese neotestamentária.
Porém, quem, como eu, tivera o dom de conhecer mais de perto o jesuíta editor da edição crítica do Novo Testamento, conhecia muito bem aquela sua capacidade de leitura espiritual da Escritura, aquela escuta com o coração que levaria o arcebispo de Milão a tornar também os outros partícipes dessa paixão pela Escritura, criando a "Escola da Palavra", onde tantos, particularmente jovens, poderiam compreender o Evangelho na sua novidade e frescor, capaz de orientar a vida de todos os dias e de conduzi-la a uma "dimensão contemplativa", uma visão "outra" de si mesmos, dos outros e dos eventos do mundo.
Assim, reencontrar hoje aquele frescor de leitura do Evangelho nas palavras proferidas em uma pequena comunidade carmelita faz com que, realmente, possamos sentir que o homem, o cristão, o bispo Martini ainda está conosco e nos faz "degustar juntos o conforto" que vem da fé alimentada pela escuta.
As meditações aqui retomadas nos falam de uma luta, a espiritual, que é o combate cotidiano de cada um de nós, como foi o apóstolo Paulo e de qualquer um que, como o cardeal Martini, se faz servo da Palavra e decide, a cada dia, tomar a própria cruz sobre si para seguir Jesus.
A luta espiritual do cristão, de fato, não tem nenhum sentido se for separada do combate vivido por Jesus na carne, se for separado da Sua obediência até à morte e morte de cruz (Fl 2, 8), se for isolado do amor que alimenta e sustenta o fiel também e sobretudo nos dias mais escuros.
Assim, no rastro da Carta aos Efésios, Martini fala de combate e de armas – armadura, cinto, escudo, espada, capacete... – assim como aborda questões que, normalmente, preferimos envolver no esquecimento: as tentações, o diabo e as seus armadilhas.
Mas o realismo guerreiro é apenas instrumental às exigências evangélicas que exigem essa luta sem quartel: a justiça, a paz, a familiaridade com Deus, a confiança na fé para colocar todas as coisas em Deus.
Afinal, a arma suprema que sustenta o combate decisivo não é outra senão a oração, aquele confiante diálogo com o Senhor que nos escuta e que fala ao nosso coração. Quem conhece bem a enorme quantidade de escritos deixados por Carlo Maria Martini como bispo e também as páginas confiadas à imprensa depois da retirada da orientação da arquidiocese ambrosiana dirá que, nestes textos, não há nada que já não seja conhecido.
Porém, ler essas páginas ajuda a entender como, a partir do tesouro da Escritura, "todo escriba que se torna discípulo do Reino tira do seu tesouro coisas antigas e coisas novas" (Mt 13, 52). É o Martini apaixonado pela Palavra que reencontramos aqui, na gratuidade de uma voz livre de preocupações pastorais mais ou menos imediatas, na inspiração espiritual de quem traz no coração o crescimento próprio e alheio diante de Deus, de quem conserva, sim, o "sol dentro", mas também quer que ele ilumine e aqueça aqueles que estão ao seu redor.
Sim, podemos realmente nos alegrar por reencontrar nestas páginas o Martini que bem conhecemos, o amante da Palavra que consumiu toda a sua vida para que a boa notícia do Senhor ressuscitado chegasse ao coração e à existência de todos e de cada um.
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Martini, um pastor apaixonado pela Escritura. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU