07 Novembro 2023
"Apenas a Declaração sobre a Fraternidade Humana pode se opor a essa onda de terror. E é importante, vital, que assim seja: caso contrário, há apenas o tom da luta do Bem contra o Mal".
O comentário é do jornalista italiano Riccardo Cristiano, em artigo publicado por Settimana News, 04-11-2023.
Enquanto eu continuava a escrever meu diário sobre a nova guerra, há alguns dias, li que o general al Qaani, o poderoso líder dos Guardiões da Revolução Iraniana – os guardiães e exportadores da revolução khomeinista – havia chegado a Beirute para se encontrar com Nasrallah: por um momento, pensei que o momento havia chegado em que as milícias seguiriam resolutamente em direção a Gaza, em direção à guerra.
Uma escolha desse tipo – guerra contra Israel – o poderoso líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, não poderia anunciar sozinho. A declaração de guerra da milícia khomeinista teria, portanto, manifestado o plano operacional acordado com Teerã.
Mas um amigo meu em Beirute me trouxe de volta à razão: "quem tem armas as usa, não anuncia". Então, por que eles se encontraram?
Após ouvir o esperado discurso na sexta-feira, algo ficou mais claro para mim. Nasrallah falou por toda a frente das milícias e fez referência a Teerã. Óbvio. E então?
Para aprofundar o significado de um evento, planejado há muito tempo e anunciado oficialmente com cinco dias de antecedência, é preciso voltar a alguns antecedentes. Estou falando de dois homens que têm a tarefa de exportar para o mundo a revolução teocrática baseada no pensamento apocalíptico de Khomeini: eles acreditam que os mártires não morrem, mas alcançam um tempo mediano, entre o nosso e o além, acelerando o curso da justiça divina, para que ela chegue mais cedo.
Mas Nasrallah deixou claro que Teerã, junto com ele, ou seja, o Hezbollah – seu braço operacional no Oriente Médio – e outros atores ligados, nada tem a ver com a concepção e realização dos eventos de 7 de outubro. Segundo ele, esses eventos seriam atribuíveis à decisão autônoma do Hamas, 100%, independentemente de planos ou estratégias iranianos. Ele disse isso imediatamente.
Depois, elogiou a resistência islâmica palestina e a extensão do que ela alcançou, até o ponto decisivo: o Hezbollah não intervira mais no conflito. As ações frontais contra Israel continuarão, mas não haverá intencionais aumentos no nível do confronto. Ele disse isso claramente.
Então, por que toda essa "encenação"? Nasrallah não evitou o espetáculo: porque – ele disse "abertamente" – o Grande Satã, como definido pelo aiatolá Khomeini, é a América.
Explicação: os massacres de civis israelenses – em sua reconstrução – não são obra do Hamas, porque isso seria uma violação flagrante da lei islâmica (motivação implícita, mas não expressa), mas sim o efeito da reação ao ataque israelense.
Os massacres são perpetrados apenas pelos outros, e todo o Mal possível vem dos Estados Unidos da América, há mais de um século. Sobre Gaza e o que está acontecendo lá, ele disse pouco. Ele mencionou explicitamente as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, para mostrar como o Mal americano é absoluto. Exatamente como Bin Laden fez: a mesma retórica ideológica.
Bem, o significado profundo de tais palavras já havia sido compreendido, na minha opinião, anos atrás, pelo grande antropólogo francês René Girard, quando escreveu: "lendo os primeiros documentos de Bin Laden, notei suas alusões às bombas americanas caídas no Japão e entendi de repente que o nível de referência é o planeta inteiro, muito além do Islã.
Sob o rótulo do Islã, há a vontade de conectar e mobilizar todo um terceiro mundo de frustrados e vítimas em suas relações de rivalidade mimética com o Ocidente. No entanto, nas torres destruídas, trabalhavam tanto estrangeiros quanto americanos. Além disso, devido à eficiência e sofisticação dos meios usados, bem como ao conhecimento que tinham dos Estados Unidos, os autores dos ataques não eram eles mesmos um pouco americanos? Estamos no meio da mimetização total.
A teoria da violência mimética de Girard, portanto, me ajuda a entender, a interpretar: o homem se rege pela imitação dos outros. Esse é, portanto, o cerne do raciocínio do poderoso líder da milícia: "Não lançarei minha milícia em uma guerra muito perigosa agora, mas de qualquer forma atuarei contra o Grande Satã, não em Nova York, mas no Oriente Médio, não em Gaza ou no Líbano, mas contra as bases militares americanas no Iraque e na Síria".
Naturalmente, nem tudo se encaixa logicamente nesse discurso: todos sabem que a base mais importante da Marinha dos EUA fica no Catar, mas essa base Nasrallah nem mencionou. Ele falou das bases no Iraque e na Síria: Nasrallah – evidentemente, depois de conversar com al Qaaani (o único que poderia autorizá-lo), atribuiu a solene decisão às milícias pró-iranianas, unidas, compactas, já presentes na Síria e no Iraque.
Por que essas? Repito: o grande objetivo imperial iraniano é conectar sob seu controle toda a meia-lua que se estende de Teerã ao Mediterrâneo. Beirute já está nas mãos do Hezbollah, então o trabalho deve ser concluído levando o controle terrestre aos pontos decisivos do Iraque e da Síria: portanto, a conexão imperial terrestre de Beirute a Teerã será feita. Tudo está funcionando em função disso.
No entanto, há algo a ser explicado para o coração das massas árabes: tecendo elogios ao Hamas e à sua ação pelo "resgate" árabe, ele tentou recuperar milhões de árabes perturbados pelos eventos em Gaza, levantando polêmica com outros líderes regionais, depois de ter soltado, nos últimos anos, milicianos do Hezbollah contra os próprios árabes, matando milhares e milhares de sírios e iemenitas, em particular.
A escolha – com um truque dramático – é recuperar os corações e as mentes dos árabes recolhendo o descontentamento deles com seus governantes; mas, com certeza, não em nome dos direitos, mas devido a uma violência especular à do demônio americano. Nasrallah conta com as memórias populares dos bombardeios ocidentais infligidos a afegãos, iraquianos, sírios. Mais uma vez, o discurso ficou "apocalíptico": o Bem está lutando contra o Mal. Uma linha difundida e perigosa.
Concluo esta página do meu diário deste aguardado e agitado 3 de novembro nas praças árabes. Nasrallah evitou envolvimentos diretos na guerra em curso. Isso pode ser um alívio, mas tudo ainda pode acontecer. Nasrallah de maneira alguma abandonou – não poderia ser de outra forma – a retórica inflamatória global. A repercussão da fervor "do Terceiro Mundo" de seu discurso certamente não pode ser ignorada.
Lembre-se de que seu discurso como estrela da política mundial foi transmitido em todo o mundo, como nunca antes. Eu me pergunto por que os jovens das Primaveras Árabes – que pediam liberdade, democracia e dignidade humana - nunca tiveram, após anos de lutas desarmadas, olhados com condescendência no Ocidente, um púlpito semelhante ao de Nasrallah, para falar ao mundo.
Agora penso: apenas a Declaração sobre a Fraternidade Humana pode se opor a essa onda de terror. E é importante, vital, que assim seja: caso contrário, há apenas o tom da luta do Bem contra o Mal.
Me ocorre que, há alguns dias, um míssil israelense atingiu, de acordo com o governo libanês, um campo com 4.000 antigas oliveiras. Eles não eram terroristas: eram apenas oliveiras, antigas, tão antigas que talvez tenham "visto" a chegada dos cruzados. Em muitos séculos viveram em "uma certa ideia de paz". Todos eles estão mortos!?
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Diário de guerra (2). Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU