05 Junho 2018
É uma realidade universalmente reconhecida sobre o mar o fato de que nunca é a ponta do iceberg que afunda um navio, mas sim o que está debaixo da água sem ser visto. No entanto, para os olhos bem treinados, a massa branca visível geralmente é o suficiente para alertar sobre os perigos pela frente e para mudar de rumo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada em Crux, 04-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No caso dos escândalos dos abusos sexuais clericais no Chile, o Papa Francisco tocou pela primeira vez na ponta do iceberg em 2015, quando decidiu transferir um bispo chileno chamado Juan Barros, acusado de ter encoberto abusos, para uma diocese do Sul.
No entanto, Francisco repetidamente ignorou os alertas que vinham em alto e bom tom. As vítimas do padre pedófilo Fernando Karadima, a quem Barros supostamente encobriu, falavam com qualquer um que quisesse escutar, incluindo membros da própria Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores. A mídia, tanto no Chile quanto em Roma, manteve o caso no centro das atenções. Políticos chilenos enviaram uma carta ao papa pedindo-lhe para mudar de rumo, e até mesmo alguns bispos se manifestaram contra a nomeação.
Mas Francisco seguiu em frente, a todo o vapor.
A inevitável colisão ocorreu com a decisão de mandar dois enviados papais ao Chile para investigar o caso Barros. Seu relatório de 2.300 páginas, produto de 64 entrevistas pessoais, forçou o pontífice a se confrontar com aquilo que estava debaixo das águas.
O documento do arcebispo maltês Charles Scicluna e do padre espanhol Jordi Bertomeu permanece confidencial, mas, nas últimas duas semanas, desde que os bispos chilenos estiveram em Roma e voltaram ao Chile, apresentando suas renúncias a Francisco, surgiram amplas evidências que mostram o quão grande é o iceberg.
Na diocese de Rancagua, por exemplo, 14 padres que faziam parte de um clã chamado “La Familia” foram suspensos, aguardando investigação sobre denúncias de terem abusado sexualmente de menores e de terem feito sexo gay consensual com adultos.
O bispo Alejandro Goic, que até a semana passada era o presidente da Comissão Nacional para a Prevenção de Abusos da Igreja chilena, pediu desculpas pelas “minhas ações nesse caso” e reconheceu que não havia se movido com a agilidade apropriada. Ele teve que renunciar à comissão.
Também se tornou público que o padre Óscar Muñoz Toledo, ex-chanceler da arquidiocese de Santiago, foi removido do cargo no dia 2 de janeiro, dias antes da visita de Francisco ao país, depois que ele denunciou a si mesmo por abuso sexual.
Embora os detalhes não estivessem claros na época, agora se sabe que ele abusou sexualmente de alguns de seus sobrinhos, que eram menores naquele momento. Isso significa que o homem encarregado de receber as declarações de algumas das vítimas de Karadima estava, ele mesmo, ao mesmo tempo, abusando sexualmente de crianças.
Além disso, a ex-irmã Consuelo Gómez abandonou sua congregação no ano passado depois de ter sido abusada sexualmente em mais de uma ocasião por uma superiora chilena enquanto as duas estavam na Espanha.
A Congregação das Irmãs do Bom Samaritano divulgou uma declaração por meio da Conferência Episcopal em que reconhecia que sabia das alegações, e que o modo como abordou a questão não correspondeu à “nossa missão e vocação”.
De acordo com a ex-freira, a ordem disse a ela para guardar os abusos para si mesma, e que eles “tinham sido culpa dela”.
Na quinta-feira passada, os jesuítas do Chile – a ordem de Francisco – anunciaram, por meio de um comunicado, que haviam encerrado uma investigação contra o Pe. Jaime Guzmán Astaburuaga, acusado de abuso sexual de menores, e que as informações compiladas serão enviadas à Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano.
De acordo com o documento Sacramentorum sanctitatis tutela, de São João Paulo II, de 2001, o julgamento de um caso de um padre acusado de abusar sexualmente de um menor é reservada exclusivamente à Congregação para a Doutrina da Fé, embora a Congregação possa designar o caso a uma Igreja local.
As denúncias contra Guzmán envolvem abusos que ocorreram antes de 1994, o que significa que, de acordo com a legislação civil chilena, os crimes ultrapassaram o prazo de prescrição do país, a menos que o Congresso chileno aprove um projeto de lei apresentado pelo presidente Sebastián Piñera no mês passado visando ao fim da prescrição para crimes de abuso sexual.
Guzmán recebeu uma sanção canônica em 2012 e foi banido do ministério público e de estar em contato com menores.
Em um esforço para cumprir o pedido de Francisco de avançar rumo à “transparência, verdade, justiça e reparação”, a declaração dos jesuítas também revelou que outros dois religiosos foram removidos do ministério público nos últimos anos por abuso sexual. São os padres Raúl González, denunciado em 2011 por um ex-estudante por abusos que ocorreram em 1999, e Juan Pablo Cárcamo, acusado por uma mulher adulta de abuso de consciência e de transgressões sexuais durante um retiro espiritual.
Além disso, continuam surgindo revelações contra os Irmãos Maristas, que já reconhecem situações de abuso de crianças que duraram décadas.
Dois dos colaboradores mais próximos do cardeal Raúl Silva Henríquez, chefe da arquidiocese de Santiago de 1961 a 1983, os padres Cristian Precht e Miguel Ortega, foram considerados culpados de abuso.
Tanto Precht, um herói do movimento dos direitos humanos até que as alegações vieram à tona, quanto Ortega, que morreu em 2015, enfrentaram novas acusações nos últimos dias, desta vez de vítimas dos Irmãos Maristas, que dizem que as duas crianças foram abusadas sexualmente quando visitavam sedes maristas, incluindo propostas sexuais para adolescentes que iam se confessar.
No dia 21 de maio, em uma missa de encerramento de um sínodo diocesano, o cardeal Ricardo Ezzati, acusado pelas vítimas de acobertar abusos e ignorar as denúncias, disse que a Congregação para a Doutrina da Fé lhe atribuiu a responsabilidade por seis casos de abuso sexual clerical enquanto estava em Santiago.
Na sexta-feira, o site arquidiocesano publicou os nomes dos seis padres e quais eram as suas sentenças. No caso de Precht, o site diz que ele foi condenado a uma suspensão de cinco anos de seu ministério sacerdotal, que ele atualmente não tem posição pastoral e que há uma nova investigação devido a novas denúncias. Outros quatro foram suspensos permanentemente e perderam seu status clerical, e outro foi suspenso e morreu logo depois.
Dois sobreviventes, um médico chamado Jaime Concha e um agente imobiliário chamado Jorge Franco, falaram com Scicluna e Bertomeu no início deste ano sobre os abusos que sofreram. Também acusaram o Pe. Alfredo Soiza-Piñeyro, que foi destituído em 2013 depois que denúncias de abuso sexual chegaram à Congregação para a Doutrina da Fé.
Soiza-Piñeyro ganhou fama nacional em 1987, quando mediou o sequestro de um coronel do Exército chileno, Carlos Carreño.
Em uma carta enviada aos bispos em Roma, Francisco falou de uma Igreja chilena culpada por destruir provas, por esconder a importância das denúncias e por ter praticantes homossexuais na formação dos seminaristas.
Sobre o último ponto, há relatos que remontam a 2011 de abusos no Seminário de San Rafael, em Valparaíso. Eles incluem abusos de natureza sexual, mas também de poder e de consciência: seminaristas que foram forçados a nadar nus com seus superiores, e um homem que hoje é o bispo local, Gonzalo Duarte García de Cortázara, que bateu publicamente em um aspirante ao sacerdócio porque este não quis beijá-lo na boca. Esse incidente teria acontecido em 1992.
Mauricio Pulgar, um ex-seminarista de Valparaiso, conversou com o site de notícias local The Clinic em 2011 e disse que seus superiores o mandaram conversar com um psicólogo para superar seus “problemas afetivos”.
“Se você não gosta de ser tocado [em suas partes íntimas], você é quem tem problemas”, disse ele a respeito do caso. “Se você não gosta de que seus lábios sejam encostados, você é o problema. Se você não gosta de caminhar por aí abraçado, você é o problema. Sempre, o desviante é você”, disse ele na época, em denúncias que vem repetindo desde então.
Pulgar falou contra vários padres além de Duarte, mas nada surgiu até agora a partir das acusações. Duarte tem mais de 75 anos e, por isso, apresentou sua renúncia a Francisco antes mesmo de os bispos chilenos viajarem para Roma.
Até agora, está claro que a crise da Igreja Católica no Chile é profunda. Os observadores dizem que limpar a casa, desfazer os danos, compensar os sobreviventes e reconstruir a confiança na instituição e na fé entre os fiéis levará décadas.
Independentemente de quantas renúncias dos bispos Francisco eventualmente aceitará, os desafios vão muito além do simples rolar de cabeças, como ele disse várias vezes. Há uma “cultura do abuso” e do encobrimento que “nunca mais” devem se repetir, escreveu ele em uma carta aos católicos chilenos em 31 de maio.
Tradicionalmente, para escolher um novo bispo, o Vaticano confia em informações fornecidas pela hierarquia local e pelo representante papal no país. Neste caso, no entanto, a credibilidade do arcebispo Ivo Scapolo, atual embaixador papal no Chile, ficou manchada, e muitos católicos da base pedem a sua renúncia.
Francisco ainda tem um longo caminho pela frente depois da resposta ambivalente do Vaticano às várias denúncias, e a sua própria resposta, por meio de sua atitude firme nos últimos 45 dias, lhe rendeu o apoio do conselho editorial do New York Times, que, em janeiro passado, criticou-o pela sua defesa de Barros.
Entretanto, no nível da base, ainda há homens e mulheres, “o santo povo de Deus, fiel e sofredor”, nas palavras de Francisco, que mantêm viva a fé no Chile, respondendo ao seu chamado a construir uma “Igreja profética”.
Nas palavras do padre chileno Mariano Puga, “eu me pergunto o que acontecerá com os pobres da Igreja depois da decisão do papa, depois das denúncias contra os bispos. O que acontecerá com aqueles que batizaram seus filhos, que vão à missa aos domingos, que recebem a comunhão? O que acontecerá com aqueles que acreditam em Jesus e estão por fora de todos esses escândalos?”.
No dia 1º de junho, o Pe. Francisco Astaburuaga, membro de um grupo de nove chilenos, algumas vítimas de abuso sexual, outras vítimas de abuso de consciência, outros que apoiavam os sobreviventes, e sete deles padres, sem saber, responderam a essa pergunta depois de se encontrarem com o papa.
“Eu quero comunicar a eles [aos leigos] que, sempre depois da experiência da cruz, vem a ressurreição”, disse ele a jornalistas na sexta-feira, dia de sua chegada a Roma.
“O que o papa está nos dizendo com suas ações e palavras nada mais é do que uma exortação a renascer, a ter a coragem de assumir o conflito, olhá-lo na cara e a enfrontá-lo com a esperança que vem de Cristo. Estou convencido de que todos nós sairemos disso renovados na nossa fé, tanto a Igreja como comunidade quanto cada fiel”, disse.
“Chegou a hora de todos os católicos do Chile se abrirem generosamente à dinâmica da esperança”, disse Astaburuaga.
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Abusos no Chile: Papa Francisco já foi muito além da ponta do iceberg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU