21 Março 2023
"O mundo mudou mais nesses últimos 10 anos do que em 100 anos, se faz necessária uma governança do planeta em tempos de transição e transformação. É nesta governança global que a Amazônia pode ser não a moeda de chantagem e sim a moeda da transversalidade de Marina – entre ministérios e de mobilização social – e a da transnacionalidade de Lula", escreve Barbara Szaniecki, professora adjunta na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, em artigo publicado por UniNomade, 20-03-2023.
Em entrevista recente a Eduardo Sombini da Folha de São Paulo, o filósofo Paulo Arantes afirma que, como em 2003, Lula segue sem projeto em 2023: “Qual é o projeto lulista? Eles continuam sem nenhum projeto, como não tinham em 2003. Em 2003, era um discurso progressista, desenvolvimentista, redistributivista. Vai continuar sempre assim: tudo pelo social, tudo pelo emprego, não tem nada de novo.”
Mais adiante, Arantes afirma que num cenário de desaceleração econômica onde não pode mais contar com o boom das commodities e de pressão política onde não deve mais contar com as soluções anteriores, faz-se necessário “comprar tempo” para evitar o retorno da extrema-direita em 2026 (e até mesmo antes, visto que, de fato, ela nunca se foi) e a moeda desta compra seria a Amazônia.
Nesta correria contra o tempo, se o questionamento de Arantes acerca da “falta de projeto” dos dois primeiros governos Lula e, agora, deste terceiro assim como o papel da Amazônia neste cenário, entendemos que muitas perguntas são necessárias: Por que projeto? Como “amazonizar” a própria ideia de projeto? Essas questões vêm à tona a partir discussão sobre a brasilianização do mundo relembrada por Arantes e que aqui retomamos subvertendo a partir do devir-Brasil do mundo ou devir-Amazônia do mundo conceituado por Giuseppe Cocco em seu livro MundoBraz. Como afirmar a Amazônia como “projeto”, com muitas aspas, sob outros paradigmas evidentemente, para Brasis possíveis?
Nesta entrevista, Arantes se revela bem pessimista: trata-se não apenas de impedir o pior em 2026 como evitar desde já a possibilidade de o governo não chegar a seu término. É nesse sentido que ele sinaliza a necessidade de afastar o “second strike da extrema direita” (segunda tentativa de golpe ou, em 2026, um segundo governo) “comprando tempo”. E, mais do que uma moeda, a Amazônia torna-se a peça-chave de uma “chantagem”: “olha, se vocês não financiam, se não vêm investimento, se vocês não viabilizam alguma coisa que é um arremedo de economia com juros baixo, crescimento, emprego, mais ou menos, por um tempinho só, vocês vão fuder com tudo aqui, esse pessoal volta” (ARANTES, 2023).
Cabe aqui dar um passo atrás para pensar como chegamos nesse ponto preciso onde o Brasil que despontava como futuro do mundo passa a ser o lugar onde o futuro acaba. A expressão “brasilianização do mundo” foi cunhada por Michael Lind em 1996 para se referir à fenômenos de urbanização dos territórios e precarização do trabalho, tipicamente brasileiros, que passam a proliferar mundo afora. Hoje, ao perceber que o Brasil como futuro começou a acabar pela Amazônia, podemos falar de uma “brasilianização” da própria Amazônia.
É verdade que já são séculos de um contínuo acabar, mas hoje podemos detectar momentos da nossa história onde esse “acabar” se tornou evidente: o primeiro é certamente o período da ditadura militar com megaprojetos dilacerantes como a Rodovia Transamazônica, mas um segundo momento, certamente, é aquele em que Marina Silva deixou o Ministério do Meio Ambiente em 2008.
É conhecida de muitos a vida dessa mulher negra nascida em seringal, analfabeta até os 16 anos, quase freira e transformada pela teologia da libertação, formada em história na Universidade Federal do Acre, companheira de seringueiros e sindicalistas como Chico Mendes com quem alcançou as primeiras conquistas em termos ecológicos no Brasil (CUNHA, 2009; TSING, 2004) e política equilibrada entre a forte militância nos movimentos sociais e atuação em diversos âmbitos da representação: vereadora de Rio Branco (1989-1991), Deputada Estadual do Acre (1991-1995) e Senadora pelo Acre[1] (em 1995 e, depois de Ministra, novamente eleita 2008).
Foi com essa longa experiência política e com todo esse conhecimento socioambiental que chegou ao Ministério do Meio Ambiente em 2003, no 1º governo Lula e pôde colocar questões como a regulamentação do acesso aos recursos genéticos que se concretizou mais tarde como Lei da Biodiversidade conquistando reconhecimento mundial. Mas foi também ali que, rapidamente, ganhou inimigos ferrenhos. Em entrevista à autora de sua biografia, em 2010, Marina diz: “Imagina o que é você colocar de pé um plano dessa magnitude, ter de prender centenas de pessoas, desconstituir 1,5 mil empresas, aplicar 4 bilhões de reais em multas, criar 24 milhões de hectares de unidades de conservação em áreas que estavam sendo ocupadas de forma predatória. Isso gerou um tensionamento muito grande, mas o tempo todo dizia para a minha equipe que iríamos fazer as coisas estruturantes ainda que elas não rendessem, digamos assim, nenhum retorno imediato em termos de simpatia.” (CÉSAR, 2010, p. 205).
Assim como as tensões, as vitórias foram gigantes: os índices de desmatamento na Amazônia caíram vertiginosamente. Já na ocasião, Marina certamente já percebia a transversalidade das questões amazônicas e a necessidade de uma abordagem transministerial. O que não previu era que, ao final do segundo governo Lula, a tal falta de retorno em termos de simpatia pudesse se transformar em uma oposição radical às ações ambientais não apenas por parte do agronegócio e das madeireiras entre outros atores econômicos, legais e ilegais, como também por parte do seu próprio partido, o PT. Com a aproximação das eleições de 2010, “o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento estava na ordem do dia.
O PAC era a menina dos olhos do governo federal, ao prever investimentos de 503,9 bilhões de reais até 2010, com ênfase em obras de infraestrutura nas áreas de saneamento, transportes, habitação popular e grandes usinas hidrelétricas, entre outras.” (CÉSAR, 2010, p. 210). Dilma passou a ser a mãe do PAC e a usina hidrelétrica de Belo Monte foi parida em 2016, custando aos cofres públicos cerca de R$ 19 bilhões e efeitos ambientais incalculáveis (isso sem mencionar questões que, no Brasil, se tornaram tabu). Se o governo Lula nasceu sem projeto, isto é, aberto aos processos constituintes dos movimentos sociais, no final do percurso ele se fechou no pior deles. Ou quase. Porque o pior estaria ainda por vir.
Podemos nos poupar de descrever a década de 2010 a 2020. Sobrevivemos com 700 mil mortos por Covid e 33 milhões de brasileiros enfrentando fome. E assim chegamos às eleições de 2022, quando, ufa, por um triz, Lula venceu de Bolsonaro. Sem projeto, segundo Paulo Arantes. Talvez por desconfiança nossa da própria ideia de “projeto”. E não é por menos, afinal de contas, depois do projeto nacional dos militares e depois do projeto desenvolvimentista do final do segundo governo Lula e início do governo Dilma, sobrevivemos a esse efetivo projeto de destruição e genocídio[2] que foi o governo Bolsonaro. Diante da “brasilianização da Amazônia” que esse doloroso processo gerou e da face mais perversa que esse último governo escancarou, seguimos perguntando “como pudemos chegar a esse ponto?” Mas o exercício aqui será o que fazer para enfrentá-la: com ou sem projeto? Comecemos por uma rápida cronologia dos eventos desde as eleições presidenciais de 2022.
Apesar de toda uma série de, digamos, incidentes, Marina apoiou a eleição de Lula. Com ele foi à COP 27 no Egito e teve agenda cheia de encontros com representantes e ativistas nacionais e internacionais marcando o retorno do Brasil ao cenário global. Lula tomou posse e veio a abominável tentativa de golpe de 8 de janeiro. A nomeação de Marina como Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima demorou desnecessariamente, e talvez tenha se concretizado mais por pressão da opinião pública internacional do que por bases nacionais, mas chegou finalmente em 23 de dezembro de 2022. Logo viajou a Davos na Suíça com Fernando Haddad em 17 de janeiro de 2023, a Washington nos Estados com Lula em 9 de fevereiro para visita ao presidente norteamericano Joe Biden e, de volta ao Brasil, recebeu John Kerry, Enviado Especial para o Clima.
A esperança de receber um aporte substancial ao Fundo Amazônia não foi concretizada: o governo Biden que prometeu bilhões de dólares para a sua transição interna, mencionou apenas um aporte de cerca de 50 milhões para a Amazônia. A frustração foi grande e as possibilidades de ação demandarão uma maior mobilização.
Se é verdade que uma Marina sozinha não faz verão, neste governo, ela pode contar com ministras e ministros parceiros [3], sendo sem dúvida Sonia Guajajara uma de suas maiores aliadas nessa caminhada. Certamente serão muitos os “empates”.[4]
Mas, como veremos agora, o enfrentamento da “brasilianização da Amazônia” não depende apenas de ações governamentais, sejam elas internacionais ou nacionais, mas requer ações e movimentos da sociedade brasileira. A pergunta “com ou sem projeto” se transforma em “que tipo de projeto, talvez?”
O tempo passa, o mundo parece correr para o abismo, e no Brasil, de modo particular, a Amazônia parece já ter chegado no fundo dele: se nas cidades, assistimos impotentes ao abandono dos territórios e das pessoas em situação de rua, da Amazônia nos chegaram imagens da destruição provocada pelo garimpo e do desespero dos Yanomami que ainda queimam as nossas retinas. Que projeto para esse país onde o pior pode sempre piorar e, nesse processo, como “comprar tempo” sem vender (tantos) mundos?
“Projeto” é algo próprio da modernidade e, mais precisamente, da modernidade industrial. Próprio no sentido que o projeto é, precisamente, o acelerador da modernidade industrial. Ora, com Bela Gil, eu diria “você pode substituir uma xícara de aceleração, por três pitadas de aumento da participação, ampliação dos processos e abertura de possíveis.”
No Brasil, utiliza-se “desenho industrial” para designar a produção tanto de objetos industriais quanto de peças comunicacionais e, na maioria das vezes, tudo junto e misturado. Não há objeto industrial que não venha acompanhado de sua própria comunicação visual e tudo isso provocou a aceleração da produção e do consumo no pós-guerra. Tudo indicava que seríamos felizes para sempre, mas o design moderno, ainda que tenha promovido um acesso mais democrático aos bens de consumo, já ampliava uma brutal divisão técnica e social do trabalho e, ao planejar a produção, acelerava os impactos ambientais.
Se o problema já era visível nos anos 50, foi somente nos anos 70 que vieram as primeiras advertências sobre os impactos ambientais com o Clube de Roma, o relatório Meadows (Meadow, 1972) e, no campo do design, com Victor Papanek (1972) que apontou mais especificamente as responsabilidades projetuais. Por muitos anos os países em desenvolvimento procuraram seguir o modelo dos países desenvolvidos. Ora, em dado momento, o que ocorreu de fato foi que países desenvolvidos passam a conhecer fenômenos típicos dos países tidos como subdesensenvolvidos. Como dissemos anteriormente, em 1996, o sociólogo Michael Lind chamou esse fenômeno de “brasilianização do mundo” e, em 2000, o filósofo Paulo Arantes o retomou no ensaio “A Fratura Brasileira do Mundo” e voltou a comentar agora, nessa entrevista de 2023.
Já em 2009, em seu livro MundoBraz – o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo, Giuseppe Cocco retoma a questão de uma outra perspectiva. Cocco observa que fenômenos tipicamente brasileiros tais como o inchaço das periferias, a violência das relações e a precarização do trabalho em área urbana mencionados por Michael Lind e retomados pelo próprio Paulo Arantes para exemplificar a “brasilianização do mundo”, são todos frutos da crise da noção de desenvolvimento. Sem negar os efeitos negativos da flexibilização aponta possibilidades de libertação do trabalho por meio, entre outros meios, de uma renda de cidadania. O garimpo não é trabalho moderno, pelo contrário, mais se assemelha a um neoescravagismo contemporâneo que confirma de certo modo a própria “brasilianização da Amazônia”, ou seja, que fenômenos tipicamente urbanos se expandiram… até a floresta! Ora, se expulsos da Amazônia no Norte, garimpeiros poderão ser encontrados como “terceirizados” pelos outros cantos do país.
Com toda razão, Arantes afirma que não é possível se fazer uma “guerra ao garimpo” em plena Amazônia nos moldes da “guerra às drogas” tal como foi feita em toda a América Latina: “[…] desses 50 mil no sistema da garimpagem, 90% é povo descartado por essa brasilianização do capitalismo que aconteceu há 25, 30 anos atrás. O que se faz com esse povo descartado?” A expulsão espetacular não é solução nem para o governo nem para a sociedade, muito pelo contrário, pode alimentar as chamas do bolsonarismo. Mas afirmar isso não significa que o problema não deva ser enfrentado com políticas públicas como o Bolsa Família (durante muito tempo rejeitadas à esquerda como à direita) entre outras porvir, em diálogo e dinâmica aberta entre governo e sociedade.
Com base em autores como Eduardo Viveiros de Castro e Bruno Latour entre outros, Cocco coloca a relação entre homem e natureza no centro desta crise: “O esgotamento dos modelos de crescimento industrial como mecanismo fundamental de desenvolvimento (e integração social e/ou de “progresso”) implica a própria crise da noção de desenvolvimento e, mais em geral, da relação entre homem e natureza à qual ela está atrelada.” (COCCO, 2009, p. 61).
Cocco questiona o modelo industrial como base de uma dominação da natureza que é também uma dominação social. O que a mudança nessa relação pode abrir como possibilidades para sair da crise? Algumas respostas são bastante evidentes – com efeito, a relação da humanidade com o que chama de natureza ou recursos naturais deve ser modificada urgentemente visto que a finitude dos recursos naturais indica seriamente a finitude da própria humanidade; outras nem tanto, afinal de contas, se a mudança da relação pode eliminar o garimpo, como ela poderia encontrar possibilidades de renda para o garimpeiro, seja ele um ribeirinho caboclo ou mesmo um indígena? Essas possibilidades tampouco encontram solução numa natureza que transcende a humanidade, pois não há fora nem dentro. “Produção” pode deixar de ser o nome da ação e da dominação do homem sobre a natureza, ou de humanos sobre não humanos, e sim o nome de uma outra relação. Em todo caso, a alternativa ao desenvolvimento não é sua eliminação, isto é, um decrescimento: “A ‘proteção da Amazônia’ e dos direitos dos índios não é nem uma questão de exploração instrumental de seus conhecimentos e recursos ‘naturais’, nem uma questão de modelo econômico.” (COCCO, 2009, p. 69). Segundo Cocco, trata-se sobretudo de uma questão de democracia onde o que interessa realmente é a redução (descrescimento) das desigualdades.
Assim como milhões de brasileiros que hoje retornaram ao mapa da fome, mais preocupados com o fim do mês do que com o fim do mundo, os garimpeiros não vivem de teoria o que reforça de certo modo o ceticismo de Arantes: “Não adianta ficar com satélite monitorando o desmatamento e conseguir fundos alemães e noruegueses para manter uma sociedade de baixo carbono em regiões que vão viver de quê? De créditos de carbono.” Se os dois primeiros governos Lula se beneficiaram do boom das commodities, este novo governo se beneficiaria da preocupação com as emissões de carbono e esta permitiria o “comprar tempo” que evitaria um novo governo de extrema-direita. Arantes oscila entre o ceticismo desenfreado e um pragmatismo desencantado, e expressa uma preocupação com uma possível alternância entre líderes carismáticos em um círculo vicioso que nos engolirá a todos, incluindo nossos filhos e netos.
Em dado momento da entrevista, ele pergunta “onde é que está a nossa força?”. É mesmo desta força que precisamos falar. O devir-Amazônia do Brasil (COCCO, 2009) emerge a partir de uma outra perspectiva: das forças que emanam desses brasis, das relações sociais em sua materialidade sem esquemas ideológicos transcendentes e da própria relação social como materialidade com base na superação de epistemologias e práticas baseadas na clivagem cultura versus natureza, em direção a ou em hibridização com outras. Talvez assim, juntando nossas forças, consigamos comprar algum tempo sem vender (tantos) mundos.
Apesar da “brasilianização” generalizada da própria região Amazônica, é possível ver iniciativas potentes nos campos político, econômico e social, e evidentemente, o ecológico que é (ou deveria ser) transversal: um MundoBraz ou uma ecologia política nos termos teóricos de autores como Cocco ou Latour respectivamente, ou transversalidade nos termos de Marina Silva explicitado em discurso[5] ao assumir o Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima: “A transversalidade não é mais um desejo, um sonho, é uma realidade, descrita nas estruturas organizacionais de todas as novas pastas da Esplanada. Comprometo-me, por meio do Ministério que tenho a honra de conduzir, a envidar todos os meus esforços para que essas letras escritas se traduzam na prática. O papel do MMA não é ser um entrave às justas expectativas de desenvolvimento econômico e social de nossa população, mas de um facilitador para orientar a forma como essas demandas podem ser atendidas sem prejuízo da necessária proteção de nossos recursos naturais. Haverá, naturalmente, tensões e contradições. A transversalidade ainda é incipiente. As visões setoriais precisam evoluir para uma perspectiva mais integradora, trazida por novos paradigmas em curso no mundo inteiro.”
Uma amazonização das políticas governamentais é essa transversalidade para além da setorialidade que favorece o reflorestamento da economia e da democracia (SZANIECKI, 2022).
Marina prossegue: “Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Ministério da Fazenda, Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, Ministério da Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério da Pesca, Ministério dos Povos Indígenas, todos esses, entre outros, contemplam em suas estruturas e competências a preocupação com a questão ambiental.”
No campo da economia, por exemplo, a Amazônia não precisa funcionar como chantagem, ela pode ser uma moeda confiável nesse tal mercado de carbono. Neste campo, os debates se concentram em pelo menos dois eixos: o primeiro se concentra na redução do efeito estufa e, diante das drásticas mudanças climáticas, mobiliza o mundo inteiro. Podemos reconstituir uma linha histórica que inicia com o relatório Meadow (1972), segue com a Conferência de Estocolmo no mesmo ano, ganha tração com a ECO92 (1992), avança com a Rio +20 (2012), se consolida com o Acordo de Paris (2015), segue com as COPs mas morre na praia da COP27 no Egito (2022), onde acordos que possam levar recursos dos mais desenvolvidos (leia-se “mais emissores de gases de efeito estufa”) aos menos desenvolvidos (leia-se “menos emissores e que mais pagam as consequências do aquecimento global”). Na COP27, o tema das reparações chegou cheio de ideias, mas saiu sem as decisões necessárias para as compensações pois elas parecem insuficientes para novas apostas; o segundo eixo, articulado ao primeiro, nacional ou internacional, é o do “desenvolvimento sustentável”: há muitas críticas ao termo e às práticas visto que, por esse caminho, a “sustentabilidade” permanece atrelada ao “desenvolvimento”. Os discursos e as práticas ESG, sigla para “governança ambiental, social e corporativa” (Environmental, Social, and corporate Governance), seguem pelo mesmo caminho do desenvolvimento, contudo, ainda assim, alguns danos parecem ter melhor chance de serem reparados com ESG do que sem.
O paradigma industrial permanece forte mesmo em projetos com alta tecnologia digital (em suas instalações e em suas plataformas) como o Amazonia 4.0 [6] seja no discurso – “unimos natureza e indústria” –, seja nas práticas com foco no desenvolvimento das “cadeias produtivas” do cacau, do cupuaçu e do açaí entre outros frutos nativos”. Ainda assim, impressionam a quantidade e qualidade de redes de produção de sementes [7] que certamente já estão criando outros meios. O paradigma urbano também se mantém forte com a tentação de implementar nas florestas o que deu certo (e mesmo o que não deu) nas cidades: a inteligência artificial que se acopla ao design urbano para gerar smart cities também se acoplará à inteligência xamânica e às práticas amazônicas de modo a gerar, por sua vez, smart forest? O Smart Forest Atlas [8] traz inúmeras iniciativas geradas e geradoras de experimentos florestais que instigam o design a “produzir” em territórios florestais para além desses paradigmas, ou seja, reinventar-se como um desenho para além do industrial. Temos muitas forças para um reflorestamento da economia.
No campo científico, também se multiplicam iniciativas. Projetos como os mencionados acima – Amazon 4.0 e Smart Forest – contam com corpo científico relevante. O projeto Amazon 4.0, por exemplo, conta com Carlos Nobre, um dos maiores climatologistas do mundo, fazendo um importante alerta sobre a “savanização” da floresta amazônica: “As emissões de gases de efeito estufa, neste momento crítico da mudança climática, são muito elevadas. Cinquenta por cento das emissões brasileiras de gases de efeito estufa vêm do desmatamento da Amazônia. E precisamos encontrar um novo paradigma para que o Brasil conserve nossos biomas, especialmente para salvar a Floresta Amazônica. O clima tem mudado. A estação seca já é mais longa no sul da Amazônia. Está mais quente. A floresta não recicla tanta água. Ela não absorve tanto carbono da atmosfera. De fato, corremos o risco de transformar a Amazônia em uma savana enorme e degradada”.[9] A degradação do ambiente – savanização, seca e incapacidade de absorver as emissões de carbono – caminha junto com a degradação socioeconômica: “Desmatamos 80% da Mata Atlântica, desmatamos 50% do Cerrado e 20% da Floresta Amazônica”. A visão do governo militar no final dos anos 60 e início dos anos 70 era de desmatar a floresta. A floresta era vista como um obstáculo para o desenvolvimento da Amazônia. A floresta foi queimada para fertilizar a pastagem do gado. Tal modelo nunca trouxe nenhum tipo de benefício econômico. Mais de 60% da população da Amazônia é pobre. Este modelo não levou milhões de brasileiros a encontrar uma melhor qualidade de vida e foi um enorme fracasso. Nós desmatamos a Amazônia e não trouxemos nenhum benefício econômico para nenhum dos países amazônicos”.
Esses três aspectos – ambiental, social e econômico – estão imbricados no Amazon 4.0. Ao longo do abominável governo Bolsonaro e apesar da sua perseguição às ciências, além de Carlos Nobre, também se destacou Ricardo Galvão, presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Institutos como o INPE se destacaram por dar visibilidade ao que estava ocorrendo na Amazônia e é possível mencionar outros em desenvolvimento: Amazon Tall Tower Observatory, Somai, Raisg, Imazon, Previsia são alguns deles[10] e indicam que o território amazônico requer tanto monitoramento quanto mobilização. Retornaremos a essa questão. Demitido por Bolsonaro, Ricardo Galvão acaba de assumir a presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Já Nísia Trindade, Presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição carioca fundamental ao longo dessa dura pandemia, assumiu o Ministério da Saúde e imediatamente se deslocou até Rondônia quando noticiada a situação desesperada dos Yanomamis. Temos muitas forças para um reflorestamento das ciências com base no diálogo entre epistemologias e estéticas.
E por fim, no campo social, organizações proliferam, algumas mais e outras menos organizadas. Chamou a atenção, durante toda a pandemia, a capacidade de povos indígenas de reinvenção das tradições e reivindicação das tecnologias. No Smart Forest Atlas, chama a atenção, por exemplo, os vários projetos de podcasts.[11] Em seus “papos”, diversas etnias apresentam e debatem conhecimentos debates sobre agricultura, medicina, gastronomia, literatura e, claro, política. São eles: Podcast Papo de Parente, Podcast dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, Podcast Wayuri e Podcast Copiô, Parente! entre outros. Os debates são essenciais para articular etnias em seus saberes e fazeres cotidianos, de modo a estarem atentos aos momentos em que a mobilização política se faz necessária. Nesses brasis, existe uma atenção contínua ao modo como as decisões políticas de Brasília impactam os territórios indígenas em todo o Brasil. Mobilização é tão fundamental quanto monitoramento.
Ao longo da pandemia, indígenas se mantiveram ativos, seja em protestos no Planalto, seja nas ações entre si e para além de si tais como a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Junto com a Univaja, o indigenista Bruno Pereira havia denunciado o garimpo entre outras atividades ilegais da região antes de ser barbaramente assassinado junto com o jornalista inglês Dom Phillips em 5 de junho de 2022, chamando a atenção do Brasil e do mundo. Aqui tudo é superlativo: vivemos a alternância sem trégua das mais cruéis insanidades com as mais alvissareiras iniciavas. Se um dia nos chega o genocídio dos Yanomamis, no outro nos chega a do encontro no Acre entre Ashaninkas e Caiapós para trocas de saberes. Os indígenas estão na linha de frente de muitos dos conflitos da Amazônia e por isso, com toda razão, afirmam que podcasts entre outras iniciativas são produzidos para “indigenizar o Brasil” com suas estéticas e epistemologias baseadas em outras relações entre “cultura” e “natureza”. Temos muitas forças para uma floresta inteira de movimentos e mobilizações sociais.
Nesta rápida caminhada de 2003 a 2023, seguimos perguntando que diferença faz um governo ter ou não ter um projeto. Arantes critica a ausência deste e se preocupa com um possível retorno da extrema-direita no Brasil em um contexto global infelizmente já muito favorável a este extremismo. Mas sua preocupação vem da crença na força carismática dos líderes como único determinante dos próximos anos ao invés de confiar e creditar nossa capacidade em gerar um devir-amazônico do Brasil e do mundo com base em outras linhas projetuais.
Do ponto de vista estritamente projetual (do design, da arquitetura e do planejamento urbano), “gambiarra” não tem necessariamente conotação negativa, muito pelo contrário, ela pode ser entendida como um projeto aberto aos participantes do processo a partir de seus conhecimentos e práticas em diferentes contextos e em outras relações de formas e fluxos. Ao levar as questões projetuais ao campo político, talvez seja possível dizer que nos dois primeiros governos Lula tivemos algo como uma “governança gambiarra” que de, de repente, ao pôr o pé no acelerador na passagem para o governo Dilma, deixou de ter essa necessária abertura à criatividade e à cidadania (em particular em junho de 2013) e, quem sabe agora, pela sua própria fragilidade, volte a ter. Ora, o mundo mudou mais nesses últimos 10 anos do que em 100 anos.
Hoje, segundo Edson Passetti, a governança global é algo como uma “ecopolítica” (PASSETTI, 2013). Não se trata nem de uma Biopolítica que visa a população e a “faz viver” (FOUCAULT, 2004), nem de uma Necrocopolítica que a “faz morrer” (MBEMBE, 2016), embora possa manter traços de ambas.
A Ecopolítica não é tampouco uma disciplina ou campo de conhecimento como a ecologia ou o ambientalismo e sim uma governança do planeta em tempos de transição e transformação. Passetti coloca que direita e esquerda, neoliberais e marxistas parecem ter se encontrado em um mesmo fluxo ecopolítico, uns defendendo o desenvolvimento sustentável enquanto outros sustentam uma ecologia como humanização e estratégia política de contestação. É nesta governança global que a Amazônia pode ser não a moeda de chantagem e sim a moeda da transversalidade de Marina – entre ministérios e de mobilização social – e a da transnacionalidade de Lula, para além de qualquer política de integração ou desenvolvimento nacional. Será?
ARANTES, Paulo. “Mesmo sem projeto, Lula terá sucesso se frear a extrema-direita”. Entrevista a Eduardo Sombini da Folha de São Paulo, 2002. Acessível aqui.
BRUM, Eliane. Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
CÉSAR, Marília de Camargo. Marina: a vida por uma causa. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
COCCO, Giuseppe. MundoBraz – o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2009.
DA CUNHA, Manuela Carneiro. 2009. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify,2009.
FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique – Cours au Collège de France. 1978-1979. Paris: Seuil/Gallimard, 2004.
LATOUR, Bruno. Politiques de la nature – comment faire entrer les sciences en démocratie. Paris, La Découverte/Paris, 2004.
LIND, Michael. The Next American Nation. New York: Free Press, 1995.
MBEMBE, Achille. “Necropolítica” em revista Arte & Ensaios, número 32, dezembro de 2016. Acessível aqui.
MEADOWS, Donella H. et al. The limits to growth – A report for the Club of Rome’s project on the predicament of mankind. New York: Universe Books, 1972.
PAPANEK, Victor. Design pour un monde réel – Écologie humaine et changement social. Dijon: Les presses du réel, 2021.
PASSETTI, Edson. “Transformações da biopolítica e emergência da ecopolítica” em Revista Ecopolítica, São Paulo, n. 5, jan-abr 2013, pp. 2-37.
SZANIECKI, Barbara. Reassembling People, Redesigning Forests, Reforesting Democracy – PDC ’22: Proceedings of the Participatory Design Conference 2022 – Volume 2 August 2022 Pages 20–24. Disponível aqui.
WESTERLAKEN, Michelle; Gabrys, Jennifer; Urzedi, Danilo. Digital Gardening with a Forest Atlas: Designing a Pluralistic and Participatory Open-Data Platform – PDC ’22: Proceedings of the Participatory Design Conference 2022 – Volume 2 August 2022 Pages 25–32. Disponível aqui.
TSING, Anna L. Friction: an ethnography of global connection. Princeton, and Oxford: Princeton University Press, 2004.
[1] Acre: um Estado com 46% de áreas protegidas por lei e com inúmeras etnias. Marília de Camargo Cesar cita os Ashaninka, … (p. 175).
[2] Há muita controvérsia acerca do uso do termo genocídio: no caso dos Yanomami, o Tribunal Penal Internacional de Haia julgará.
[3] Neste governo, 11 mulheres estão a frente de ministérios: Ana Moser (Esporte), Anielle Franco (Igualdade Racial), Cida Gonçalves (Mulheres), Daniela Carneiro (Turismo), Esther Dweck (Gestão e Inovação), Luciana Santos (Ciência e Tecnologia), Margareth Menezes (Cultura), Nísia Trindade (Saúde), Simone Tebet (Planejamento) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas).
[4] “Empates são manifestações de ativismo político intermediário em prol da preservação da floresta amazônica pelos seringueiros. Nessas manifestações, os ativistas defendem a mata organizando os chamados “empates”: correntes de pessoas com as mãos dadas em torno da área a ser devastada e assim impedem o seu desmatamento, ou ainda cercam os trabalhadores encarregados do desmatamento e levam seu líder a assinar um documento garantindo que o trabalho será suspenso.” (definição de “empate” na Wikipedia).
[5] Disponível aqui.
[6] Disponível aqui.
[7] Rede Sementes do Xingu (disponível aqui) e o Cerrado do Pé (disponível aqui) entre outras, são iniciativas de redes brasileiras de sementes.
[8] Disponível aqui.
[9] Amazônia 4.0: The reset begins: disponível aqui.
[10] Amazon Tall Tower Observatory, Somai, Raisg, Imazon, Previsia são alguns deles.
[11] Papo de Parente: Disponível aqui; Podcast Wayuri – Rede Wayuri Comunicadores Indígenas: Disponível aqui; Podcast Copiô Parente: Disponível aqui. Podcast dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil: Disponível aqui. Pesquisa de Danilo Urzedo no Smart Forest Atlas.
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Amazônia 2023: um “projeto” para Brasis possíveis. Artigo de Barbara Szaniecki - Instituto Humanitas Unisinos - IHU