23 Março 2023
"Acompanhá-los e apoiá-los [os indígenas] em suas lutas implica que, como diz Santo Romero, 'a esperança que pregamos para os pobres tem a intenção de devolver-lhes a sua dignidade, de incentivá-los a assumir o controle do seu próprio futuro'", escreve Gabriel Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, Belo Horizonte). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na região Serra da Lua.
“Eu vi, a 24 de março,
as escamas da serpente
sobre a alva túnica
de Oscar Arnulfo Romero.
À maneira da morte,
as serpentes,
no sangue do Povo
saciam sua sede”.
["Missa, morte e ressurreição de Oscar Arnulfo Romero" por Pedro Tierra]
Assim proclamou o cantor da libertação Pedro Tierra, no seu poema “Missa, morte e ressurreição de Oscar Arnulfo Romero”. Fazer memória do Arcebispo de São Salvador é trazer presente os longos e cruéis martírios a que ainda são submetidos os Povos Indígenas na América Latina.
Mesmo depois de séculos de violência e massacres, seus corpos ancestrais continuam sendo perseguidos pela serpente voraz do capital. Capital este que, ao longo do tempo, foi se sofisticando e assumindo diferentes nomes, tais como, as bandeiras, o engenho, os seringais, o latifúndio, o agronegócio, o garimpo, os megaempreendimentos governamentais... Projetos colonizadores com seus rostos de escravidão. Afinal, a liberdade dos cerca de 1.000 Povos Indígenas que aqui viviam, dos quais ainda resistem 305, sempre foi e continua sendo intolerável para a elite econômico-política.
Como em El Salvador de Santo Oscar Romero, o sangue indígena continua a brotar impiedosamente, seja fruto do ouro maldito vindo do garimpo nas terras dos Povos Yanomami, em Roraima, e Munduruku, no Pará, seja dos latifúndios sojeiros de Mato Grosso do Sul, que marginalizam e trucidam o Povo Guarani Kaiowá. Os Povos em Isolamento Voluntário sofrem grave risco de extermínio, com seus territórios ameaçados por grileiros, madeireiros e caçadores ilegais.
Oscar Arnulfo Romero nasceu no dia 15 de agosto de 1917, na cidade de Barrios, em El Salvador. Sua vida transcorreu sem grandes sobressaltos, como o seria para um clérigo conservador de sua estirpe. Ao longo dos anos assumiu posições de destaque na hierarquia eclesiástica, entre elas, a reitoria do Seminário Interdiocesano e da Catedral de São Salvador, bem como a secretaria-geral da Conferência Episcopal local e o cargo de secretário-executivo do Conselho Episcopal da América Central e Panamá (CEDAC).
Oscar Arnulfo Romero. (Foto: Reprodução | Caritas Internacional)
Quando foi nomeado, em 1977, para o arcebispado da capital do país, a elite nacional e seus coirmãos no episcopado não precisaram temer nenhuma surpresa de sua parte. Um bispo dócil ao sistema ditatorial e que não causasse problemas interessava a todos, com exceção do oprimido povo salvadorenho. Entretanto, a rebeldia do Evangelho da Vida possui caminhos misteriosos à lógica humana, abrindo sendas inimagináveis para os velhos esquemas de manutenção das forças dominantes. Um homem que, reconhecendo sua condição de incompletude, permitiu-se conduzir e se desconstruir pela Divina Ruah.
Alguns meses após se tornar arcebispo, o assassinato de seu amigo jesuíta, o agora beato Padre Rutílio Grande, SJ, foi um doloroso despertar para a dura situação a que estava submetido o seu rebanho. Confrontado com a morte de outros religiosos e catequistas, tomou consciência de uma realidade que lhe era estranha. Compreendeu que se comprometer com os últimos tinha um preço e assumir tal preço era não apenas a coisa certa a se fazer, porém um verdadeiro dever da Igreja:
“Cristo nos convida a não ter medo da perseguição porque, creiam, irmãos, aqueles que se comprometem com os pobres têm que seguir o mesmo destino dos pobres. E em El Salvador já sabemos o que significa o destino dos pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáver... Estas mortes, ao invés de apagar em nós o ardor da fé, entusiasmam ainda mais o vigor de nossas comunidades... Me alegro, irmãos, de que nossa Igreja seja perseguida, precisamente por sua opção pelos pobres e por tratar de encarnar-se no meio deles. Seria triste que, em uma pátria onde se está assassinando tão horrorosamente, não contássemos também entre as vítimas os sacerdotes. São testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas do povo”.
Na Terra de Makunaima, lar de inúmeros povos guerreiros, a fronteira agrícola avança insaciável. Nada lhe escapa! Nem mesmo as crianças, as mulheres grávidas e os idosos são poupados das toneladas de agrotóxicos despejados nas recém plantadas lavouras de “ouro verde”, nas bordas das terras indígenas. Nesse sentido vem denunciando com insistência e urgência a Comunidade Morcego, da Terra Indígena Serra da Moça, pertencente a Região Murupu, município de Boa Vista, Roraima.
Romper com as poderosas alianças entre os donos do poder, inclusive com a participação da Igreja, significa permanecer fiel ao frescor do Reino anunciado pelo Príncipe da Paz. Como não reconhecer essa fidelidade no pontificado do Papa Francisco, que, nestes dez anos, tem instado a uma “Igreja pobre e para os pobres”, sempre “em saída”? É preciso não ter medo da tensão que as lúcidas críticas podem provocar no corpo eclesial. Assim recorda sabiamente o bispo-profeta da América-Central:
“Quem denuncia deve estar disposto a ser denunciado e se a Igreja denuncia as injustiças, está disposta também a escutar denúncias contra si e está obrigada a converter-se... Os pobres são o grito constante que denuncia não somente a injustiça social, mas também a pouca generosidade de nossa própria Igreja”.
No final de fevereiro desse ano de 2023, fartos da inércia estatal, as comunidades da Terra Indígena Manoá-Pium, no município de Bonfim-RR, decidiram retomar um território ancestral que sempre lhes pertenceu. Por motivos desconhecidos, parte do território identificado pela FUNAI na época da demarcação foi, misteriosa e suspeitamente, excluído da homologação, em 1982. Mais de 1/3 (um terço) do território inicialmente demarcado não foi restituído aos Povos Wapichana e Macuxi, legítimos donos dessas terras. Ou seja, dos originais 67 mil hectares delimitados e reconhecidos como de uso tradicional dessa população, somente 43 mil hectares lhes foram devolvidos!
De forma hipócrita, não faltarão os desavisados ou mal-intencionados opositores de “tamanho território” para os “privilegiados índios”. O desgastado bordão de “muita terra para pouco índio” não faz o menor sentido num país de grandes latifúndios nas mãos de pouquíssimas famílias, já denunciados por outro bispo-profeta, Dom Pedro Casaldáliga, na sua Carta Pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” (1971).
Santo Oscar Romero percebeu que a estrutural injustiça social da América Latina é absolutamente incompatível com o cristianismo ao reconhecer que “existem, entre nós, aqueles que amontoam violência e despojos em seus palácios, aqueles que arrasam com os pobres; aqueles que ajuntam casa com casa e anexam campo a campo, até ocupar tudo!”. Aquele que foi a voz dos sem voz se ergueu para dizer “denuncio aqueles que fazem da riqueza um absoluto: que têm a propriedade privada como um absoluto intocável”. Afinal, concluiu com clareza, “é esse o grande mal!”.
Infelizmente, a perseguição dos defensores dos Direitos Humanos e dos seus aliados é uma constante na Pan-Amazônia. Quantas lideranças indígenas não são vítimas da violência estatal, acossadas implacavelmente pelas forças policiais a serviço de interesses particulares? Conforme recente denúncia do Conselho Indígena de Roraima (CIR), há uma tentativa de criminalização da luta pelo território das comunidades pertencentes a Terra Indígena Manoá-Pium. Uma luta que, para esses povos, é coletiva e não de responsabilidade de algumas pessoas. Afinal, o território sagrado pertence às suas presentes e futuras gerações.
Para uma Igreja que celebrou 50 anos do Encontro de Santarém (2022), duas balizas foram reafirmadas, quais sejam, a encarnação na realidade e a evangelização libertadora. Essa tem sido a perspectiva adotada pela Igreja de Roraima, mais fortemente desde o ministério episcopal de Dom Aldo Mongiano, que fez sua opção preferencial pelos Povos Indígenas. Acompanhá-los e apoiá-los em suas lutas implica que, como diz Santo Romero, “a esperança que pregamos para os pobres tem a intenção de devolver-lhes a sua dignidade, de incentivá-los a assumir o controle do seu próprio futuro”.
Todo aquele que quiser ser fiel à Luz que iluminou todas as trevas, não poderá deixar de partilhar a profecia de tantos cristãos e cristãs que pisaram esse chão amazônico. Calar não é uma opção, mas covarde omissão, como tão bem intuiu o santo bispo de El Salvador:
“Se denuncio e condeno a injustiça é porque é minha obrigação como pastor de um povo oprimido e humilhado... O Evangelho me impulsiona a defender meu povo e em seu nome estou disposto a ir aos tribunais, ao cárcere e à morte. O que causa o conflito e a perseguição, o que distingue a Igreja genuína, é a Palavra que, ao arder como a Palavra dos profetas, proclama e acusa”.
O Documento de Santarém (2022) aponta para uma Igreja martirial, que não retrocede ou se acovarda diante dos poderes diabólicos da ganância e soberba. Em que “a fecundidade e o engajamento profético da Igreja na Amazônia fazem desta uma Igreja obediente até a morte, e morte de cruz” (DFSA – 2022, n. 34). Dom Romero entendeu que não podia abandonar seu povo e que deveria cumprir a sua missão até o fim. Ciente dos riscos que corria, entregou-se com generosidade àqueles que a ele se confiavam:
“O martírio é uma graça que não creio merecer. Mas, se Deus aceita o sacrifício de minha vida, que meu sangue seja a semente da liberdade e o sinal de que a esperança será logo uma realidade. Minha morte, se for aceita por Deus, que o seja pela libertação de meu povo e como um testemunho de esperança no futuro”.
Aos 63 anos, no dia 24 de março de 1980, foi assassinado enquanto celebrava a Eucaristia, na capela do Hospital Divina Providência. Seu foi sangue derramado como o sangue de milhares de vítimas cujas atrocidades sofridas foram ativamente denunciadas por ele. Só durante a década de 1980, mais de 75 mil pessoas foram mortas em El Salvador. A guerra de narrativas que se seguiu ao seu martírio foi assustadora. Precisavam desacreditá-lo a todo custo. Seus detratores articularam junto às altas esferas da cúria romana para interditar o seu impressionante testemunho de vida. Apenas com a chegada de outro bispo latino-americano no trono de São Pedro, um companheiro jesuíta de seu amigo Rutílio, é que foi possível finalmente fazer jus a figura inspiradora de Santo Oscar Romero.
Oxalá a Igreja da Amazônia e de toda a América Latina possa se fortalecer cada vez mais no exemplo desse padroeiro de um seguimento encarnado e libertador fazendo sua essa profissão de fé: “devo confessar que, na condição de cristão, não acredito na morte sem ressurreição. Se me matarem, ressuscitarei no povo salvadorenho”. A morte e a destruição causadas pela ávida busca de lucro acima de tudo e de todos não prevalecerão sobre a Vida.
As forças do latifúndio, dos megaprojetos governamentais, do garimpo não matarão a Teimosa Esperança. E se os corpos historicamente massacrados tombarem, que possam estar acompanhados dos seus aliados e aliadas, os seguidores e as seguidoras do Mártir Jesus. Com Ele a certeza da rebelde Ressurreição, em que os pobres e os perseguidos a todos precederão no Reino dos Céus. Pois, como bradou o profeta do Araguaia, Pedro Casaldáliga: “São Romero da América, pastor e mártir nosso, ninguém há de calar tua última Homilia”.
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São Romero da América e os Povos Indígenas: martírio e profecia. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU