Fabian Scheidler transmite serenidade neste mundo acelerado. Seu gesto calmo pode ser confuso, pois seu trabalho tem um poder explosivo. Este diretor de teatro, historiador e jornalista fez seu nome no mundo do pensamento crítico na Alemanha. Ele conduziu dezenas de entrevistas para seu canal de televisão online Kontext TV, nas quais falou com os principais nomes do pensamento internacional, juntamente com o jornalista David Goeßmann. Scheidler conseguiu condensar essa visão crítica em um livro que está entre os mais vendidos na Alemanha e em outros países e que agora foi traduzido para o espanhol.
Em O Fim da Megamáquina, o autor nos faz repensar os fundamentos sobre os quais se baseia nossa civilização moderna, tanto no plano material quanto no simbólico. Em suas páginas, Scheidler analisa a questão da origem da dominação de alguns povos sobre outros e como chegamos ao sistema global em que nos encontramos ao longo dos séculos. A origem da série de crises interligadas: destruição ecológica, desigualdade social, esgotamento dos recursos naturais, escravidão e guerras.
Mas este não é um livro sombrio que nos deixa presos no desespero. Pelo contrário, em suas palavras há um convite a imaginar novas formas de viver, de nos organizar, de desmantelar o que nos oprime para reconstruir o que realmente importa. É um texto esclarecedor e um chamado à ação e à reflexão. Uma revisão dos valores e fundamentos materiais nos quais o sistema capitalista se baseia a partir de uma perspectiva global. Nesta entrevista, conversamos com Scheidler (Bochum, Alemanha, 1968) sobre como chegamos a esse ponto sem retorno, como as raízes do poder global estão interligadas às nossas vidas cotidianas e o que podemos fazer para fazer parte da mudança.
Fabian Scheidler é o autor de O Fim da Megamáquina: nas pegadas de uma civilização em colapso (Icaria Editorial e Abya-Yala Editorial, Equador).
A entrevista é de Carmela Negrete, publicada por Ctxt, 23-02-2025.
Eu gostaria de lhe perguntar sobre algo que você não menciona em seu livro: as novas tecnologias que, talvez, desde a publicação da obra em 2015, tenham assumido um papel maior nas guerras. Estou me referindo aos drones. Se você fosse escrever seu livro novamente hoje, incluiria tudo isso?
Sim, definitivamente. Todos esses novos sistemas de armas são parte de um processo que vem se desenvolvendo há mais de quinhentos anos. O que chamo de "megamáquina" é um sistema social que surgiu no final da Idade Média e início do período moderno. Os militares, e em particular a tecnologia de guerra, desempenharam um papel crucial na ascensão do capitalismo. As armas de fogo, que não foram inventadas na Europa, mas na China, passaram a ser amplamente utilizadas durante a Guerra dos Cem Anos, no século XIV. Esse desenvolvimento levou a uma corrida armamentista explosiva, redundância à parte, que continua até hoje.
Por que acha que as armas foram tão importantes para o triunfo do capitalismo?
Porque para adquiri-los eram necessárias grandes somas de dinheiro, e os soberanos não tinham esses recursos. Eles tiveram que tomar empréstimos de banqueiros e comerciantes, especialmente em lugares como Gênova e outras cidades europeias. Isso significa que os Estados, desde o início, estavam endividados com o grande capital para financiar a compra de armas. Com esses instrumentos de guerra e mercenários, porque naquela época só existiam exércitos profissionais formados por soldados contratados, outros territórios foram invadidos. Os saques e os despojos dessas campanhas eram usados para pagar banqueiros e comerciantes, gerando o que hoje chamaríamos de “retorno sobre o investimento”. Desde o início, a guerra foi um negócio lucrativo para o capital. Os Estados eram as entidades que realizavam as guerras, mas no final quem realmente se beneficiava eram os comerciantes e banqueiros.
Como a conexão entre capital e Estado evoluiu ao longo dos séculos?
O conceito de complexo militar-industrial, popularizado por Eisenhower em seu discurso de despedida no início da década de 1960, tem raízes profundas na história. Na verdade, podemos traçar essa relação até mesmo desde os tempos antigos. No meu livro, falo sobre o que chamo de “complexo metalúrgico”: a conexão entre mineração, produção de metais, fabricação de armas e sistemas financeiros. Os primeiros sistemas financeiros, como moedas baseadas em ouro e prata, estavam intimamente ligados a esses processos. Tudo isso está intimamente interligado desde então.
Nesse sentido, qual o papel das tecnologias de guerra modernas, como os drones?
Elas mudam a maneira como as guerras são travadas. Mas, no geral, tudo isso ainda faz parte de um grande negócio. Muitos dos conflitos atuais são travados por razões geopolíticas e econômicas, mas alguns deles servem simplesmente para enriquecer o complexo militar-industrial. Um exemplo claro é a guerra no Afeganistão, que o Ocidente manteve por vinte anos. No Pentágono, muitos sabiam que essa guerra não tinha sentido estratégico, mas gerava lucros extraordinários para a indústria de armamentos. O prolongamento de conflitos como este demonstra como a guerra, em muitos casos, se torna um meio de enriquecimento de certos setores do capital.
Seu livro fez muito sucesso. Ele foi traduzido e até é usado em faculdades como material educacional, talvez porque conte não apenas essa história, mas também a da ideologia social e seus mitos. Pode explicar para aqueles que ainda não leram?
Claro. Vivemos em uma sociedade cheia de mitos ideológicos sobre a chamada civilização ocidental. Isso é algo inerente a qualquer sistema de poder: cada sistema precisa de legitimação e de uma mitologia que o sustente. Nossa mitologia, que chamo de "o mito do Ocidente", é a narrativa de que a civilização ocidental é superior em todos os aspectos. Essa ideia é constantemente ouvida nos discursos de políticos ocidentais, reforçando a percepção de uma suposta superioridade cultural, política e moral. No início, essa narrativa estava revestida de religião. Foi promovida a ideia de que o cristianismo era a única religião verdadeira, e que isso dava não apenas o direito, mas também o dever, de invadir outros países e impor nossas verdades. Esse discurso foi a justificativa do colonialismo durante séculos.
Nos séculos XVIII e XIX, surgiram novos conceitos, como o de "civilização". Dizia-se que nós éramos os civilizados, enquanto os outros eram "selvagens". Nós representamos o progresso; os outros estavam atrasados ou estagnados. Após a Segunda Guerra Mundial, essa narrativa foi transformada na ideia de "desenvolvimento". De acordo com essa nova perspectiva, nós éramos desenvolvidos e outros eram subdesenvolvidos. Esses rótulos, mesmo que mudem de nome, perpetuam a mesma lógica de justificar a dominação e a intervenção. Hoje em dia, as pessoas falam sobre "valores ocidentais", como se o Ocidente representasse a civilização e o resto do mundo fosse essencialmente bárbaro. No entanto, essa narrativa contrasta fortemente com a realidade de 500 anos de expansão capitalista, que tem sido, em grande parte, uma cadeia ininterrupta de genocídio e destruição em massa. Testemunhamos uma sucessão de genocídios na América do Sul, América do Norte, África, Ásia e muitos outros lugares. Como mencionei, nenhuma outra sociedade gerou guerras com um poder destrutivo comparável ao da civilização ocidental, impulsionada pelo capitalismo.
Neste momento temos meios que podem aniquilar a humanidade e a natureza, como armas nucleares. Nenhuma outra civilização desenvolveu tantas maneiras de destruir a vida na Terra, incluindo mudanças climáticas, extinção em massa de espécies e outros desastres. E ainda assim continuamos a manter o mito de que criamos a única civilização verdadeira e superior. Esse mito está começando a ruir, talvez até mesmo a entrar em colapso.
No livro, você conecta essa evolução com o pensamento apocalíptico. Por quê?
A história do pensamento apocalíptico remonta a uma época anterior ao cristianismo. Surgiu em resposta aos grandes impérios, como o grego e o romano, cujas instituições de dominação eram baseadas em exércitos financiados com moedas de prata. Esses exércitos possibilitaram uma repressão em uma escala nunca vista antes. A resposta do povo oprimido foi, em muitos casos, um pensamento apocalíptico. É um tipo de ideia que nasceu da impotência: quando não há possibilidade de derrotar os poderes terrenos, que concentram todo o domínio econômico, militar e ideológico, a única esperança está na intervenção divina.
Nos tempos antigos, isso se tornou tão radical que, no Apocalipse de São João, é afirmado que o mundo inteiro deve ser destruído para dar lugar a uma nova criação: a Jerusalém celestial. Esse pensamento surgiu inicialmente da perspectiva dos oprimidos, que imaginavam um novo mundo que substituiria o antigo. Mais tarde, nos tempos modernos, o pensamento apocalíptico assumiu novas formas. Ela se combina com a lógica capitalista, onde a destruição da natureza é justificada em nome da criação de um novo mundo criado pelo homem. Vemos a natureza sendo destruída e substituída por artefatos humanos, um reflexo dessa versão pervertida do pensamento apocalíptico. É interessante como, ao lado do mito de que a civilização ocidental representa o progresso eterno, coexiste uma narrativa apocalíptica que inclui a ideia de colapso.
Ele não adota uma postura anticomunista em relação à União Soviética, mas critica esse sistema.
É importante distinguir entre os ideais que impulsionaram a Revolução de Outubro de 1917 e o que realmente resultou dela. No meu livro, tento apresentar uma visão diferenciada, mesmo que brevemente. A Revolução de Outubro inicialmente trouxe muitos avanços, especialmente para um país que estava sob o regime autoritário do Czar. Houve um progresso econômico e social significativo em seus estágios iniciais. No entanto, o sistema também desenvolveu falhas e contradições profundas, que não podemos ignorar. Os revolucionários também foram atacados do exterior. Foram, portanto, quatro anos de guerra civil e, naquele contexto, é claro, foi muito difícil construir uma democracia socialista. Acho que um dos problemas na Rússia foi que, aos poucos, a ideia de sovietes, ou seja, uma organização baseada na democracia de base, foi sendo relegada. Na verdade, o nome União Soviética significa "união dos sovietes", mas essa ideia foi gradualmente marginalizada e eventualmente eliminada. Stalin essencialmente enterrou a ideia socialista e comunista, estabelecendo um regime autoritário. Contudo, não devemos confundir isso com as ideias originais que deram início ao movimento.
Ele também analisa a dinâmica que se desenvolveu na China após a Revolução Maoísta…
A Revolução Maoísta e sua vitória no final da década de 1940 representaram um ponto de virada na história chinesa. Foi um evento importante porque, até então, as potências coloniais haviam devastado a China, transformando-a em um estado falido. Na China, as pessoas se referem a ele como o “Século da Humilhação”, um período em que as potências coloniais usaram meios militares e econômicos para desestabilizar e explorar o país. A Revolução Maoísta pôs fim a esse período: expulsou as potências coloniais e também as máfias que colaboravam com elas. Além disso, iniciou-se a construção de um sistema social. Nos primeiros anos do governo de Mao, houve avanços significativos. Políticas foram implementadas para melhorar a vida da população e grandes esforços foram feitos em áreas como alfabetização, saúde e redistribuição de terras. Entretanto, estágios posteriores, como o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, foram muito mais problemáticos. Essas iniciativas causaram enorme sofrimento e, em muitos casos, reverteram as conquistas iniciais.
Hoje, a China apresenta um panorama complexo. Por um lado, é claramente parte do que chamo de "megamáquina", isto é, o sistema capitalista global. Possui elementos capitalistas em sua economia, mas ao mesmo tempo mantém forte controle estatal sobre o sistema financeiro e a economia em geral. Além disso, algo crucial é sua tradição de política externa. Embora a China tenha travado guerras em diferentes momentos de sua história, especialmente durante dinastias imperiais, a maioria desses conflitos se concentrou em proteger e defender suas fronteiras. A China não tem uma história colonial no sentido clássico, como a das potências ocidentais, que conquistaram e exploraram outros países militarmente. A influência da China historicamente se baseia no comércio, e essa tradição continua até hoje. Acredito que isso oferece uma oportunidade no contexto do confronto entre EUA e China, uma rivalidade extremamente perigosa. Embora as tensões atuais sejam preocupantes, a tradição da China de priorizar o comércio em detrimento da conquista militar pode abrir caminhos para uma abordagem mais equilibrada a essa rivalidade global. No entanto, tudo dependerá de como a dinâmica geopolítica evoluirá nos próximos anos.
Os nazistas alemães e os fascistas italianos, assim como o próprio Franco, foram amplamente financiados pelos industriais da época. Não aprendemos nada?
Os industriais desempenharam um papel crucial na ascensão do fascismo e do nazismo. O financiamento dessas forças políticas fazia parte de um esforço para desviar a atenção dos conflitos inerentes ao sistema capitalista, especialmente o confronto entre capital e trabalho, e eles o fizeram usando bodes expiatórios. Na Alemanha, por exemplo, os judeus se tornaram o principal alvo das projeções, culpando-os por todos os males. Os comunistas também foram alvos. Além disso, o regime desviou a atenção para inimigos externos, como França ou Rússia. Essa estratégia teve uma função fundamental: canalizar a raiva social para evitar que o sistema capitalista fosse questionado.
Os mecanismos que observamos na primeira metade do século XX estão de volta. Hoje, as contradições do capitalismo geram sofrimento e descontentamento, e as forças de direita canalizam essa raiva para novos bodes expiatórios, como os migrantes. Vemos isso em toda a esfera ocidental. As forças liberais, no entanto, também desempenham um papel nessa dinâmica. Por exemplo, eles colocam a culpa em potências estrangeiras como a Rússia, projetando tudo o que é negativo nelas. Essa narrativa simplista serve para desviar a atenção da profunda crise que o sistema capitalista enfrenta, um sistema que não pode mais garantir um futuro sustentável para o planeta.
Os Verdes alemães se alinharam a essas forças liberais. Como isso afeta o contexto atual, como a guerra na Ucrânia ou o genocídio em Gaza?
Os Verdes são um caso emblemático. No início, eles eram uma força anticapitalista, comprometida com a paz, o desarmamento e uma agenda ecológica transformadora. Hoje, porém, eles se tornaram uma das principais forças promotoras da militarização. Seu apoio à corrida armamentista e seu alinhamento com políticas que podem causar conflitos globais são profundamente alarmantes. Essas duas guerras são sintomas claros da transição que estamos vivenciando. Na edição em espanhol menciono como o conflito na Ucrânia faz parte de uma reconfiguração geopolítica. A hegemonia ocidental, liderada pelos Estados Unidos, está chegando ao fim. Estamos entrando em uma era multipolar, algo que é inevitável. A questão é se o Ocidente aceitará essa perda de poder sem nos arrastar para um conflito catastrófico, como uma terceira guerra mundial. Os Verdes estão agindo de maneira altamente hipócrita ao apoiar um governo de extrema direita em Israel, que foi acusado de cometer genocídio perante um tribunal internacional. Junto com outros partidos que afirmam defender a democracia, eles mostraram que seu comportamento é marcado por padrões duplos.
Poderíamos dizer que O Fim da Megamáquina é uma história de dominação do homem sobre o homem?
Sim. A principal razão pela qual comecei este livro foi para tentar descobrir quais são as raízes mais profundas das grandes crises que enfrentamos hoje. Refiro-me à destruição da natureza, ao risco de guerra nuclear e à extrema desigualdade em que vivemos. Não basta olhar apenas para os últimos 40 anos de neoliberalismo, embora ele tenha um papel importante e seja algo que precisamos superar. Mas as raízes desses problemas são muito mais profundas. Isso nos leva à criação do sistema capitalista mundial há cerca de 500 anos. Mas mesmo isso não surgiu do nada. Se continuarmos investigando, chegaremos às origens dos sistemas de dominação. É claro que sempre houve tentativas de poder e dominação, mesmo em comunidades nômades. Mas naquela época, não era possível acumular riqueza e poder suficientes permanentemente para oprimir os outros.
O enigma histórico é, em essência, como foi possível para uma maioria aceitar que uma minoria a governasse. No livro descrevo como os primeiros sistemas de dominação surgiram na Mesopotâmia. Essas foram as primeiras formações permanentes de poder militar, econômico, estrutural e ideológico. O que vemos hoje, a megamáquina capitalista, é uma nova forma de acumulação de poder, propriedade e privilégio nas mãos de poucos. Mas não é o único caminho possível. Superar as crises que vivemos significa limitar e, a longo prazo, superar essa dominação do homem sobre o homem. Mudanças internas serão necessárias nos países ocidentais. Um exemplo é o movimento em Berlim para expropriar grandes grupos imobiliários e transformá-los em ativos comuns. Mudar as relações de propriedade é fundamental, como Marx já destacou no Manifesto Comunista. Somente assim poderemos caminhar em direção a um futuro mais justo.