Concepção equivocada de que civilização ocidental é superior está esfacelada. Perda de protagonismo do Ocidente traz enorme instabilidade, mas também a possibilidade de surgimento de um mundo “policêntrico e multilateral”
Converter a natureza e seus ecossistemas em mercadoria de forma cada vez mais inescapável e acelerada a fim de acumular capital, à revelia das consequências devastadoras que essa postura tenha em termos sociais, políticos e ambientais. Esse é o horizonte no qual opera o capitalismo e sua lógica predatória, comandado sobretudo por países do Norte Global e corporações que não hesitam em manter os paradigmas da guerra, da acumulação de capital e da exploração operativos para continuarem à frente do poder. Ocorre que esse modelo está fraturado e é insustentável, observa o jornalista Fabian Scheidler, na conferência ministrada no Instituto Humanitas Unisinos – IHU e aqui reproduzida em formato de entrevista. O mito do Ocidente e sua pretensa superioridade estão em decadência, o que pode ser demonstrado, entre outras coisas, pelo genocídio atual em Gaza sob o silêncio da maior parte dos países.
Fabian Scheidler | Foto: Arquivo Pessoal
Se, por um lado, o rearmamento da Europa é irracional, Scheidler percebe que o problema não são as armas, aço ou germes em si mesmos, mas a organização social, que precisa ser revista. “O sistema político no mundo ocidental está em processo de colapso. A confiança nas instituições democráticas está se reduzindo cada vez mais, pois as pessoas estão vendo que os partidos políticos não estão conseguindo responder a essas crises”, pondera, observando ainda o papel antissocial das redes ditas sociais, onde grassa a manipulação de bolhas com narrativas mentirosas e que podem definir o rumo de eleições democráticas. Dessa forma, é imprescindível que sejam criadas “novas instituições políticas e econômicas para encontrar soluções, desafio que temos que enfrentar para que possamos continuar existindo nesse planeta”.
Fabian Scheidler é jornalista, dramaturgo, historiador e autor de O fim da megamáquina: nas pegadas de uma civilização em colapso (Icaria Editorial; Abya-Yala Editorial, 2021). Suas investigações buscam entender as razões mais profundas das grandes crises que enfrentamos hoje, entre elas a destruição da natureza, o risco de guerra nuclear e a extrema desigualdade. Em sua obra, ele utiliza a metáfora da megamáquina para descrever o capitalismo – sistema que integra poder econômico, político, militar e ideológico em uma engrenagem global de dominação, exploração e destruição por parte do Ocidente.
Fabian foi o primeiro conferencista do Ciclo de Estudos A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Em 27 de maio, terça-feira, ministrou a videoconferência “A erosão do Ocidente e o futuro do sistema internacional”, transmitido na página do IHU, YouTube, Facebook e Twitter.
IHU – Hoje, recebemos Fabian Scheidler, jornalista, escritor, dramaturgo e filósofo, autor de diversos livros, incluindo O fim da megamáquina: a história de uma civilização à beira do colapso (tradução livre da edição espanhola El fin de la megamáquina: história de una civilización en vías de colapso), obra que inspirou o evento A erosão do ocidente e o futuro do sistema internacional, fala que abre a programação do Ciclo de Estudos A gramática do poder global. O livro revela as raízes das forças destrutivas que ameaçam o futuro da humanidade. Enquanto a primeira parte da pesquisa conduz o leitor às origens do poder econômico, militar e ideológico há cerca de cinco mil anos, a segunda traça a formação e expansão do sistema do mundo moderno ao longo dos últimos 500 anos. Desconstruindo mitologias ocidentais do progresso, Scheidler salienta como as lógicas de acumulação incessante do capital devastaram, desde o início, as sociedades humanas e os ecossistemas.
Fabian, seja muito bem-vindo. É uma grande honra poder conversar sobre essa obra que completa uma década esse ano, mas que permanece extremamente atual para compreendermos não só os recentes movimentos geopolíticos, mas também os impactos do multilateralismo e as possibilidades inerentes a um processo que temos chamado de desocidentalização, seja de ordem econômica, seja de ordem política ou cultural?
Fabian Scheidler – O livro foi lançado apenas em alemão, mas houve uma edição atualizada em espanhol, publicada no último ano. Penso que realmente nos encontramos numa crise da civilização. E um dos incentivos para esse livro, um estímulo a escrevê-lo foi que conheci este termo, “crise da civilização”, em um Fórum Social Mundial em Belém do Pará, no Brasil. Naquela época eu era bastante ativo nesse movimento. Esse termo é decisivo para a segunda parte do livro, referindo-se à quando os conquistadores europeus chegaram na América Latina há mais de 500 anos.
IHU – Em O fim da megamáquina, você nos convida a repensar os fundamentos dessa civilização moderna nas suas dimensões materiais e simbólicas. Quais são esses fundamentos e como surgiu a ideia do livro? Por que a escolha da metáfora da megamáquina?
Fabian Scheidler – A ideia do livro surgiu depois que eu atuei por muito tempo junto ao movimento antiglobalização. Escrevi muito sobre neoliberalismo e sistemas sociais e os sistemas econômicos que foram destruídos, mas em um certo ponto tive a impressão de que era preciso se aprofundar muito mais nos últimos 40, 50 anos. A fase neoliberal é apenas uma fase de uma história muito mais longa, política, econômica, militar, ecológica, que há 500 anos surgiu na Europa e espalhou violência pela Terra, criando a primeira civilização que realmente abrange o planeta inteiro. Forças que até hoje proporcionaram uma crise ecológica de dimensões jamais vistas na história e seguem sendo as forças que há 500 anos já estavam nas instituições, ou seja, eles têm muito a ver com esse sistema que surgiu naquela época.
Quando comecei a redigir esse livro, pensei que não seria possível fazê-lo, pois seria uma ideia abrangente demais. Mas, ao longo do trabalho, notei que a complexidade do assunto é enorme, entretanto ainda assim poderia ser colocado numa narrativa. Podemos, ainda, falar sobre os diferentes pontos dessa megamáquina, terminologia criada por Lewis Mumford, historiador americano, nos anos 60, autor de O mito da Máquina. Mumford se referia a um sistema social e retrocedeu até as grandes sociedades hierárquicas dos faraós na Mesopotâmia para então descrever sociedades que eram estruturados numa pirâmide hierárquica, as primeiras máquinas de poder, podemos dizer. Uso o termo megamáquina num sentido mais restrito como o sistema dos últimos 500 anos da humanidade. Contudo, no livro também vou até as origens, porque acredito que elas remontam até, no mínimo, 5 mil anos atrás.
IHU – Quais fundamentos da megamáquina poderíamos listar hoje? Desses fundamentos, desde 2015 há outros pontos cruciais da megamáquina que foram revelados? Porque nesse último decênio enfrentamos pandemias, guerras e a ascensão da Inteligência Artificial – IA. Como esses acontecimentos são intensificações ou novidades desses fundamentos econômicos, políticos e ideológicos da megamáquina?
Fabian Scheidler – Em primeiro lugar, a respeito dos fundamentos da megamáquina, o sistema se baseia em três pilares principais. O primeiro é acumulação ilimitada de capital, ou para dizer forma mais simples, um princípio de fazer o dinheiro gerar mais dinheiro em um ciclo infinito de lucro e reinvestimento, o que é algo novo na história. Havia muitos sistemas que se baseavam em desigualdade radical e violência, como o Império Romano, por exemplo, mas esse é o primeiro sistema que precisa crescer e expandir permanentemente para poder existir. Se parar, morre. E isso é um problema em um planeta limitado, quando um sistema precisa expandir-se cada vez mais. Essa expansão também entrou nas instituições: nas sociedades de capital e sociedades de ações.
As primeiras sociedades foram fundadas há 400 anos em Amsterdam: refiro-me à Companhia das Índias Ocidentais, depois a Companhia das Índias Ocidentais Britânica. Essas instituições tinham um único objetivo: multiplicar ilimitadamente o dinheiro dos cotistas. Não havia outro objetivo. Hoje em dia, as 500 maiores empresas de capital do mundo são responsáveis por 40% da economia mundial. E o interessante nessa da primeira sociedade de ações era sua alta militarização, tendo seus próprios mercenários, suas próprias armas e exércitos, com os quais invadiam outros países e continentes, ocupando um papel central na colonização da América do Norte, da África, da Ásia. Há uma série de genocídios na conta dessas companhias e, em muitos casos, também formaram governos. A Índia é um exemplo disso através da East India, da British East India Company. Esse é o primeiro pilar, a acumulação ilimitada de capital nestas instituições, que também implicava em muita violência.
O segundo pilar é o Estado moderno. Na história, ouvimos muitas vezes que, por um lado, está a economia, no outro lado há o Estado, que pode intervir na economia, ou não. E se faz de conta que são instituições separadas. Mas, de fato, o Estado moderno se desenvolveu de modo coevolucionário com as sociedades de capital. Ou seja, o Estado moderno era quase que exclusivamente militar no século XV, XVI, o que significa mercenários e armas de fogo. As armas de fogo tiveram um papel crucial no surgimento do capitalismo. Por quê? Os Estados não tinham o dinheiro para pagar esses mercenários e as armas de fogo nas quais baseavam o seu poder. Eles precisavam então pegar emprestado esse dinheiro e o faziam com comerciantes de Gênova, Florença, na família Médici, em outros lugares como Amsterdam, Antuérpia, Londres. Esses comerciantes então emprestavam dinheiro ao Estado para que pudessem comprar mercenários e armas de fogo, munindo seus exércitos. O retorno desse investimento representava o que era trazido nas pilhagens que esses exércitos faziam.
Isso quer dizer que a guerra desde o início foi um comércio, um negócio, algo capitalista. E essa e ligação entre Estados endividados e guerra também foi um motor para a máquina de guerra que até hoje nós vemos operando na Europa. Podemos ver que hoje há uma concorrência de armamento na Europa que começou no século XIV. Ao mesmo tempo, essa relação foi o motor da colonização. Os conquistadores eram todos endividados. Eles deviam algo e exploravam os indígenas para obter prata e ouro para poder pagar suas dívidas em Gênova, em Amsterdam, na Antuérpia.
Mas todo sistema, principalmente quando é violento, precisa de um terceiro pilar, que é o poder ideológico, para assim legitimar a expansão e a violência. E um ponto central desse terceiro pilar é o que eu chamo de o mito do Ocidente, que entende que somos ou temos uma civilização superior em todos os aspectos e que temos a única religião verdadeira, o Cristianismo, que justifica a expansão. Por isso não temos apenas o direito, mas também o dever de cristianizar os pagãos, evangelizá-los. Dos séculos XVIII e XIX, o termo civilização acabou por ocupar esse mesmo espaço, como se nós fôssemos os civilizados e os outros bárbaros; como se nós detivéssemos o progresso e os outros estivessem estagnados. Outra falácia é pressupor que, após a Segunda Guerra Mundial, nós temos o desenvolvimento e os outros são subdesenvolvidos. Falamos, hoje, dos valores ocidentais como os seus detentores, enquanto os outros são mais ou menos bárbaros. É um mito porque representa um contraste crasso em relação à realidade do capitalismo, modelo a partir do qual uma série de genocídios e biocídios ocorreram e seguem acontecendo.
Então, esses são os três pilares: poder ideológico, poder estatal e capital, que obrigam esse sistema a expandir permanentemente. No século XXI, esse sistema, de qualquer forma, chega a uma fase de transição caótica, porque chegou aos limites da expansão, com limites físicos, ecológicos, sociais e geopolíticos. O caos que estamos vendo no momento no planeta e todos os processos de crises são parte dessa transição caótica.
IHU – Como percebe o sequestro de pautas importantes sobre o futuro de nossas sociedades pela extrema-direita e pelo globalismo?
Fabian Scheidler – Penso que a ascensão da extrema-direita no mundo todo, seja na Argentina, Estados Unidos, Índia, na Europa ou mesmo no Brasil não seja a causa dos problemas, mas um sintoma destes. Os muitos partidos de esquerda em todo o sistema, partidos social-democratas e partidos chamados socialistas começaram nos anos 1990, nos anos 2000 a trair a classe trabalhadora. Eles sacrificaram os interesses da classe trabalhadora, o que podemos ver na Grã-Bretanha, com Tony Blair, e inclusive na Alemanha, onde nenhum governo retrocedeu tanto socialmente quanto o SPD em 1998, sob Gerhard Schröder. Como uma reação a isso surge uma falta de orientação política. As pessoas não se sentem mais representadas pelos liberais do espectro da esquerda e buscaram refúgio junto a demagogos, que entendem muito bem também como sequestrar ideias boas do movimento antiglobalização. Por exemplo, a ideia de que a globalização esteja apenas no interesse das grandes empresas, das sociedades de ações, que eu mencionei antes, que essa globalização precisa de limites. A esquerda tradicional, nos partidos, não colocou limites a esse tipo de globalização e isso possibilitou a ascensão do movimento da direita.
IHU – Com relação à escala, a dominação é global. Como a replicabilidade planetária do capitalismo contribuiu para a catástrofe ecológica que enfrentamos? Que alternativas viáveis necessariamente devem emergir de escalas menores, como locais ou nacionais? Como evitar que essas novas alternativas caiam de novo em formas reacionárias, nacionalistas e até protecionistas, como você estava comentando?
Fabian Scheidler – Em primeiro lugar, o capitalismo se baseia em transformar a natureza permanentemente em mercadoria e isso num ritmo cada vez mais acelerado, porque é necessário crescer cada vez mais para poder acumular o capital. Ou seja, a destruição da natureza está na lógica do capitalismo, que não consegue existir sem transformar os ecossistemas em mercadoria. E em razão dessa dinâmica, chegamos a vários limites planetários. Alguns institutos que pesquisam afirmam que existem nove limites planetários e sete já foram transpostos. Um deles é o caos climático, a mudança climática, mas esta é apenas uma das dimensões. No mesmo nível de gravidade temos, por exemplo, a perda da biodiversidade. A civilização atual desencadeou a maior extinção de espécie dos últimos 65 milhões de anos. O homo sapiens existe há apenas 300 mil anos. A extinção que vemos hoje vai muito além da própria história do homo sapiens.
Há muitos outros limites que estão sendo transpostos, por exemplo, em relação à água doce. As empresas automobilísticas falam em “eletrificar” o sistema de transporte que temos. Se apenas mudarmos a matriz de transporte para energia elétrica, podemos continuar eternamente do jeito que estamos. É uma ilusão pensar que se a atual frota de veículos fosse transformada em veículos elétricos (e mesmo os grandes utilitários que pesam três toneladas) seria ecologicamente benéfico: continuaremos destruindo o planeta, pois para produzir esses veículos precisamos extrair muitos minerais, e nada é tão destrutivo quanto a mineração. Então, temos uma nova explosão da mineração também no fundo do oceano.
O que precisamos de verdade é uma limitação, uma redução do crescimento e uma redistribuição dos recursos. Em vez de produzir cada vez mais, o que nós precisamos é alterar a distribuição. O problema no mundo não é que há pouca produção, mas que ela está sendo mal distribuída. Precisamos reduzir a concentração das camadas mais ricas, que têm o maior impacto ambiental e, ao invés disso, distribuir de forma diferente para que oito bilhões de pessoas possam viver razoavelmente neste planeta sem destruí-lo. Mas para isso precisamos mudar as nossas instituições junto com essas grandes sociedades de ações e sociedades capitalistas. Precisamos de outras instituições. Podem ser instituições maiores ou menores. As pequenas têm a vantagem de poderem ser controladas democraticamente, como cooperativas e empresas comunitárias. Contudo, uma sociedade industrial precisa de instituições maiores para construir, montar chips de computador, pois isso não é possível de se fazer em pequena escala. Para isso precisamos de modelos de como fabricar essas coisas sem continuar acionando o motor da destruição. Assim, precisamos de estruturas regionais e estruturas maiores que possam assumir isso.
IHU – Retomando o mito da superioridade ocidental, como ele se atualiza com o retorno de Trump ao poder e essa ascensão mais ampla de movimentos de extrema-direita no Ocidente? A própria ascensão de tais movimentos pode ser interpretada como uma alegoria do declínio do mito de superioridade e uma nostalgia, de quando o Ocidente era “vitorioso”?
Fabian Scheidler – Sim, o slogan Make America Great Again (MAGA) é obviamente uma nostalgia. Trump e muitos outros sabem muito bem que a predominância do Ocidente está chegando ao fim. A guerra ao terrorismo que se desencadeou a partir do 11 de setembro de 2001 foi uma tentativa de restabelecer a hegemonia norte-americana no planeta. E fracassou, basta lembrarmos do que ocorreu com o Iraque. O mito do Ocidente segue decaindo porque se apoia, hoje, no genocídio em Gaza. Pelo menos 55 mil pessoas, a maioria civil, crianças, mulheres e idosos, foram assassinadas pelos militares israelitas em Gaza. Bombardearam hospitais e escolas. Os direitos humanos foram gravemente afetados. A Anistia Internacional e a ONU também disseram que é um genocídio e, ainda assim, as nações ocidentais continuam apoiando. Independente se o governo fosse de Biden ou Trump. E o governo alemão também apoiou Israel de forma permanente. O novo governo, agora com o chanceler Merz, anunciou que há um mandado de prisão contra Netanyahu e, mesmo assim, o Ocidente continua afirmando que defende os Direitos Humanos – como por exemplo na Ucrânia. Mas, no caso de Gaza, esses direitos são simplesmente ignorados.
É claro que nesse contexto o mito do Ocidente, que já era algo questionável antes em função de sua credibilidade já ter sido afetada, agora o é muito mais. E isso não diz respeito apenas aos governos de direita, mas os próprios governos liberais. Não apenas a credibilidade se foi, mas também o formato econômico. Os estados do BRICS atualmente já são mais fortes do que os estados do G7. E podemos ver como inclusive o poder militar está ruindo. Estamos em uma fase de transição e o perigo nessa situação é que o Ocidente tenta defender violentamente a sua posição de hegemonia que teve durante séculos.
Claro que é uma loucura manter isso. A esperança, por outro lado, seria que o Ocidente constatasse que seu tempo terminou e que precisa encontrar seu lugar normal no quebra-cabeça mundial, no qual a Europa atue uma força de mediação entre os blocos. Mas ao contrário, os europeus estão se armando fortemente. Constatou-se agora que metade do orçamento dentro da União Europeia está sendo gasto em armamento. Isso quer dizer que o modelo de Estado da Europa está sendo completamente destruído. Estamos em um ponto decisivo, em uma bifurcação. Se o Ocidente agora vai intensificar uma militarização louca, ou se vai aceitar a sua posição no sistema mundial e construir algo novo a partir disso. Precisamos ficar atentos.
IHU – Quais são os riscos que a corrida armamentista protagonizada pela Europa e a militarização das sociedades ocidentais representa para os sistemas democráticos? Como esse cenário pode conduzir a uma autodestruição coletiva e como isso retoma o discurso sobre a era nuclear, de medo e indecisão acerca de uma catástrofe definitiva?
Fabian Scheidler – O rearmamento da Europa é irracional. Os comandantes do exército norte-americano já há mais de dois anos disseram que a Ucrânia não tem como ganhar essa guerra e reconquistar as terras já perdidas. O general chefe do exército ucraniano também afirmou que essa guerra não é possível de ser ganha, tratando-se de uma situação de empate. Assim, a única possibilidade seria negociar. É preciso encontrar a paz através de negociação, por mais que doa, senão de maneira totalmente irracional milhares de pessoas serão sacrificadas sem que algo realmente se altere é uma possibilidade. A União Europeia desde o início negou estes fatos e continua alegando que vai reconquistar os territórios perdidos, e que para isso é preciso prolongar a guerra. A ministra dinamarquesa chegou ao absurdo de dizer que é preferível continuar a guerra a alcançar a paz.
Temos agora uma situação na qual o presidente Trump, que é um mandatário terrível em qualquer outro sentido, mas que nesse momento está tentando alcançar a paz. Por qual razão não sabemos, mas é provável que queira concentrar as suas forças na China. E a União Europeia nega ter um papel construtivo nessa nova constelação dizendo que não é possível negociar porque Putin quer atacar a OTAN e quer conquistar toda a Europa. Essa é a narrativa que na Alemanha ouvimos diariamente. Isso também não é algo real. Mesmo que a direção russa tivesse essa intenção, não há um indício, não seria do interesse russo, mas mesmo se quisessem, não teriam os meios de fazer isso. Portanto, é irracional. É racional somente se houvesse um projeto de que essa militarização da Europa seja algo intencional, que o estado de bem-estar social deva ser desmantelado. Há 50 anos existe essa narrativa, de se desmantelar o estado de bem-estar social, os direitos que foram conquistados desde a Revolução Francesa e a militarização poderia ser um meio para isso.
Noam Chomsky disse certa vez que o Estado social não apenas dá direitos econômicos e sociais aos cidadãos, mas também faz eles participarem da sociedade. Isso não é algo desejável por parte da militarização da Europa. Há uma destruição da participação democrática. Aparatos militares e policiais também podem ser usados muito bem para reprimir dissensos internos e assim os estados ficam cada vez mais instáveis porque a insatisfação da população com a política está ficando cada vez maior e a desconfiança em relação às instituições está aumentando. E aí a tentação é grande de apostar em repressão, sendo decisivo resistirmos a isso.
IHU – Também é importante pensarmos que existem muitos fundamentos econômicos ou do capital e, principalmente, a acumulação, porque a indústria armamentista seria também um ponto, um vetor para um novo ciclo de negócios e acumulação e estímulo ao PIB, que nos últimos anos vem crescendo a passos bem pequenos, sobretudo na Europa. Isso nos faz voltar à questão do capitalismo: Como a sua crítica ao capitalismo dialoga ou se diferencia das abordagens marxistas tradicionais e da teoria dos sistemas-mundos de Wallerstein? Quais as ideias que são articuladas para entender os movimentos contemporâneos na geopolítica?
Fabian Scheidler – A crítica marxista ao capitalismo continua válida. A apropriação da mais valia pelos capitalistas, a desigualdade social e o distanciamento que Marx cita também se trata da dimensão do distanciamento que as pessoas, em certa forma, como diz Adorno, levam uma vida falsa ou são privadas das suas próprias capacidades criativas. Wallerstein e a análise do sistema-mundo ampliou bastante essa análise e isso também tem um papel nos meus trabalhos, nos quais a complexidade geopolítica foi considerada muito mais. Minha análise, no entanto, acrescenta, por um lado, o papel do militar, do militarismo, começando pelo papel das armas de fogo no surgimento do capitalismo. Não é assim que as armas foram usadas para acelerar a acumulação do capital, mas as armas foram desde o início o motor da acumulação.
A outra dimensão que destaco muito mais do que Marx ou Wallerstein é a dimensão ecológica. O fato de que um sistema como o capitalismo que precisa crescer infinitamente não tem futuro em um planeta limitado. Estamos diante da questão de ou continuar destruindo a biosfera e assim destruir a base da nossa vida, ou pensar em instituições totalmente diferentes do ponto de vista econômico e político que nos permitam continuar vivendo nesse planeta. Esses debates começaram há um tempo, mas acho que são decisivos e são um ponto a partir do qual nós precisamos aprender novamente a nos colocarmos questões sistêmicas. Precisamos novamente disso, porque é muito evidente que esse sistema não é compatível com um futuro de vida nesse planeta.
IHU – O poder militar da Rússia se provou inadequado para a guerra moderna convencional, mas seu trunfo segue sendo o imenso e variado arsenal nuclear. A era da dissuasão nuclear está terminando?
Fabian Scheidler – Não acredito que essa era da dissuasão nuclear esteja chegando ao fim. Os dois lados sabem que uma guerra nuclear representa a destruição total. E nem a direção russa, nem a direção americana têm tendências suicidas, mas o risco de uma guerra nuclear mesmo assim existe. Quanto maior a tensão entre os dois poderes nucleares, quanto menos se comunicam, tanto mais alta é a possibilidade de haver desentendimentos e ocorrer um incidente. Tivemos a crise em Cuba nos anos 60 e hoje sabemos que houve uma proximidade muito grande de eclodir uma guerra nuclear nesse período, algo que na época não sabíamos.
Na Rússia bastaria que três capitães de submarinos se unissem para lançar uma ogiva nuclear, pois possuíam licença para lançar ogivas nucleares caso seus submarinos fossem atacados por armas americanas. Dos três capitães de submarinos russos que estavam se comunicando, um disse: “Não, não vamos usar torpedos nucleares porque esse seria o fim da humanidade”. É só por essa razão que continuamos existindo aqui. Esse tipo de desentendimento é muito arriscado na situação nuclear. Embora eu seja um grande crítico do presidente Trump, penso que seja correto que ele continue conversando com Putin. Esse é um dos pontos mais importantes em crises dessa dimensão. Tanto faz o que se pensa do outro lado, mas que se mantenha o canal de comunicação aberto, senão, muito rapidamente se escala para a o ataque nuclear, mesmo que ambos os lados não queiram.
IHU – O pensamento de uma suposta guerra nuclear e o pensamento da devastação ecológica entram no conceito que está no livro Megamáquina, nomeado como tirania do pensamento linear. Que consequências históricas essa tirania produziu? E quais seriam as alternativas teóricas e políticas a esse modo de pensar?
Fabian Scheidler – A tirania do pensamento linear é a ideia de que a natureza e o ser humano podem ser controlados de forma linear através de uma cadeia de ordem e obediência. Essa ideia surgiu nas primeiras sociedades hierárquicas, onde havia comandantes militares e era possível ordenar seus soldados, onde havia reis que podiam dar ordens aos seus subordinados e podiam ameaçar com armas. Há cinco mil anos isso era algo novo. Então, na história, essa ideia foi projetada aos céus e se tornou uma cosmologia divina de um deus dominando a natureza e os seus seres, como um rei domina os seus súditos. Na era moderna capitalista, essa ideia foi transformada outra vez para a concepção de que o ser humano como um engenheiro controla a natureza como um dominador, tal como Deus domina a criação. Essa ideia baseia a origem das ciências naturais, compreendendo o mundo como uma máquina controlada pelos seres humanos. Passados 400 anos, vemos que essa compreensão nos leva à catástrofe. A natureza é complexa demais para poder ser controlada desse modo linear, pois é constituída de ciclos não lineares.
Cada causa tem milhares de efeitos que não podemos prever. E cada efeito, novamente, é causa de vários outros efeitos. Por isso, intervir maciçamente nos sistemas naturais gera muito mais danos do que benefícios. O que precisamos é de uma nova abordagem na tecnologia para cooperar com sistemas vivos complexos. A ideia de que podemos controlar sistemas vivos é extremamente problemática. Podemos ver isso até no trato com as pessoas, porque os seres humanos também são sistemas complexos vivos. Quem lida com crianças sabe que, a curto prazo, é possível obrigá-las a alguma coisa, mas a longo prazo essas pessoas apresentarão condutas estranhas e, em um certo momento, não colaborarão mais.
Então, quanto mais obrigamos um sistema natural a ir para determinada direção, quanto mais tentamos impor uma cadeia de ordem e obediência, tanto mais imprevisíveis os resultados serão. Aquilo que vemos como caos no sistema climático no momento, como essas grandes inundações no Brasil e na Argentina, são consequências dessas intervenções nos sistemas naturais, que não têm consequências lineares.
IHU – A tirania do pensamento linear dialoga com o que o engenheiro ambiental e intelectual caribenho Malcolm Ferdinand chama de dupla fratura da modernidade, que é justamente a ideia de que a natureza e os povos podem ser encaixados em sistemas de hierarquia, dominação e ordenação. O professor comenta também sobre a abertura tecnológica, essencial para que possamos pensar outras formas de organização, mas também de nos relacionarmos com a materialidade. Uma questão que surge a partir disso é que muitos sistemas de controle ideológico e técnico são baseados na exploração e na violência contra outros povos. Como esses projetos extremistas contemporâneos se apropriam dessa lógica de exploração e violência? Muitos estudiosos apontam para o uso estratégico das redes sociais. Concorda com a relação das redes sociais com esses novos projetos políticos extremistas? Como podemos desviar da questão das plataformas, das redes para pensar outras formas de organização política e material?
Fabian Scheidler – Acredito que deveríamos nos referir às mídias sociais como redes antissociais, ou mídias antissociais. O que ocorre com estas redes é que elas se baseiam totalmente em algoritmos controlados pelas grandes empresas do Vale do Silício e que não são transparentes. Em primeiro lugar, o que acontece é o colapso do espaço de debate público, que é altamente manipulado e mercantilizado. As grandes mídias, obviamente distorceram muito a opinião pública, mas através das assim chamadas mídias sociais acontece que cada um está preso na sua própria bolha e o algoritmo diz quem são seus amigos e o que se deve pensar. Isso abre logicamente a possibilidade de manipulação enorme. Quem tem muito dinheiro pode comprar uma manipulação crescente dessas bolhas. Isso nós vemos, por exemplo, na vitória eleitoral de Bolsonaro no Brasil há alguns anos. Nessa ocasião se trabalhou com microtargeting, ou seja, no mercado global é possível comprar dados de usuários, os perfis de determinadas pessoas e alimentar essas pessoas com narrativas mentirosas, que focam exatamente nos seus objetivos. Com isso o poder político se deslocou muito e é de importância decisiva destruir esse sistema, promovendo mídias controladas publicamente com algoritmos transparentes.
As mídias sociais são parte daquilo que chamo de extrativismo emocional, ou seja, essas empresas exploram a necessidade emocional e o isolamento, a solidão das pessoas que aumenta cada vez mais em razão do capitalismo, para elas próprias então obterem capital a partir disso. Nas crises passadas, os grandes bilionários tecnológicos do Vale do Silício enriqueceram cada vez mais. Só na pandemia, esses bilionários, como Jeff Bezos e Elon Musk duplicaram seu patrimônio. Trata-se de uma acumulação que até a própria esfera emocional e política é uma espécie de capital que é extraído, como se fosse na mineração, passível de ser explorado.
IHU – Interessante pensar na extensão temporal da sua pesquisa. Como é o caso da segunda parte do livro que fala mais sobre a questão da modernidade e como ela se articulou ao longo da história. Você afirma que é importante conhecer a nossa própria história para saber o que podemos mudar. O geógrafo e historiador norte-americano Jared Diamond argumenta que a história humana é moldada e existem inflexões principalmente por armas, germes e aço. Concorda que a guerra, as pandemias e o desenvolvimento tecnológico são centrais para compreender as transformações sociais? Acrescentaria outras dimensões, como a análise ecológica? Eu sei que ela pode ser colocada como pandemia, como questão sanitária, mas hoje a questão ecológica deve ser vista sistematicamente como uma nova forma de inflexão para a história?
Fabian Scheidler – Não concordo com Jared Diamond nesse sentido. A razão dos nossos problemas não está na existência de armas, aço ou germes, mas na organização social. Esse é um ponto que o autor não considera. Temos as instituições sociais erradas, como as sociedades de ações de capital, que precisam ser mudadas. Quando mudamos essas instituições, alteramos a lógica de todo o sistema. Isso quer dizer que realmente acredito que aquilo que pode nos tirar dessas crises são novas formas de organização social, que podem nos permitir tirar as armas de circulação. Armas e aço não caem do céu, são produzidos por determinadas pessoas que atuam em determinadas instituições. Se tivéssemos instituições baseadas em entendimento global e no bem-estar comum global, aí poderíamos falar também sobre desarmamento global. Por isso, não acredito que a existência de armas ou de aço seja o destino que determina o nosso futuro.
IHU – Percebemos que as nações ocidentais vivenciam uma crescente insatisfação interna. Um dos maiores exemplos é o desmonte do Estado de bem-estar social. No campo cultural, termos como “aceleração”, “entropia” e “caos” aparecem bastante nesses últimos anos. Você também escreveu um livro que se chama Chaos, The New Age of Revolutions. Podemos interpretar esses tempos como uma transição para algo novo?
Fabian Scheidler – Realmente, o caos surge porque todos os grandes sistemas estão entrando em crise simultaneamente. O maior dos sistemas é a biosfera. Todos os outros: as sociedades humanas, a economia e os Estados são seus subsistemas. A biosfera está na sua maior crise dos seus últimos 66 milhões de anos. Esse é um dos fatores do aumento da instabilidade. Temos, ainda, uma crescente instabilidade geopolítica. O Ocidente está perdendo sua hegemonia. São enormes deslocamentos ligados a enormes riscos, mas também a grandes chances de surgir um mundo policêntrico e multilateral. Há também todo o sistema capitalista mundial que está em crise porque a acumulação do capital não funciona mais corretamente. Isso porque na fase do neoliberalismo dos últimos 40 a 50 anos houve um projeto muito bem-sucedido de tornar os ricos mais ricos. Lucros foram deslocados para paraísos fiscais, os sindicatos foram enfraquecidos, os salários foram abaixados, e assim os ricos foram enriquecendo e os pobres, empobrecendo.
Entretanto, o contrassenso do capitalismo é que agora as pessoas não têm mais dinheiro no bolso para adquirir os bens e serviços oferecidos sem parar por esse sistema. Ou seja, há um problema de aquisição. A classe média nos EUA está sendo destruída, assim como na Europa. As pessoas, agora sem mais recursos financeiros, precisam se endividar. Os lares se endividam, os Estados se endividam, e essas bolhas de endividamento, em certa altura, podem estourar, que é o que nós vimos em 2008. Os custos dessa crise financeira, porém, são deslocados para a população geral e não para a sociedade de ações, o que agrava a crise. Por causa dela, a classe de capital está deslocando sua acumulação para rendas de aluguel, aquisição de imóveis, etc.
Em Berlim, por exemplo, os aluguéis praticamente dobraram, assim como em outros países da Europa. Isso é acumulação através da economia de rendas, o que não resolve nada, porque as pessoas têm menos dinheiro ainda para adquirir qualquer coisa. Ou seja, temos crises ao mesmo tempo na biosfera, na geopolítica, no sistema econômico e, consequentemente, no sistema político. O sistema político no mundo ocidental está em processo de colapso. A confiança nas instituições democráticas está se reduzindo cada vez mais, pois as pessoas estão vendo que os partidos políticos não estão conseguindo responder a essas crises. A ascensão da extrema direita é parte disso, mas não é o fim de tudo. Esses quatro colapsos estão conectados entre si e é deles que resulta a fase caótica de transição na qual nos encontramos. Criar novas instituições políticas e econômicas para encontrar soluções é o desafio que temos que enfrentar para que possamos continuar existindo nesse planeta.
IHU – Uma das manifestações dessa transição é o papel dos países não ocidentais na contemporaneidade. Podemos tomar como exemplo a China, como ela tem navegado por essa fase histórica e o que ela introduz ou desestabiliza na estrutura do poder global?
Fabian Scheidler – A China é obviamente parte do sistema capitalista mundial. Mas tem, ao mesmo tempo, uma história totalmente diferente. A China desenvolveu uma tradição política e econômica que fez prevalecer o Estado em relação ao capital. Podemos ver que o país, na época do Estado moderno, não era endividado como os estados europeus. Contei no início que o poder político europeu se baseia em dívidas junto a comerciantes e banqueiros. Isso é algo que a China sempre evitou; ela manteve certa independência do Estado em relação ao capital e, ao final do século XIX, a frota chinesa era muito maior do que a armada espanhola. Para a China seria fácil conquistar o mundo no lugar da Europa, mas ela usou sua tropa para o comércio e não conquistou colônias. Quando os comerciantes pareciam poderosos demais para o imperador, ele mandou parar a frota. Estamos vendo essa tradição nas diversas dinastias chinesas, até mesmo no Partido Comunista, que podemos entender como certa dinastia também. Ou seja, há uma tradição de longo tempo que diferencia fundamentalmente a China da Europa, uma relação diferente entre o capital e o Estado que leva a outra política externa, que não se baseia em conquistas coloniais.
A China também teve guerras no passado, não é um ator inocente, mas ainda assim ela se baseia principalmente no comércio, e não em conquistas militares. Quando olhamos o confronto entre China e EUA, o que chama a atenção é a assimetria. Os EUA têm algumas centenas de bases militares em torno da China, que, por sua vez, não tem nenhuma em torno dos EUA. A China vê esse cercamento como uma ameaça, porque no século XIX os poderes coloniais destruíram o país na Guerra do Ópio pelo caminho marítimo. Esse período é chamado pelos chineses de “século da humilhação”.
Do século XIX até os anos 1940, até a revolução de Mao, a China era quase um Estado falido, controlado por máfias e forças coloniais. Isso é algo que o país não quer vivenciar de novo, uma das razões pelas quais desenvolveu uma nova rota da seda, uma conexão via terra para a Europa, para não poder ser desconectada do comércio pela via marítima. Para a Europa é muito decisivo que reconheça isso e veja que a China não tem interesse em confronto militar com os EUA, e sim em uma integração que pretende evitar que os EUA conduzam a Europa a uma guerra contra a China, algo que não é vencível.
Esse aspecto da política externa chinesa é um elemento positivo que poderia contribuir para não voltarmos aos ciclos hegemônicos passados e não caiamos numa nova guerra mundial. Depois da derrocada do Império Britânico, por exemplo, tivemos duas grandes Guerras Mundiais para descobrir quem assumiria a nova hegemonia, nesse caso os EUA. Nesse sentido, podemos evitar uma nova guerra porque a China é outro ator, que tem outros interesses.
IHU – A questão do mundo multipolar também retoma a uma provocação: se o Ocidente está preparado para atravessar essa transição a um mundo multipolar sem recorrer à guerra como meio de controle. Quais mecanismos geopolíticos são empregados para preservar a sua hegemonia? Hoje, na era da informação, não podemos deixar de mencionar o papel dos meios de comunicação e das indústrias culturais na sustentação da narrativa de que o ocidente possui um “direito natural” à dominação global. Como enxerga as novas movimentações do Ocidente, que, mesmo diante do declínio das suas instituições, tenta buscar a hegemonia em um mundo que caminha para a multipolaridade?
Fabian Scheidler – Essa é uma pergunta importante. Na Alemanha, por exemplo, não apenas a política, mas também grande parte da imprensa nega reconhecer essas mudanças e detectar que a Europa tenha um papel de mediação no mundo. Ao invés disso, estamos vendo o rearmamento, a ideia de que a Europa tem que ser um grande ator mundial, que a Rússia tem que ser dominada. Isso só vai acelerar a autodestruição. O que nós precisamos de fato é um debate público e amplo de como o Ocidente vai lidar com essa nova situação.
Nos EUA, esse problema é ainda mais agudo, porque a questão é: quem vai arcar com os custos de um império em declínio? Os EUA esvaziaram muito de sua riqueza, assim como a Europa, em uma assimetria estrutural com a exploração dos países do Sul Global. Isso possibilitou a riqueza dos EUA, mas como ela riqueza está diminuindo, a pergunta é quem vai pagar por isso. O programa de Trump é, em grande parte, que os pobres paguem. O programa do Partido Democrata de Biden nem se diferencia tanto do programa de Trump, essas são as lutas atuais presentes. Precisamos de uma distribuição muito mais justa da renda e do patrimônio, já que a aquisição dos recursos globais se torna cada vez mais difícil. Aqui se coloca a questão da distribuição.
IHU – Gostaria de acrescentar algum aspecto nessa questão?
Fabian Scheidler – Sim, para o Sul Global nessa situação surgem muitas novas oportunidades. Terminou a época do Consenso de Washington, ou seja, da ordem neoliberal, quando o Ocidente tinha o poder econômico e impunha programas de adequação estrutural para vender suas coisas ao sul global, bem como tentava regular suas economias. O Sul Global, nesta nova ordem multipolar, tem muito mais chances e oportunidades, e a esperança é que se constitua algo que tenha alguma relação com o movimento antibloco, movimento livre da década de 1950 e 1960 do século passado. Muitos tentaram se juntar, como o Brasil e o Egito, tentando construir uma alternativa aos grandes blocos e, também, querendo fortalecer o comércio Sul-Sul, não sempre transitando pelo Norte Global, mas o Sul entre si. Para isso, hoje, há muitas oportunidades.
Os rompimentos ainda são muitos grandes, mesmo dentro dos BRICS temos contrastes relevantes, mas existe a possibilidade de maiores e mais fortes alianças Sul-Sul. Podemos ver isso nos países africanos, que têm um movimento pan-africano que está ganhando importância. Aqui se conectam tradições dos anos 1960, antes que todos esses governos dos Estados livres dos blocos foram eliminados através de golpes militares organizados pelo Ocidente.
O Ocidente era veementemente contra esse movimento fora dos blocos porque ameaçava o seu poder. Sabemos que o governo da Indonésia, por exemplo, que era líder nesse movimento, foi eliminado por um golpe alimentado pelos EUA. O mesmo é válido para o primeiro governo democrático eleito no Congo, também eliminado por um golpe militar apoiado pela França, Bélgica e EUA. Assim ocorreu em dúzias de países no mundo todo. Também a ditadura militar no Brasil era apoiada pelos EUA. O sentido era sempre o mesmo: que os países do Sul Global não tivessem controle sobre seus próprios recursos, mas que deslocassem esses recursos a um preço barato para o norte. A fraqueza do Norte permite aos países do Sul alterar algo nesse sentido, e é muito importante aproveitar essas oportunidades.
IHU – Você falou que está escrevendo mais sobre a questão ecológica e sobre a natureza, complementando ideias de The Stuff We Are Made of, Rethinking Nature and Society (A matéria de que somos feitos, repensando natureza e sociedade). Quais ideias está elaborando para que justamente os três pilares da sociedade moderna – o capital, as ideologias e o Estado – consigam ser transformados e que outras instituições possam trabalhar mais a ideia da ecologia, principalmente da catástrofe ecológica que estamos vivenciando?
Fabian Scheidler – O livro The Stuff We Are Made of, Rethinking Nature and Society é um livro que foi lançado em alemão; em inglês ainda não, mas logo vai surgir. O tópico central desse livro é a desconstrução da imagem mecanicista do mundo. Esse pensamento mecanicista é algo que surgiu junto com o Estado moderno, a ideia de que o mundo é uma máquina, composta por muitos pequenos átomos. Em um primeiro momento, era uma ideia de que o universo e os planetas funcionam como uma máquina, um relógio. Depois, filósofos como Descartes e Hobbes consideravam que todos os seres vivos, inclusive os seres humanos, também eram máquinas, como robôs biológicos. Essa é uma linha que nos leva diretamente à Inteligência Artificial e à ideia da robótica, mas é apenas uma ideia antiquada com novas vestes.
Neste livro, decomponho esta imagem mecanicista do mundo e demonstro que esta imagem é errada. Primeiramente, a Física presumiu que tudo se baseava em corpos materiais chamados de átomos. Com a Teoria da Relatividade de Einstein, ficou claro que toda matéria é, ao mesmo tempo, energia. Não há componentes materiais fixos, tudo está em movimento – este foi o primeiro passo.
O segundo grande passo foi a Física Quântica demonstrar que dentro dos átomos não há nada físico, que são relações flutuantes de energia. Isso acabou totalmente com as nossas ideias de espaço e matéria, ou seja, a imagem do Universo que tínhamos até então foi completamente alterada. Tudo, na verdade, seriam relações energéticas. O mundo não é composto por átomos firmes e fixos, mas de relações.
O terceiro aspecto é a filosofia da vida. Os seres humanos têm seu mundo interior, aquilo que chamamos de consciência. Essa consciência ou o fato de que vivenciamos, sentimos algo, que podemos perceber qualidades, cheirar, amar, odiar, é algo inexplicável nessa imagem mecanicista do mundo. Se o mundo é uma máquina, não fica claro de onde vem o espírito dessa máquina. Se juntarmos essas duas ideias, nós podemos ver que o contexto do Universo, possivelmente, é do tipo espiritual ou de algo muito diferente do que até então suspeitamos. Isso tem muitas consequências também de natureza ecológica e econômica. Se tudo é um tecido de percepções, de seres que percebem, se trata de alterar as relações para que possamos continuar vivendo nesse planeta sem destruir essas relações. Essa é, no fundo, a história desse livro: uma história cheia de esperança porque demonstra que o Universo, na verdade, é muito mais interessante, muito mais misterioso, muito mais belo do que os tecnocratas atuais tentam nos mostrar.
IHU – No site do Fabian Scheidler é possível encontrar todos esses títulos que mencionamos ao longo da fala. É importante comentar que, além de escritor, Scheidler é dramaturgo e escreve para televisão, teatro e ópera. Em 2009, ele cofundou o noticiário Kontext TV, que desde então produziu mais de cem edições dedicadas a temas relacionados à justiça social e global. Fabian, há algum aspecto que não discutimos e que você gostaria de destacar?
Fabian Scheidler – Penso que esses temas são inesgotáveis e poderíamos falar muito mais sobre todos eles. Gostaria de indicar ainda que alguns artigos meus também estão disponíveis no Le Monde Diplomatique no Brasil, em português, podendo ser acessados na minha página na internet disponível aqui.