05 Outubro 2024
Dipo Faloyin estava cansado de ouvir suposições sobre o país onde cresceu: a Nigéria. “Cansei de ouvir pessoas que presumiam que eu tinha leões e tigres como animais de estimação em casa”, afirmou. Agora, Faloyin mora em Londres, onde trabalha como jornalista e editor-chefe da Vice News.
Ele também é o autor de África no es un país: y otros estereotipos que debemos erradicar, no qual ressalta o que muitas produções culturais ocidentais tendem a esquecer: que na África existe “1,4 bilhão de pessoas, mais de 2.000 línguas e 54 países separados, com desejos, esperanças e sonhos próprios e direções diferentes”. A sua mensagem é clara: o continente está cheio de oportunidades e a sua criatividade e energia são necessárias para enfrentar os desafios que vêm pela frente.
Dirigido a curiosos, este livro publicado por Capitán Swing é a base para compreender de onde vem a concepção que, segundo Faloyin, temos atualmente da África: um continente composto por “Estados fracassados”, morte e muito sofrimento. Uma visão que, segundo o autor, só através da educação e do conhecimento da história será possível mudar.
A entrevista é de Maria d'Oultremont, publicada por El Diario, 03-10-2024. A tradução é do Cepat.
Você afirma que “a África sempre foi vista e tratada mais como uma ideia do que como um lugar”. Este é o principal problema que nós, ocidentais, temos?
Esta tese é um dos fundamentos do livro. Quando fechamos os olhos e pensamos na África, no imaginário comum existem duas ideias. A primeira é a pobreza; a segunda, o safári. E essas ideias correspondem à visão do continente como uma missão, como um lugar que precisa ser salvo ou um lugar onde se pode interagir com os animais e depois partir.
Não se pensa nele como uma realidade ou como um lugar onde – também – acontecem coisas corriqueiras como acordar, ir para a escola, ir para o trabalho, ir a um restaurante e, inclusive, a um bar para se reunir com os amigos. Essa é a diferença fundamental. Quando se escuta a palavra África, pensa-se em causas, problemas, um lugar onde há dor e desastre. Nesse sentido, África torna-se uma palavra que representa algo que não se baseia nas vidas individuais das pessoas. E é isso que considero que precisa mudar.
E como isso pode ser feito?
A partir de pessoas que pensam como eu. Pessoas que veem a África como uma região interconecta, onde vivem 1,4 bilhão de pessoas, mais de 2.000 línguas e 54 países separados, com desejos, esperanças e sonhos próprios e direções diferentes. Quando começarmos a ver o continente a partir deste reino de diversidade e curiosidade, será muito mais fácil passar da ideia de dor e sofrimento para uma visão do continente com as suas diferenças.
A visão da África como uma “missão” faz lembrar a “missão civilizadora” própria do colonialismo. Em um dos capítulos, você destaca a perpetuação desse imaginário africano através da intervenção externa e também das organizações humanitárias, vistas como a síndrome do ‘salvador branco’.
Esse foi o mito que começou na Conferência de Berlim, em 1884 [1], e é algo que temos de mudar. Hoje, no Reino Unido, na Alemanha, na França e na Bélgica, a forma como se fala do continente é como este lugar obscuro onde quase nada existia antes dos europeus virem para “civilizá-lo”.
Além disso, as campanhas humanitárias favoreceram que vejamos o continente através de lentes muito simplistas, com um impacto muito negativo e que deu lucro por meio da reprodução de certas imagens e esquecimento de outras. Não é que não existam crises na África, porque existem. A questão é que estes problemas são próprios de uma região concreta.
No entanto, nós [Ocidente] temos uma representação da África como se fosse única, sem ver o que existe além. Vemos o que a televisão nos ensina.
Como podemos garantir que os investimentos e a ajuda verdadeiramente beneficiem as comunidades locais e não apenas os investidores estrangeiros ou as elites políticas locais?
Essa é uma preocupação muito válida. Penso que uma das chaves é a transparência e a prestação de contas sobre como os fundos são utilizados. As comunidades locais devem ser envolvidas na tomada de decisões sobre como o dinheiro é investido e quais são as prioridades.
Também é importante que os investimentos sejam direcionados para projetos que realmente beneficiem a maioria da população, como infraestruturas, educação e saúde. E precisamos de mecanismos para garantir que os lucros destes investimentos sejam reinvestidos nas comunidades e não desviados para outros lugares.
O livro mostra todos os estigmas que herdamos do colonialismo. Como devemos descolonizar a mente?
Por meio da educação. E para isso devemos primeiro estar conscientes e entender as realidades que o colonialismo espalhou e o que fez. Basta saber como começou o colonialismo na África, quais foram os seus motivos, as suas implicações e como afetou a divisão das fronteiras para mudar a narrativa externa do continente.
Se isso fosse feito, deixaríamos de confundir esta terra onde as pessoas estão sofrendo “sem qualquer motivo” para percebermos o quanto dela foi deliberadamente prejudicada por essas pessoas [colonos]. Não pretendo condenar ninguém, mas é necessário entender a história para garantir que não a repetiremos no futuro.
E é por isso que escrevi este livro, para mostrar as realidades com as quais talvez não tenhamos crescido. Somente com o conhecimento é possível mudar de atitude – e de ideias – para estar em conformidade com a realidade que existe.
E essa visão da África como um continente pobre do qual todos querem fugir é uma narrativa cada vez mais utilizada pela extrema direita para impedir a imigração. No entanto, 80% da imigração africana ocorre dentro do continente...
Sim, é um desafio enorme. E penso que a narrativa sobre a África e a imigração é uma das mais prejudiciais e persistentes. É verdade que a maioria dos africanos migram dentro do continente, e isso deve ser algo sobre o qual devemos falar mais, mostrando como os africanos estão buscando oportunidades em outros países africanos e como isso está fomentando o desenvolvimento e a cooperação dentro do continente.
A narrativa na Europa é muitas vezes muito limitada e centrada na imigração para a Europa, mas não é de forma alguma uma representação da realidade africana.
O livro tenta mostrar que não há tanta diferença entre as sociedades africanas e as ocidentais. Pode nos dar exemplos?
Eu te respondo assim: qualquer coisa que te interessa também existe no continente africano. Se você adora as cidades pequenas, os povoados e paisagens com longas caminhadas, você vai encontrar. Se você gosta de cidades malucas, restaurantes e bares, também. Se você quer surfar, ir à praia, ser voluntário ou ganhar dinheiro e criar um negócio, também.
Talvez existam conexões entre culturas específicas. Por exemplo, as pessoas dizem que nigerianos e os italianos são muito parecidos porque existe um pouco de caos, paixão e amor pela comida. Até porque em ambos os países dirigimos de forma caótica.
A base do livro e também o meu conselho é que tudo o que for de seu interesse, que desperte curiosidade, também está no continente e, talvez, de uma forma que você ainda não experimentou. A conexão entre as culturas começa quando procuramos coisas ou interesses que são verdadeiros.
A Nigéria tem uma indústria cinematográfica muito importante. De fato, é conhecida como Nollywood. Por que deveríamos consumir mais seus filmes e em que se diferencia de Hollywood?
Nollywood é uma indústria que luta para que vejamos os africanos como seres humanos que vivem vidas que são complicadas, mas também corriqueiras. Mostra as lutas diárias, as alegrias, as dinâmicas que acontecem quando as pessoas estão buscando construir as suas vidas. Histórias de vida que podem ser duras, dramas amorosos; filmes sobre amizades, traição e honra.
Nollywood conta histórias da vida diária com respeito, o que é algo óbvio e fundamental, mas que nem sempre acontece. Se Hollywood decidir fazer algo semelhante, então, penso que veremos muitos avanços. As histórias podem ser contadas de diferentes formas.
Poderia nos falar sobre o ‘Ano do Retorno’? Que implicações tem para a diáspora africana?
O Ano do Retorno foi uma iniciativa estabelecida pelo Governo de Gana, que estimulou as pessoas de toda a diáspora negra a retornar ao continente. Foi uma campanha para voltar “para casa” [para comemorar os 400 anos transcorridos desde que o primeiro navio de escravizados atracou em Jamestown, Virgínia, nos Estados Unidos. Estima-se que aproximadamente 17 milhões foram vendidos em navios para a América]. Houve um incentivo para que a diáspora negra voltasse e explorasse o que havia perdido, embora muitos deles não soubessem de que país procediam.
Gana oferecia a nacionalidade a pessoas de toda a diáspora negra e, em alguns casos, até ofereceu casas. Esta iniciativa coincidiu com o Black Lives Matter. Ou seja, com um momento em que as pessoas negras de todo o mundo talvez estivessem se sentindo discriminadas e buscando uma conexão cultural.
Foi uma decisão realmente interessante do Governo de Gana criar um projeto que encorajasse as pessoas a retornar para casa, para o que talvez considerassem a sua casa ou o que poderia ser a sua casa. Podia ser apenas uma visita ou uma mudança completa. O objetivo era começar a construir algum tipo de conexão que talvez tivessem perdido.
Black Lives Matter é um exemplo de movimento internacional que, de alguma forma, também reivindicou o passado colonial europeu e o seu legado. Um movimento que você cita no livro é o #EndSARS, uma mobilização pacífica que nasceu em oposição à brutalidade policial nigeriana realizada pelo Esquadrão Especial Antiroubo (SARS, em inglês). O que ele nos ensinou?
#EndSARS [2] é uma história maravilhosa de organização local, ativismo da juventude, aprendizagem com o passado e união de diferentes grupos étnicos. Uma mistura de todas as coisas que gostaríamos de ver em uma geração de jovens ativistas que estão buscando mudar as condições de seu país [Nigéria]. E o papel da juventude é muito importante, porque é exemplo muito bom da capacidade de agência, uma demonstração de como as pessoas estão lutando por suas nações.
Além disso, o #EndSARS foi especialmente mobilizado por mulheres que faziam parte da coalizão feminina [Feminist Coalition], que trabalharam para tentar se organizar de uma forma que não se concentrasse apenas em si mesmas, mas também em benefício dos outros. Embora o patriarcado também exista na África e, infelizmente, as mulheres permaneçam subjugadas aos homens, exemplos como este mostram que existem comunidades e movimentos ativistas que são capazes de liderar de uma forma não necessariamente vista em outros países ocidentais.
E, como você diz, o ativismo, como no caso do #EndSARS, “não era de líderes, mas de liderança”. No entanto, vemos que na África persiste a ideia da figura do líder e dos “estados fracassados”… É necessário fomentar essa liderança? De que modo?
Através das pessoas. Para alcançar uma mudança sustentável, esta necessita vir das pessoas. E, a partir daí, esperar e ver se trará alguma mudança. Isto, sim, é diferente em cada país e vai variar dependendo dos anseios das populações locais, dos movimentos civis, dos jovens e dos grupos ativistas... Contudo, antes, é necessário a mobilização. Ninguém mais pode fazer isso por elas.
Durante o período da independência, houve certos líderes que apostaram no pan-africanismo. No entanto, a construção de um novo país do zero talvez tenha deixado esta ideia em segundo plano... Foi esse o “fracasso” destes Estados que, agora, percebemos como falidos?
São coisas diferentes. O pan-africanismo não desloca ou substitui necessariamente os desejos individuais dos líderes. O pan-africanismo é entendido como uma forma de olhar coletivamente para o futuro, e isso é algo que por si só é complicado.
Durante a década da independência, Nkrumah [o primeiro presidente de Gana] foi um dos líderes que percebeu as experiências traumáticas que o colonialismo deixou nas sociedades africanas. Por isso, Nkrumah pensava que seria necessário buscar o futuro juntos. Naquele momento, houve um número de líderes independentes que, por razões compreensíveis, queriam se concentrar nos países pelos quais tinham lutado e criar essas nações que julgavam merecer.
Não se pode dizer que o pan-africanismo de Nkrumah teria funcionado, porque, mais uma vez, um movimento pan-africano exigiria uma liderança para unir diversos povos – com as suas respectivas histórias – sob um único anel, e isso por si só poderia ter levado a lutas constantes e a desacordos. Em vez disso, o que obtivemos foram países individuais buscando enfrentar o futuro, a assumir o herdado e tentar fazer da nova nação um lugar melhor. Não é algo fácil, mas, pelo contrário, bem complexo.
Os países africanos foram essencialmente criados para fracassar. O Ocidente não se lembra que em suas origens estão acordos de negócios. Então, agora, olham para estes países como “estados falidos”. Mas, repito, para entender o que se passa é imprescindível desejar saber e perceber que só a história nos ajudará a superar estes preconceitos.
Significa que os poderes coloniais influenciaram nos direitos de poderes de certos ditadores?
Durante a Guerra Fria e as disputas entre os Estados Unidos e a União Soviética, estas superpotências empoderaram certas figuras autoritárias. Também se dividiu e se confrontou diferentes grupos étnicos, apoiando alguns e gerando rivalidades com outros. Foram formados, receberam armas e também muita riqueza para que subjugassem alguns grupos.
Há muitas dinâmicas do colonialismo que impactaram, mas não foram debatidas. E em vez disso, sem levar em consideração esses impactos do colonialismo, olha-se para os africanos e se pergunta: o que há de errado com eles? Por que não apreciam a democracia? Mas esse não é o caso. Não, esse “desastre” não é necessariamente representativo do continente.
Se excluíssemos as fronteiras estabelecidas na Conferência de Berlim, considera que os problemas étnicos acabariam? Ou já é tarde?
É uma questão interessante e foi o que mais apareceu depois da independência. O que você faz com essas fronteiras? Por onde começa? Obviamente, é um processo complicado e, como você diz, é tarde demais para começar a redesenhar fronteiras e mapas a nível continental. Agora, já existem novas histórias, línguas. Há tradições que foram perdidas, mas outras que foram conquistadas.
Agora, na África, está surgindo um orgulho. Os países estão criando um patriotismo para as gerações mais jovens que nada conheceram além desses “estados novos”, e isso é importante considerar. A maioria dos países africanos tem 60 anos e esta geração mais jovem que busca ter um impacto em seu país já está alcançando a idade de governar. É preciso observar se a geração millennial poderá ter um grande impacto na reestruturação destes países e de que modo.
[1] A Conferência de Berlim de 1884, liderada por Otto von Bismarck, juntamente com as outras potências europeias, foi o evento histórico para o colonialismo que pôs fim à configuração geopolítica do continente africano.
[2] O movimento #EndSARS nasceu em protesto contra as SARS, uma unidade da força policial nigeriana responsável por enfrentar crimes violentos, roubos e sequestros. No entanto, desde a sua formação, em 1992, é acusada de realizar execuções extrajudiciais e prisões ilegais, bem como de extorquir jovens.
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“O Ocidente não se lembra que os países africanos foram criados para fracassar”. Entrevista com Dipo Faloyin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU