15 Janeiro 2025
"É nessa diferenciação ético-filosófico-política que Bobbio recuperou essa diferenciação entre a esquerda e a direita. Esta diferença trabalha com uma metáfora de linha em que teríamos um centro, a esquerda e a direita; razão pela qual se fala também de centro-esquerda e o centro-direita; e, por fim, a extrema-esquerda e a extrema-direita", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Com o segundo mandato de Trump e esse avanço da extrema-direita em várias partes do mundo, vale a pena pensarmos o uso desse conceito “extrema-direita”. Após a derrocada do bloco comunista, muitos ideólogos do bloco ocidental pensaram que com a vitória, para uns a vitória final do capitalismo, não faria mais sentido usar o conceito de “esquerda e direita”. Afinal, não haveria mais alternativa.
Entretanto, Norberto Bobbio, um pensador liberal, publicou um texto que se tornou clássico, Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política (Ed. Unesp, 1995). Após afirmar que “não houve apenas esquerda comunista, houve também, e há ainda, uma esquerda no interior do horizonte capitalista” (p. 10), ele disse que ser esquerda é ser uma pessoa ou movimento “cujo empenho político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas” (p. 24). E, para ele, a direita é aquele setor da sociedade que “considera que as desigualdades entre os homens são não apenas inelináveis (ou são elimináveis apenas com o sufocamento da liberdade) como são também úteis, na medida em que promovem a incessante luta pelo melhoramento da sociedade" (p. 20).
É nessa diferenciação ético-filosófico-política que Bobbio recuperou essa diferenciação entre a esquerda e a direita. Esta diferença trabalha com uma metáfora de linha em que teríamos um centro, a esquerda e a direita; razão pela qual se fala também de centro-esquerda e o centro-direita; e, por fim, a extrema-esquerda e a extrema-direita.
Uma alternativa a essa estrutura de classificação de esquerda e direita poderia ser, como foi muito usado também no passado, a diferença entre os progressistas e conservadores. Para uns, a noção de progresso (sem separar o progresso tecnológico e as mudanças sociais) seria um caminho do melhoramento da sociedade e civilização; enquanto que conservadores, reconhecendo a importância da evolução tecnológica, defendem valores sociais e morais tradicionais. O problema da defesa da noção de “progresso” e dos progressistas é que há progressos tecnológicos e mudanças sociais modernas que desumanizam e ferem os direitos dos que não conseguem acompanhar o ritmo do progresso. Isto é, não temos claro que classificação é o mais apropriado para o nosso tempo.
Assim, mantendo a questão da justiça social como o critério de discernimento, voltemos ao tema da esquerda/direita e extrema-direita. A pergunta é: a diferença entre a direita e a extrema-direita é só uma questão “quantitativa”, isto é, um movimento à direção da ponta extrema dentro da mesma linha, ou se há uma mudança “qualitativa” que mostra que a extrema-direita está fora desta linha esquerda/direita, que vem do mundo moderno.
Como disse Bobbio, a “tradicional direita” defendia os seus valores e suas propostas políticas afirmando que eles promovem melhor “a incessante luta pelo melhoramento da sociedade”. Nessa noção de melhoramento da sociedade todos seres humanos eram reconhecidos como iguais, pelos menos diante da lei. Com a declaração da ONU sobre os direitos humanos universais e o aumento do consenso internacional em torno dessa declaração, ocorreu um deslocamento dessa linha no campo político: não somente os cidadãos de um determinado país seriam iguais frente às leis desse país, mas os direitos humanos passaram a ser direitos de todas pessoas. Por exemplo, mesmo que a legislação de um determinado país não reconhecesse os direitos de pessoas homossexuais de formarem uma família, muitos movimentos sociais defenderam e até exigiram mudanças legais em nome dos direitos humanos. Ou então, defender o direito de viver dos pobres, os que não são consumidores e, portanto, sem direito de comprar os bens no mercado, de viver e, por isso, pedir/exigir programas sociais.
Essa nova e forte aliança entre
a) os neoliberais, que defendem o mercado livre (livre de intervenções do Estado com seus programas sociais),
b) os “conservadores” (os que, em nome da religião ou da tradição moral, são contra mudanças que geram igualdade de todos seres humanos) e
c) autoritários ou neofascistas (que são contra a democracia, isto é, igualdade de todos no campo social e político) mudou ou está mudando o tabuleiro onde se jogam as relações de poder no mundo. E o “manual” de como jogar nesse tabuleiro não pode ser o antigo, seja o da teoria de classes, seja o de identidade (gênero, raça, sexualidade, etnia...) que foi sendo gestado nos últimos decênios.
A extrema-direita não admite a existência dos direitos humanos, nega civilidade nos debates políticos ou nas redes sociais, assim como inverte os ensinamentos fundamentais nos livros sagrados (por ex., Bíblia ou Sutra de Buda). Assim, eu penso que devemos reconhecer que, com a extrema-direita, o jogo mudou, pois há uma diferença fundamental entre a direita tradicional e a extrema-direita. Isso complexifica as nossas análises e lutas.
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O que muda nas nossas análises com a extrema-direita? Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU