"A esquerda pode e deve se opor incondicionalmente ao preconceito antipalestino e antimuçulmano sem endossar o Hamas; ela pode e deve se opor incondicionalmente ao antissemitismo sem endossar o chauvinismo israelense".
O artigo é de Ben Gidley, Daniel Mang e Daniel Randall, publicado por leftrenewal e reproduzido por Giuseppe Cocco em sua página do Facebook, 15-12-2023. A tradução é de Günter Sarfert, Antônio Xerxenesky e Sonia Hotimsky.
Temos observado horrorizados, dia após dia, durante semanas a fio, o aumento do número de mortes de civis em Gaza. Estamos chocados e indignados com o castigo coletivo infligido aos habitantes de Gaza pelas Forças de Defesa de Israel (IDF), o aumento da violência dos colonos na Cisjordânia e a repressão do estado e de grupos de extrema-direita contra cidadãos palestinos em Israel. Nos Estados Unidos, na Europa, na Índia e em outros lugares, o ativismo pela Palestina como um todo é demonizado por muitos políticos mainstream e boa parte da mídia, sendo, em alguns casos, criminalizado pelo Estado. Muitas reportagens ocidentais sobre Israel/Palestina são impregnadas de racismo civilizacional, frequentemente retratando os israelenses como pessoas modernas, ocidentais e civilizadas, cujo sofrimento é de alguma forma mais real e importante do que o dos palestinos. A desumanização racista de muçulmanos e árabes contribui para o sofrimento vivenciado pelos palestinos.
Neste contexto, há um impulso compreensível de focar apenas no imediato. Pode parecer que este não é o momento certo para falar sobre o que está errado no ativismo de esquerda em Israel/Palestina e na esquerda em geral.
Mas acreditamos que, diante da crise, a autorreflexão é mais, não menos, importante. É agora, não depois, que precisamos refletir criticamente sobre as perspectivas dominantes em nossos movimentos, amplamente definidos e se elas são as corretas para efetivamente promover mudanças.
Muito do que é dito e acreditado na esquerda sobre imperialismo e anti-imperialismo, nacionalismo e internacionalismo, racismo, islamismo e muitos outros tópicos, em nossa visão, é profundamente falho e, por vezes, reacionário.
Muitos militantes de esquerda defenderam ou até celebraram o massacre de 7 de outubro pelo Hamas e pela Jihad Islâmica no sul de Israel. Isso, em nossa visão, é uma expressão dessas análises falhas e tendências reacionárias.
Somos ativistas e organizadores de longa data na esquerda. Neste texto, queremos interagir com os sentimentos predominantes na esquerda e, através dele, fazer com que não estão sozinhos. Também é um convite a outras pessoas de esquerda para se juntarem a nós em posição contrária ao antissemitismo, ao antirracismo truncado, ao campismo, ao nacionalismo, à acomodação com o islamismo e a outras alianças esquerda-direita. Escrevemos com a esperança de que uma esquerda internacionalista melhor seja possível.
O propósito de nossa crítica não é atenuar o apoio da esquerda aos direitos e à liberdade dos palestinos, mas ancorar novamente esse apoio em um projeto consistentemente democrático, internacionalista de base e, portanto, verdadeiramente universalista. Queremos uma esquerda que lute de forma mais eficaz não apenas pelos direitos do povo palestino, mas pela democracia, igualdade e liberdade para todos.
Enquanto muitas das imagens que surgiram inicialmente das fronteiras de Gaza em 7 de outubro mostravam civis rompendo cercas, no meio da manhã já estava claro que o Hamas e seus aliados haviam brutalmente assassinado um grande número de civis desarmados, sequestrando outros. As vítimas eram velhas e jovens, incluindo sobreviventes do Holocausto, trabalhadores agrícolas migrantes e beduínos árabes. Há evidências claras de tortura e violência sexual extrema. A escala e brutalidade dos ataques causaram ondas de medo e trauma não apenas na sociedade israelense, mas em toda a diáspora judaica global, em um momento em que a maioria dos judeus — sionistas e não sionistas — têm múltiplas conexões com Israel. O massacre de 7 de outubro e os ataques com foguetes contra civis israelenses são atos de crueldade insensível que causam uma dor profunda aos judeus em Israel e na diáspora.
Mas as tentativas de justificar a violência praticada pelo Hamas contra civis por grande parte da extrema-esquerda revela não apenas a falta de compaixão humana básica, mas uma avaliação equivocada do Hamas como força política. O Hamas não é mera expressão abstrata de “resistência” a Israel. Ele realiza suas ações em busca de seus próprios objetivos políticos — objetivos que são fundamentalmente reacionários. Ignorar isso com base em um apoio incondicional à “resistência” é negar a agência palestina, reduzindo os palestinos a uma força meramente reativa, incapaz de fazer escolhas políticas. Oposição ao Hamas não é uma questão de “dizer aos palestinos como resistir”, mas de apoiar aqueles palestinos que também se opõem ao Hamas e defendem uma resistência real, tendo uma base política diferente.
Após as ações do Hamas, seguiu-se uma resposta massiva do estado de Israel — como o Hamas sabia que ocorreria e, de fato, contava com isso. Reiteramos: estamos chocados e nos opomos aos ataques do estado de Israel contra a vida de civis e a infraestrutura s em Gaza, ao deslocamento de populações palestinas, à linguagem desumanizadora e propostas de limpeza étnica por parte de políticos israelenses, aos planos de colonização de Gaza pelos colonos e à violência dos colonos e das forças de segurança israelenses contra os palestinos na Cisjordânia. Apoiamos a luta pelos direitos palestinos e nos opomos à violência do estado de Israel e a ocupação de territórios palestinos.
No entanto, se os nossos movimentos pretendem ser eficazes na busca de seus objetivos emancipatórios e democráticos, deve haver espaço para reflexão e crítica aos impulsos dentro da política de esquerda que vão contra esses objetivos.
Reconhecer e focar no sofrimento contínuo dos palestinos não significa que não podemos também pensar seriamente sobre o que pode estar errado com muitas reações da esquerda ao 7 de outubro e muitas das perspectivas da esquerda de maneira mais ampla.
Após os ataques, os incidentes antissemitas — incluindo ataques violentos e casos de assédio online e presencial — se multiplicaram em escala global. O discurso antissemita se espalhou viralmente nas redes sociais e nas ruas. O racismo antimuçulmano também aumentou dramaticamente. A extrema-direita aproveitou o conflito como uma oportunidade para alcançar novas audiências, tanto entre apoiadores quanto opositores de Israel. A crescente polarização e divisão tem contribuído para a desumanização não apenas de israelenses e palestinos, mas de judeus, muçulmanos e árabes em todo lugar, e para o aprofundamento de uma cultura de vitimização competitiva de soma zero, em vez de solidariedade.
Nos opomos às tentativas de descartar, demonizar ou mesmo criminalizar todo o ativismo em solidariedade à Palestina por causa da presença de antissemitismo dentro do movimento e na esquerda em geral — no entanto, um enfrentamento com o antissemitismo continua sendo necessário.
Isso não é uma questão de relações públicas ou “imagem”. O motivo para confrontar o antissemitismo quando ele aparece na esquerda não é porque isso faz a causa da solidariedade à Palestina “parecer ruim”. É porque a presença de perspectivas reacionárias e conspiratórias em nossos movimentos, mesmo que de forma codificada ou marginal, corre o risco de tornar nossa política tóxica.
Por que é tão difícil para grande parte da esquerda considerar a humanidade básica e o sofrimento traumático de civis — incluindo cidadãos israelenses — como ponto de partida consistente? Por que alguns são incapazes de condenar um massacre sem relativizá-lo ou contextualizá-lo até a insignificância? Por que a solidariedade das pessoas de esquerda com as vítimas da opressão às vezes parece condicional à aliança geopolítica do estado que as oprime? Por que grande parte da esquerda tem dificuldade em identificar e resistir ao antissemitismo em suas fileiras?
Não há uma única resposta simples para essas perguntas, mas acreditamos que começar a respondê-las é um passo essencial na renovação da esquerda. Oferecemos nossa análise do que vemos como alguns dos problemas mais importantes aqui.
Israel/Palestina tornou-se o drama moral central para grande parte da esquerda contemporânea, de maneira semelhante à África do Sul para muitos em uma geração anterior.
Algumas reportagens e comentários mainstream utilizam uma moldura orientalista para narrar toda a região, retratando os árabes como bárbaros e pré-modernos, em contraste com Israel, que costuma ser retratado como uma democracia liberal moderna.
Ao mesmo tempo, tanto a mídia convencional como a de esquerda presta muito mais atenção à Israel/Palestina que a Síria, Curdistão, Sudão, Etiópia, República Democrática do Congo, Sri Lanka, Mianmar ou qualquer número de outros pontos críticos globais nos quais estados militaristas (ou atores não-estatais) oprimem minorias étnicas ou nacionais, ou realizam massacres.
Não se trata de estabelecer uma hierarquia moral ou política de opressões globais, ou distribuir atenção e atividade com base no que envolve mais sofrimento. Em vez disso, a solidariedade com os palestinos deve emanar do compromisso com os direitos universais, que também deve impulsionar a solidariedade com outras lutas contra a opressão.
Ao fetichizar Israel/Palestina, e romantizar e idealizar a luta do povo palestino, as pessoas de esquerda espelham a desumanização dos palestinos pela imprensa convencional. O efeito dessa fetichização de Israel/Palestina por parte da esquerda é tornar tanto os palestinos quanto os judeus israelenses avatares transcendentes para narrativas políticas, ao invés de humanos de carne e sangue, capazes de uma gama de respostas às suas condições e vivências.
A despeito da centralidade da causa palestina para a esquerda contemporânea, frequentemente há um baixo nível de compreensão da história da região e do conflito.
Muitos setores da esquerda transformaram conceitos potencialmente úteis, como “colonialismo de colonos”, de ferramentas de análise em substitutos para análise. Aplicar esses rótulos de maneira simplista permite que ativistas evitem um confronto com a complexidade. A diversidade interna histórica do sionismo, sua relação ambivalente com vários imperialismos e as diferentes histórias de deslocamento que impulsionaram a migração judaica para Israel a partir de diversos países são frequentemente pouco compreendidas.
O processo de formação nacional judaica israelense incluiu colonização por colonos que resultou no deslocamento de um grande número de habitantes existentes, inclusive por meio de crimes de guerra e expulsões. Foi também um processo de fuga desesperada por pessoas que haviam sido vítimas de violência racista e tentativas de extermínio. Os palestinos são, nas palavras de Edward Said, “as vítimas das vítimas e os refugiados dos refugiados”. Os judeus israelenses estão longe de serem únicos a consolidarem-se como nação e fundarem um estado com base na desapropriação violenta dos habitantes existentes de um território.
O objetivo de confrontar essa história em sua totalidade, com toda sua complexidade e tensão, não é minimizar as injustiças sofridas pelos palestinos no processo de fundação de Israel, ou desde então. Mas deixar de enfrentar a história por completo não serve para compreensão nem para esforços para desenvolver e apoiar as lutas pela igualdade.
Uma maior alfabetização histórica, assim como uma consideração mais engajada em relação às praticidades das soluções de um estado, dois estados e outras possíveis “soluções” para o conflito, possibilitaria um movimento renovado de solidariedade.
Uma das tendências-chave na política contemporânea, na esteira da quebra dos movimentos de massa de trabalhadores, é o surgimento de formas sincréticas de política, que se baseiam em tradições políticas díspares – o que às vezes é chamado de política vermelha/marrom, diagonalismo ou confucionismo. Partes da esquerda têm estabelecido alianças perigosas com forças da extrema-direita. Desde oradores de extrema-direita em manifestações antiguerra até ex-militantes de esquerda participando de protestos contra o lockdown devido à Covid, de vlogueiros antiantperialistas hospedando convidados paleoconservadores a cantores de folk anarquistas promovendo negacionistas do Holocausto, o período recente testemunhou colaborações políticas alarmantes. Esses movimentos às vezes surgem ou se desenvolvem a partir da tentativa da extrema-direita de se promover para a esquerda. Porque o antissemitismo frequentemente une elementos díspares dentro de formações sincréticas, essas tendências podem ser politicamente tóxicas quando se manifestam no ativismo de solidariedade à Palestina.
Ao redor do mundo, vemos lutas por mudanças democráticas e pela conquista de maiores direitos e igualdade. No entanto, essas lutas são cada vez mais confrontadas com a alegação de que esses princípios representam a hegemonia de uma “elite liberal ocidental” e sua “ordem mundial unipolar”, em vez de aspirações e direitos humanos universais.
Regimes autoritários e opressivos afirmam que os esforços para responsabilizá-los por esses princípios são simples tentativas de proteger a hegemonia unipolar do Ocidente. Esses regimes se apresentam como líderes de um mundo “multipolar” emergente, onde múltiplos regimes autoritários serão livres para definir a “democracia” em sua própria imagem antidemocrática.
Da mesma forma, assim como movimentos racistas, patriarcais e autoritários no Ocidente se apresentam como vozes autênticas e enraizadas contra as elites “globalistas”, em antigas colônias do Ocidente, eles se apresentam como a maioria “decolonial” contra a hegemonia das elites “ocidentalizadas”.
A esquerda frequentemente falha em reconhecer essa dinâmica. Pior ainda, certas seções dela amplificam sua premissa (falsa): que forças e regimes tirânicos, autoritários e reacionários representam uma resistência progressista ao “imperialismo ocidental”. A preocupação deles com a sobrevivência e força desses regimes “multipolares” se realiza a custo de uma solidariedade desinibida, significativa e consistente para com a resistência a esses regimes.
O imperialismo ocidental enfrenta desafios de alternativas reacionárias: imperialismo russo, imperialismo chinês e imperialismo-regional iraniano, frequentemente utilizando forças paramilitares por procuração, como o Hezbollah e, em certa medida, o Hamas, desempenhando um papel contra revolucionário no contexto da onda de lutas de libertação que surgiram em 2011. As petromonarquias da península Arábica estão se tornando potências globais crescentes; outras potências imperialistas ou sub imperialistas regionais, como uma Turquia expansionista e intervencionista, também estão cada vez mais vigorosas e certamente não são meros Estados-clientes dos EUA.
Diante deste momento, uma esquerda radical que, ao longo dos anos, pregou a visão de que qualquer coisa que prejudique o imperialismo hegemônico (o dos EUA) e seus aliados deve necessariamente ser progressista (uma perspectiva conhecida como “campismo” – apoiar um “campo” geopolítico em vez de seguir um projeto verdadeiramente internacionalista) tem uma alta probabilidade de se transformar em apologia para aquelas alternativas reacionárias. Esse “anti-imperialismo” campista é cego para o fato de que, ao apoiar o “eixo de resistência”, não está se opondo ao imperialismo, mas sim se aliando a um pólo imperialista rival em um mundo “multipolar”.
Num período histórico anterior (atingindo seu auge na Guerra Fria), o pólo opositor aos EUA na imaginação da esquerda campista era a URSS (muitas vezes servindo não como uma luz orientadora, mas simplesmente como um espaço reservado para a possibilidade de qualquer tipo de alternativa). No entanto, após o embargo de petróleo da OPEP em 1973 e a revolução iraniana de 1979, e especialmente após a queda do bloco soviético, esse papel foi assumido cada vez mais por várias configurações do “eixo de resistência”, incluindo a República Islâmica do Irã e, em breve, o Hamas.
Nosso mundo complexo e “multipolar”, a natureza aparentemente opaca dos mecanismos de poder e opressão, assim como os processos de fragmentação social, levam as pessoas a buscar respostas e explicações além do “mainstream”. As economias de plataforma que monetizam informações equivocadas e desinformação, além de facilitarem a disseminação de mitos e mentiras, oferecem fácil acesso a teorias da conspiração que parecem fornecer tais respostas e explicações.
As formas fragmentadas, rápidas e digitais de compartilhamento e aquisição de conhecimento hoje incentivam um ceticismo simultâneo em relação às autoridades mainstream e credulidade em relação a fontes “alternativas”, uma alegria simultânea em “desmascarar” verdades ocultas e desespero diante do alcance onipotente do hegemon, além de uma busca por conexões entre fenômenos díspares que carece das ferramentas analíticas para entender sua significância. E as teorias da conspiração quase sempre levam ao antissemitismo, que geralmente funciona como uma espécie de metateoria da conspiração.
O antissemitismo muitas vezes é também fundido com a intolerância antimuçulmana no imaginário conspiratório contemporâneo da extrema-direita, por meio de teorias de “Grande Substituição”, que alegam um plano elaborado por “financistas globalistas”, sendo George Soros o mais proeminente, para patrocinar a imigração majoritariamente muçulmana para países de maioria “branca”, com o objetivo de “substituir” as populações “brancas”.
Assim como outras teorias da conspiração, o antissemitismo oferece respostas e explicações falsas e simplistas em um mundo confuso. Ao contrário de muitos outros racismos, o antissemitismo frequentemente parece “atacar por cima”: pode atribuir ao seu objeto poder, riqueza e astúcia quase infinitos. Devido ao seu caráter pseudoemancipatório, o antissemitismo frequentemente parece radical. No entanto, é um pseudorradicalismo: ao identificar os judeus como a força elitista oculta que controla nossas sociedades, serve para tornar as verdadeiras classes dominantes invisíveis, protegendo as estruturas de poder da classe dominante e desviando a raiva da injustiça para os judeus.
Conforme argumentou Moishe Postone, o antissemitismo muitas vezes atua como uma “forma fetichizada de anticapitalismo”: “O poder misterioso do capital, que é intangível, global e que agita nações, áreas e vidas das pessoas, é atribuído aos judeus. A dominação abstrata do capitalismo é personificada como os judeus.” Esse antissemitismo pseudoemancipatório tem uma longa história, desde alguns dos textos fundadores de correntes importantes do socialismo moderno, até os congressos da Segunda Internacional, passando por sindicatos e partidos trabalhistas na época da migração em massa do Leste Europeu, até formas de fascismo da Nova Era no movimento verde. Estava presente e contestado nos partidos da Revolução Russa, foi expresso tanto na ideologia nazista quanto na stalinista pós-guerra, e por seus herdeiros hoje, com financistas “cosmopolitas” e “globalistas” vistos como um polvo vampiro explorando os trabalhadores produtivos, enraizados e nativos. Mas também está cada vez mais ligado a uma visão “anti-imperialista”, onde é visto como sugando a vida dos miseráveis da Terra no Sul Global.
Enquanto partes da esquerda (especialmente na Europa e nas Américas, mas também em outras regiões do mundo) têm uma longa história de racismo antimuçulmano (que retornou à tona durante a guerra na Síria, quando seções da esquerda utilizaram a linguagem da guerra ao terror para demonizar a revolução), no período após a Segunda Intifada e o 11 de setembro, a visão campista descrita acima levou muitos na esquerda a enxergar o Islamismo como uma força progressista, até revolucionária, em relação ao imperialismo ocidental hegemônico.
Infelizmente, isso é um fenômeno global. A maioria das pessoas de esquerda no Sudoeste Asiático e Norte da África (SWANA), no entanto, confrontados de forma mais direta com a política reacionária do Islamismo do que militantes de esquerda em outras partes do mundo, não têm tais ilusões; muito pelo contrário. Os ativistas de esquerda de fora do SWANA deveriam ouvi-los.
O islamismo engloba várias correntes diferentes. O Hamas não é o ISIS, o ISIS não é o Talibã, o Talibã não é o regime de Erdoğan na Turquia. O próprio Hamas abrange diferentes correntes. Compreender essas distinções é importante, mas não deve cegar a esquerda para a realidade material de que, no nível do poder social, movimentos e regimes islâmicos têm em comum, com outras formas de religião fundamentalista politizada, a brutalização de minorias religiosas, étnicas e sexuais, mulheres, dissidentes políticos e movimentos progressistas.
O racismo antijudaico é um elemento persistente na ideologia islâmica, claramente evidente na obra fundamental de Sayyid Qutb, “Nossa luta contra os judeus” (1950) e na “Estatuto do Hamas” de 1988 (que cita o notório falsário antijudaico, os Protocolos dos sábios de Sião). As posições do islamismo em relação a Israel, sionismo e judeus não são puramente “políticas”, explicáveis apenas em termos do confronto entre palestinos e sionismo/Israel, mas fazem parte de uma visão de mundo antissemita mais ampla.
Embora tenham suas próprias perspectivas e agendas, os movimentos islâmicos também devem ser compreendidos no contexto da competição entre poderes regionais em um mundo de imperialismos concorrentes: os islâmicos frequentemente resistem ao imperialismo hegemônico em nome de, ou em aliança com, imperialismos regionais rivais – como o do Irã. Ao mesmo tempo, o imperialismo dos EUA e os poderes regionais aliados a ele, como Israel, às vezes toleraram ou fortaleceram os movimentos islâmicos como forma de enfraquecer outras forças.
Uma visão das lutas de libertação de gênero e sexualidade como de importância política secundária em relação a outras questões, como a luta contra o “inimigo principal” do “imperialismo dos EUA”, também explica em parte a disposição de muitos militantes de esquerda em apagar, silenciar suas críticas ou até propor alianças com movimentos que, como todos os movimentos fundamentalistas religiosos, estão obcecados com a regulação patriarcal, homofóbica e transfóbica de gênero e sexualidade.
A única agência possível para uma política autenticamente democrática e anticapitalista é a luta consciente dos explorados e oprimidos por sua autoemancipação. A política de classe foi prejudicada por décadas de vitórias neoliberais e derrotas no movimento de trabalhadores. Mas o abandono do foco na agência das lutas da classe trabalhadora e de outras lutas democráticas que vêm de baixo tem uma história mais longa. O último século está tragicamente cheio de exemplos de pessoas de esquerda substituindo a agência dos explorados e oprimidos pela dos estados stalinistas e várias outras forças autoritárias.
Muitos autodefinidos ativistas de esquerda foram tão longe a ponto de apoiar, às vezes de maneira mais “crítica”, às vezes menos, forças estatais e não estatais que nem mesmo reivindicam a retórica e o simbolismo do socialismo: a Rússia de Putin, a Síria de Assad, a República Islâmica do Irã e forças paramilitares islâmicas como o Hamas e o Hezbollah.
Acreditamos que o surgimento de políticas sincréticas, campistas e de teorias conspiratórias, bem como o aprofundamento da compra de um antisemitismo pseudoemancipatório, pode ser parcialmente explicado como sintomas desse abandono pela esquerda da classe e da análise da dinâmica do capitalismo global.
Muita política de esquerda nas últimas décadas se baseou não tanto na luta contra o capitalismo enquanto relação social, mas na rejeição da “hegemonia americana”, “globalização”, “finanças” — ou às vezes, “sionismo”, visto como vanguarda de todas essas forças. Isso levou muitas pessoas que se consideram de esquerda a simpatizar com alternativas reacionárias às atuais disposições políticas e econômicas.
Ao mesmo tempo, formas truncadas de anticapitalismo, que se concentram nos supostos males morais do capital “financeiro” ou “improdutivo” — em vez do antagonismo objetivo entre capital e trabalho — incentivam críticas personalizadas às “elites globalistas” e aos “banqueiros Rothschild”, em vez de um movimento em direção à abolição do próprio capitalismo, por meio da organização coletiva e da luta de baixo para cima.
O antirracismo global contemporâneo tem sido moldado por um contexto do século XX dominado por lutas contra o racismo antinegro, nos EUA e em outros lugares, e contra o imperialismo e o colonialismo ocidentais. Sua compreensão de raça muitas vezes é simplista e binária, inadequada para entender as complexas linhas de racialização do século XXI.
As perspectivas dominantes de muito do pensamento “decolonial” oferecem uma visão maniqueísta que divide o mundo em categorias de “opressores” e “oprimidos”, nas quais nações inteiras e etnias são enquadradas.
Essa visão deixa a esquerda mal equipada para entender como diferentes racismos se relacionam — por que supremacistas hindus na Índia apoiam entusiasticamente o nacionalismo israelense, por exemplo, ou por que o Estado chinês supremacista han se apresenta como defensor dos direitos palestinos enquanto perpetra uma ocupação colonial e repressão em massa em nome de uma “Guerra do Povo contra o Terror” contra muçulmanos em Xinjiang/Turquestão Oriental.
E ela deixa a esquerda mal equipada para compreender o racismo quando ele não vem codificado por cor, como o racismo de europeus ocidentais contra os europeus orientais “brancos mas não totalmente”, ou o racismo russo contra os ucranianos, ou o racismo antiarmênio.
O antissemitismo, em particular, não se encaixa perfeitamente na visão de mundo desse antirracismo truncado, que vê os judeus como “brancos” e, portanto, não pode compreendê-los como alvos de racismo. Essa perspectiva apaga judeus que não se apresentam como “brancos” e perde a contingência e a construção social da própria branquitude. A integração de alguns judeus à branquitude é real, mas também é desigual e, em muitos casos, bastante recente.
Esse antirracismo truncado espelha o anticapitalismo truncado que marcou a esquerda.
Em resumo, a renovação da esquerda como um movimento de solidariedade internacional exige um antirracismo consistente, feminismo consistente, uma renovação da política de classe, uma renovação de uma análise do capitalismo global e a rejeição da visão campista que divide o mundo em binários bem ordenados do bem e do mal.
Como podemos transformar e renovar a esquerda?
Oferecemos essa análise como um passo em direção à renovação da esquerda com base em uma política genuinamente internacionalista e consistentemente democrática. Nem sempre é fácil enfrentar ideias reacionárias dentro de nossas próprias fileiras. Mas quando o fazemos, nossos movimentos ganham, todas as vezes, com as compreensões mais profundas que emergem. Como seria para a esquerda começar a fazer isso?
Nosso ponto de partida como internacionalistas deve ser a defesa do direito universal aos direitos democráticos. Insistir na solidariedade com civis sob ataque de ambos os lados não é uma forma superficial de equivalência moral ou desvio de responsabilidade, mas um primeiro princípio ético. A verdadeira solidariedade consistente não significa ver todos como iguais e ignorar as diferenças estruturais entre as vítimas, mas reconhece e respeita a diferenciação.
A esquerda deve se importar com todas as mortes civis, seja causada pelo estado judeu ou pelos estados árabes, pelos estados no campo ocidental ou pelos estados que se opõem a esse campo, ou por atores não estatais.
Os fins são substancialmente condicionados e prefigurados pelos meios; uma política perseguida por meio do massacre indiscriminado de civis não pode servir a fins emancipatórios.
Particularmente problemáticas são correntes políticas que enfocam o sofrimento palestino em Gaza, mas ficaram em silêncio — ou até mesmo entusiasmadas — enquanto sírios (incluindo palestinos sírios) eram massacrados pelo governo de Assad e seus aliados (muitas vezes justificados exatamente pela mesma retórica de guerra ao terror que Israel às vezes usa para desculpar o o ato de alvejar civis), ou enquanto uigures e outras minorias étnicas principalmente muçulmanas enfrentam encarceramento em massa, vigilância total e apagamento cultural na China.
Enfocando as vozes e experiências de forças trabalhistas, progressistas e construtoras da paz em ambos os lados.
A mudança democrática radical é impossível sem uma agência que lute de forma consciente e ativa por ela. Uma esquerda internacional que concentra suas energias em aplaudir forças reacionárias nada faz para ajudar o desenvolvimento desta agência; na verdade, a inibe.
Em Israel/Palestina, assim como em qualquer luta internacional, uma esquerda de fato internacionalista e consistentemente democrática deve focar suas atividades em ouvir, se envolver e construir apoio prático para as forças locais que se organizam para avançar na política democrática. Isso significa amplificar as vozes de atores da base — feministas, ativistas LGBTQ+, sindicalistas, ativistas ambientais — em ambas as sociedades israelense e palestina que se opõem à violência estatal perpétua e à divisão racista.
Grupos nacionais como um todo frequentemente se beneficiam das políticas coloniais e de opressão de outros povos de seus estados. Mas esses benefícios não são uniformes, nem significam que todos os membros de um dado povo sejam igualmente cúmplices ou tenham igual poder sobre as políticas de seu estado.
Solidariedade com os palestinos não deve significar hostilidade total aos judeus israelenses como povo, nem se opor ao direito deles. A política de esquerda deve visar nivelar e igualar os direitos democráticos, não retirá-los de alguns para “redistribuí-los” para outros.
Judeus em todos os lugares — muitas vezes vinculados de várias maneiras a pessoas e lugares em Israel — se sentem atacados quando os israelenses em geral são visados. Apoiar os direitos dos palestinos requer uma identificação cuidadosa do estado israelense — e suas estruturas ideológicas — como os perpetradores da injustiça, e não o povo israelense como um todo, visto como um bloco homogêneo e politicamente indiferenciado.
O antissemitismo atribui tradicionalmente poder absoluto aos judeus. Quando essa atribuição é aplicada a Israel, ela continua sendo antissemita. Israel existe em um mundo complexo, líquido, “multipolar”; é um estado poderoso, mas seu poder é limitado dentro do sistema global. Com certeza não é o motor do imperialismo mundial, como às vezes é retratado em narrativas de esquerda.
Muitas das críticas justas e necessárias a Israel são coisas que têm em comum com muitos outros estados ao redor do mundo, incluindo alguns dos países onde vivemos. Recusar-se a demonizar Israel ou vê-lo como inteiramente excepcional não significa reconciliar-se com suas políticas, mas sim situar essas políticas dentro de tendências das quais são uma expressão, em vez de serem a quintessência. Até a brutalidade na escala que Israel está infligindo neste momento ao povo de Gaza tem um precedente direto recente, na guerra do regime de Assad contra o povo sírio.
Correntes na esquerda que criticam o colonialismo de colonos israelenses enquanto agem como apologistas do colonialismo russo na Ucrânia estão aplicando padrões duplos. Também instamos camaradas a refletir se eles e suas organizações usam os mesmos tipos de linguagem e registros emocionais sobre, por exemplo, a opressão dos curdos pela Turquia, ou a opressão dos tâmeis por Sri Lanka, como fazem sobre a opressão de Israel aos palestinos. Se a resposta for não, considere o impacto político e as implicações dessa excepcionalização.
Nações são construções sociais, que funcionam em parte para mascarar explorações e opressões dentro da nação, como classe, gênero, raça e outras, em nome de um “interesse nacional” unitário. Nosso objetivo de longo prazo é uma associação livre de todos os seres humanos, ou seja, um mundo sem nações, no qual as identificações étnicas se tornaram secundárias. No entanto, transcender a nacionalidade é difícil de conceber em um mundo no qual as pessoas são oprimidas, ocupadas e às vezes massacradas com base em sua origem nacional.
As pessoas de esquerda devem se posicionar contra a opressão das pessoas por causa de sua nacionalidade. Mas também devemos reconhecer que todos os nacionalismos — incluindo os de grupos atualmente oprimidos — são no mínimo potencialmente excludentes e opressores. Apoiar o direito de um povo de se defender ou conquistar autodeterminação não significa adotar vicariamente seu nacionalismo. Uma esquerda internacionalista não deve acenar sem críticas para nenhuma bandeira nacional, ou apoiar sem críticas nenhum estado ou movimento nacional.
A esquerda deve apoiar o direito à autodeterminação como parte de um programa por igualdade democrática. Isso significa apoiar o direito de todos os povos à autodeterminação em igualdade de condições, e se opor a qualquer programa que busque a dominação de um povo sobre outro.
O objetivo do Hamas de substituir a dominação nacional judaica pela dominação nacional islâmica — um estado teocrático no qual os “usurpadores” judeus são expulsos — é reacionário. O fato de alcançar esse objetivo ser algo muito improvável não o torna mais apoiável do ponto de vista da política democrática e internacionalista.
A razão para apoiar vítimas do racismo não é apenas a preocupação compassiva pelos sentimentos feridos das pessoas — embora a preocupação seja preferível à insensibilidade às vezes exibida na esquerda. Também é porque as ideias que impulsionam o preconceito envenenam os esforços para avançar nas lutas democráticas.
Isso significa se recusar a tornar nossa solidariedade contra o racismo politicamente condicional.
Assim como é errado exigir que os palestinos (ou outros árabes ou muçulmanos) condenem o Hamas antes de terem o direito de apoio contra o racismo, também é errado exigir que os israelenses ou judeus da diáspora demonstrem sua pureza ideológica — se são “bons” judeus — antes que o preconceito contra eles seja levado a sério.
A solidariedade contra o racismo não exige endosso das políticas dominantes da pessoa ou grupo vitimizado. Mas exige que a oposição ao racismo e a outras formas de preconceito seja incondicional, mesmo quando os membros do grupo alvo possam ter opiniões reacionárias.
A esquerda pode e deve se opor incondicionalmente ao preconceito antipalestino e antimuçulmano sem endossar o Hamas; ela pode e deve se opor incondicionalmente ao antissemitismo sem endossar o chauvinismo israelense.
Uma característica particular da crise atual e suas repercussões globais é que ativistas da extrema-direita (incluindo fascistas incondicionais e nazistas literais) estão usando de forma cínica a solidariedade com a Palestina para promover o antissemitismo. Pequenos números de ativistas da extrema-direita estão se juntando a marchas anti-Israel. Um grande número de usuários pró-palestinos nas redes sociais está amplificando desinfluenciadores da extrema-direita que se inseriram no discurso, muitas vezes apoiados por redes de influência estatais russas e iranianas. Nas semanas após 7 de outubro, contas como Jackson Hinkle (um defensor do “Comunismo MAGA”) e Anastasia Loupis (uma ativista antivacinação de direita) acumularam milhões de seguidores entre usuários hostis a Israel com suas postagens virais (muitas contendo histórias falsas) sobre o conflito.
Por outro lado, a extrema-direita não é homogênea, e ativistas islamofóbicos da extrema-direita, muitos dos quais são revelados como antissemitas com apenas um pouco de investigação, estão usando cinicamente o medo judeu e a indignação pública mais ampla ao terrorismo do Hamas para promover a hostilidade antimuçulmana e lavar suas reputações racistas. Precisamos expor e marginalizar esses maus atores. Precisamos traçar linhas claras. Não devemos permitir que o sofrimento judeu e palestino seja instrumentalizado por empreendedores políticos. Grupos que oferecem uma plataforma ativa para palestras de nazistas, fascistas e palestrantes tais como estes devem ser tratados de maneira semelhante aos simpatizantes do separatismo branco.
Escrevemos este texto como uma crítica a um senso comum que se tornou predominante em grande parte da esquerda. É uma crítica da esquerda e para a esquerda.
Como ativistas e organizadores de esquerda, não vemos as tendências que descrevemos como crescimentos inevitáveis dos princípios fundamentais da esquerda. Vemos que resultam da distorção e abandono dos princípios fundamentais da esquerda.
São bem vindas assinaturas adicionais, incluindo aqueles que desejam endossar algumas partes do texto, mas não outras, e respostas críticas. Dado o contexto, acolhemos de modo especial respostas, incluindo as críticas, de palestinos e israelenses de esquerda. Esperamos que o texto possa contribuir para um debate mais amplo sobre como transformar e renovar a esquerda.
Vemos esse esforço de renovação e transformação como uma tarefa necessária para quem não deseja excluir a possibilidade de mudança sistêmica. Recebemos com satisfação a participação de qualquer pessoa comprometida com essa mudança e que compreende que, para ser um instrumento eficaz para alcançá-la, a esquerda deve se transformar.