03 Março 2022
"Esperamos com todas as nossas forças que a crise ucraniana faça com que a Europa escreva páginas finalmente novas no que diz respeito à tutela e à proteção dos refugiados. Mas as conclusões do Conselho extraordinário da UE do domingo passado já contêm alguns elementos preocupantes: o reforço das medidas de controle e registo nas fronteiras, inclusive através da Frontex, e a prevenção de ameaças híbridas através da intensificação das medidas de inteligência e cooperação. O impulso da solidariedade será, portanto, compensado por novas medidas restritivas?", escreve Giulia Capitani, em artigo publicado por Huffington Post, 02-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“As portas da Europa estão abertas para os refugiados”. Tivemos que esperar a guerra às portas de casa para ouvir as primeiras palavras de bom senso dos representantes das instituições europeias, bem como de muitos líderes nacionais, finalmente em conformidade com o direito internacional, como não acontecia de alguns anos até o presente.
A própria ativação da Diretiva sobre proteção temporária, letra morta desde 2001, tem um sabor de miragem para aqueles que, como a Oxfam e muitas outras organizações da sociedade civil, pediram repetidamente sua aplicação em outras situações, entre as quais aquela bem recente, e bastante presente, da crise afegã.
Como indivíduos e como organização, obviamente estamos chocados com o que está acontecendo na Ucrânia e não deixaremos de prestar nossa solidariedade e o nosso empenho com as pessoas em fuga. No entanto, somos obrigados a lembrar que os conflitos têm o mesmo impacto em todos os lugares, não importa o quão perto ou longe os percebamos. Sempre produzem morte e destruição, sempre obrigam os civis a uma fuga apressada e dilacerante. Portanto, as respostas humanitária e política não podem ser vistas por um viés étnico, reservadas apenas a alguns: sob pena de deslizar para áreas muito obscuras da história e do direito.
Infelizmente, estamos vendo exatamente isso. Refugiados afegãos, iraquianos e sírios, incluindo muitas famílias com crianças, neste momento estão detidos arbitrariamente em campos de refugiados na Grécia, ou deixados para se afogar no mar Egeu após serem ilegalmente mandados de volta, conforme documentado pela chocante investigação do The Guardian há poucos dias. São brutalmente rechaçados pela polícia de fronteira ao longo da rota dos Balcãs, em um turbilhão de violências e abusos já amplamente documentados, infelizmente sem gerar qualquer efeito. E, graças ao acordo do governo italiano com a Líbia, agora mais de 80.000 pessoas fugindo dos conflitos e da pobreza da África subsaariana foram devolvidas aos torturadores das prisões de Al Harsha e Bani Walid, apenas para serem revendidas aos traficantes de seres humanos.
Mapa da Grécia. (Imagem: Reprodução)
Nesses casos, porém, nenhuma abertura de fronteiras, nenhuma intervenção normativa em defesa de civis desesperados.
Rota dos Balcãs (Foto: Anglo Resolve | Fonte: Europol)
A fronteira polonesa está dando uma representação plástica disso nestes últimos dias. Em Medyka e Przemysl, cidades polonesas próximas à fronteira ucraniana, os refugiados em fuga de Lviv são acolhidos como é correto que seja: com solicitude e grande uso de meios, rapidamente organizados. A menos de 500 km a norte, ainda na Polônia, mas na fronteira com a Bielorrússia, há meses que assistimos ao exercício de uma violência sem precedentes contra os refugiados (desta vez, porém, sírios, afegãos, iraquianos) que tentam atravessar a fronteira, espancados, molhados com mangueiras pela polícia em temperaturas abaixo de zero, com fome e sede. Um número impreciso deles, incluindo muitas crianças, já morreu de frio nos bosques na fronteira. Nessas áreas apenas a população se organizou por sua conta, acolhendo os fugitivos em casas sinalizadas por lanternas verdes nas janelas, levando cobertores e comida nos bosques, permitindo assim que as nossas consciências não afundem. A resposta da UE, neste caso, foi considerar os refugiados como “ameaças híbridas”: armas humanas usadas pelo regime de Lukashenko, das quais a Europa tem o direito de se defender.
Esperamos com todas as nossas forças que a crise ucraniana faça com que a Europa escreva páginas finalmente novas no que diz respeito à tutela e à proteção dos refugiados. Mas as conclusões do Conselho extraordinário da UE do domingo passado já contêm alguns elementos preocupantes: o reforço das medidas de controle e registo nas fronteiras, inclusive através da Frontex, e a prevenção de ameaças híbridas através da intensificação das medidas de inteligência e cooperação. O impulso da solidariedade será, portanto, compensado por novas medidas restritivas?
Foto: UN Women | Flickr CC
Como prosseguirão as discussões sobre o Pacto de Asilo e Migração da UE neste novo contexto?
A Europa está demonstrando nestas horas que tem a vontade e os meios para acolher dignamente os refugiados, e estamos satisfeitos por isso. No entanto, se eu fosse um cidadão ucraniano em fuga, tentaria me colocar em segurança o mais rápido possível: antes que os fluxos aumentem demais, a emotividade desses primeiros tempos se dissolva, a opinião pública e os partidos recomeçam a ladainha do "não podemos acolher todo mundo" e os refugiados ucranianos se tornem, simplesmente, refugiados.
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A dupla moral da Europa em relação aos refugiados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU