24 Outubro 2017
"O que interessa aqui é simplesmente afirmar que nós não mantemos nenhuma fé em dogmas nem em nenhuma igreja e não seguimos nenhum rabinato, seja ele a Ideia da Esquerda e seus representantes fundamentalistas ou reformadores, seja o corporativismo universitário reorganizado numa nova doxa apaziguada."
O artigo é de Giuseppe Cocco, professor titular da UFRJ, doutor pela Sorbonne (Paris I), autor de Glob(AL) com Antonio Negri (2005), MundoBraz (2009) e KorpoBraz (2015), entre outros livros, participa da rede Universidade Nômade, e Bruno Cava, mestre em Filosofia do Direito e escritor, em artigo publicado por UniNômade Brasil, 20-10-2017.
"Não estamos interessados nos barões do rabinato da esquerda, suas análises sob encomenda e seu líder ungido - escrevem. Nós ficamos com os malditos".
Temos e mantemos uma inestimável estima pela pessoa, o militante e o filósofo Antonio Negri. Mas a nossa estima não significa – e nunca significou – nenhuma fidelidade e ainda menos alguma forma de fé. Muito pelo contrário: ela fica viva na diversidade de avaliações e no dissenso que apareceram ao longo do tempo e, sobretudo, com o que aconteceu depois da restauração – em parte obra do petismo e do “voto crítico”– do levante de junho de 2013.
Não há qualquer dúvida de nossa parte quanto ao profundo e duradouro legado que os conceitos inventados por Negri imprimem sobre nossas práticas de luta, êxodo e resistência. No militante, reconhecemos a figura de alguém que atravessou a derrota do movimento autônomo do final da década de 1970 com a dignidade de quem sempre procurou, usando suas palavras, “reconhecer a derrota” sem aceitar que ela se torne um horizonte insuperável. O filósofo foi (e, em parte, continua sendo) a nossa inspiração em sua incansável vontade de invenção de conceitos atravessados pelos desafios das lutas e da democracia no capitalismo contemporâneo, sempre com alegria, passione e genuíno amor pela marcha da liberdade.
Nos anos 1980 e 1990, a sua reflexão se concentrou, ao mesmo tempo,
1) na renovação da análise da composição de classe, mediante a proposição de uma nova Einleitung para a pesquisa militante, com a renovação dos conceitos marxianos de General Intellect e de trabalho vivo e imaterial, vigas mestras para a construção de um novo perspectivismo, no interior da inflexão pós-fordista do regime de acumulação; e
2) numa recomposição pela via filosófica das potências subterrâneas da altermodernidade, aquela desenhada pelo fio da metafísica maldita que liga Maquiavel a Spinoza e este a Marx e Tronti. Na virada do século, a trilogia sobre Império, Multidão e Commonwealth conseguiu estabelecer um diálogo fecundo com dois grandes ciclos de lutas globais: o ciclo neozapatista de Seattle, Buenos Aires e Gênova e, mais de dez anos depois, o ciclo das primaveras árabes, que se abriu numa pequena cidade da Tunísia, passou pela Espanha do 15M e se encerrou quando a terra tremeu no Brasil, Turquia e Ucrânia.
A globalização imperial se descortinou realmente como o terreno de luta de multidões de singularidades capazes de cooperar entre si e se manter enquanto tais, na malha heterogênea das diferenças, no caldeamento de perspectivas ontológicas. Assim, nós reconhecemos em Negri essa figura excepcional de envolvimento afetivo, político e teórico, em toda a irredutibilidade de seus caminhos e descaminhos, escolhas e paradoxos.
Mas Negri nos ensinou a ler Spinoza. E nós o lemos e estudamos. De Spinoza, apanhamos pelo menos três lições que vão nos interessar diretamente aqui. A primeira tem a ver com a inquietação spinozista por excelência: “por que os homens desejam sua própria servidão?”. A segunda é a disjuntiva que Spinoza abre em sua discussão do funcionamento do poder, entre potentia e potestas. A terceira diz respeito à excomunhão que o filósofo do século XVII sofreu, ao ser expulso da Sinagoga pelos barões do Rabinato, nos termos mais vexatórios.
Nós ficamos aqui com o cattivo maestro e não com a fração da esquerda que, diante do levante de junho de 2013, se escandalizou a ponto de formular uma pergunta que só faz sentido do ponto de vista da potestas: “por que eles se revoltam?”. Quando, na realidade, da perspectiva constituinte, a pergunta era e continua sendo: “por que não se revoltam o tempo todo, por que não rechaçam a servidão?”.
São esses intelectuais que, no mesmo momento em que concediam entrevistas e proferiam palestras classificando as “multidões” de fascistas – chegando a elencar no rol de acusados os intelectuais ligados ao próprio Negri e, pasmem, a Michel Foucault e Giorgio Agamben –, reforçaram o consenso repressivo que alimenta a polícia mais assassina do mundo. Enfim, não estamos interessados nos barões do rabinato da esquerda, suas análises sob encomenda e seu líder ungido. Nós ficamos com os malditos.
Não se trata simplesmente de uma crise da Política, ante o que se faria necessária a chegada de uma Reforma (ou Contra-Reforma), uma capaz de restituir o sentido original que as mudanças de subjetividade dos últimos 30 ou 40 anos teriam dissipado. Ela é bem mais ampla e envolve inclusive as redes de co-pesquisa e pensamento tributárias da filosofia da autonomia da década de 1970, e mesmo a rede das universidades nômades que Negri ajudou a constituir na Europa, depois de conhecer a pioneira brasileira, isso em sua primeira visita, em 2003. Mas, neste ponto, não há nada a lamentar. Certamente, não nos vemos num fin de siècle melancólico como se tivéssemos perdido algo de valioso ao longo das jornadas de afirmação e luta de que participamos e continuaremos a participar. Ao contrário, consideramos que essa crise abrangente, crise também das teorias que até bem pouco tempo se encontravam incorporadas em singularidades vibrantes, tem um lado positivo e até salutar.
Que os mortos enterrem os seus mortos. Depois de um sem número de visitas organizadas pela UniNômade Brasil entre 2003 e 2014, Negri ainda esteve mais duas vezes no Brasil: em 2016, quando ele visitou a USP e alguma outra instituição em São Paulo e, nesta primavera de 2017, no Rio de Janeiro e novamente em São Paulo, para comparecer numa missa dos 100 anos da Revolução Russa.
Em ambos os casos, o PT e o próprio Lula destacaram a visita do filósofo e as suas declarações e entrevistas. Com certeza, a importância que o PT realmente existente deu às últimas duas vindas de Negri é um sinal antes de seu desespero recente do que de uma lucidez tardia. Na falta de algo melhor, até o velho autonomista italiano que sempre foi considerado um antípoda do pensamento estadocêntrico e desenvolvimentista pode servir ao propósito de engrossar o coro de viúvas do governismo de esquerda.
Que Negri avalie que o cadáver do PT constitui um espolio político a ser disputado é, obviamente, um direito dele que nós respeitamos. Mas, se ele se dissocia (e explicaremos depois por que) da UniNômade Brasil, nós nos dissociamos dele.
Então, nós achamos positivo e produtivo que essa diferenciação entre a UniNômade Brasil e o Negri apareça claramente e não estamos denunciando nada mesmo, apenas aproveitando para esclarecer a nossa posição para que não haja nenhum mal entendido. Nessas duas visitas, Negri multiplicou os esforços para se apresentar como moderado e responsável diante do “drama brasileiro” e fez questão de defender a “esquerda” e o que seria seu mal necessário: Lula.
Nós avaliamos, ao contrário, que sua postura formalmente “responsável” diante da grave crise brasileira é, se admitíssemos esses mesmos termos para as escolhas, realmente irresponsável – e que portanto a sua reaproximação com a esquerda identificada ao que seria seu líder inconteste contribui para aprofundar ainda mais a paralisia das lutas e atrapalhar o ímpeto de reinvenção das singularidades que abraçaram o êxodo.
Não há significante vazio a ser disputado, seja ele o petismo moribundo, um lulismo Ersatz ou a esquerda órfã de grandes narrativas com o fim do bloco histórico do socialismo real na Europa ou do século XXI na América Latina. Não há vazio a ser preenchido por um novo discurso – uma Nova Esquerda, o Comum como cadeia de equivalências, uma assemblage de grupúsculos residuais – simplesmente porque o êxodo que se exprimiu em Junho de 2013 é uma plenitude, de modo que as percepções de um sentimento antipolítico ou anticorrupção são simplesmente as faces negativas de um continuum de recusas ativas.
Parece que Negri está preocupado em agenciar (to assemble) não mais por meio da invenção de conceitos afinados com a composição social do trabalho vivo, mas com mundos imaginários que permitam aos conceitos reproduzir um público – um por sinal bastante circunscrito a determinados símbolos, bandeiras e certo líder. O que nos leva a perguntar, a partir do título de um livro negriano de 2006: será que o seu Bye bye Mr. Socialism era apenas um mal resolvido arrivederci?
Quando – em novembro de 2014 – um dos pelo menos quatro sites da nebulosa pós-autonomista na Itália publicou uma análise política da reeleição de Dilma Rousseff, manifestando a sua crença na persistência da saúde do ciclo progressista na América do Sul, apontando apenas alguns pecados veniais, dois membros da UniNômade Brasil propuseram uma leitura diferente.
Dizíamos que a vitória de Dilma era, em primeiro lugar, uma derrota do movimento radicalmente democrático de junho e, em segundo lugar, uma vitória de Pirro, que poderia se resolver numa crise destituinte bem mais danosa, do ponto de vista das lutas, do que a eventual vitória de um adversário partidário do PT. Nesse artigo, dizia-se também que Dilma iria fazer exatamente o contrário do que tinha prometido na campanha eleitoral.
O julgamento de Negri foi lapidário: essa análise vinda do Brasil só poderia ser fruto de “narrativas fantasiosas” e – muito democraticamente – o artigo não foi sequer publicado. Acontece que, independentemente dos julgamentos de valor (se aquela postura era politicamente positiva ou negativa, de esquerda ou de direita etc.), o que estava escrito no artigo brasileiro foi o que veio a acontecer, só que numa versão ainda pior. Ter razão, no entanto, apenas inchou ainda mais a acusação, onde se podiam entreouvir ecos estalinistas, de que os doravante dissidentes estavam ressentidos, raivosos, psicologicamente abalados ou ficaram loucos. O que fica parecendo é que, quando não se pode, diante dos fatos, simplesmente jogar a trajetória militante e intelectual dos dissidentes na vala comum dos interesses privados, é preciso apontar para alguma irracionalidade oculta, algum vício de caráter ou desejo de vingança.
Nesse episódio, Negri corroborou a aplicação aos outros do que já fora aplicado a ele próprio, em particular, pela esquerda italiana durante a crise destituinte que se seguiu ao colapso do Compromisso Histórico e à operação Mani Pulite. Temos aqui um ponto para a reflexão sobre o funcionamento da esquerda quando vira a fé numa Ideia, uma cor normativa, um valor em si e isso não envolve apenas Negri, mas todo o campo militante e intelectual de esquerda, inclusive nós mesmos.
Voltaremos a esse ponto, o importante aqui consiste em enfatizar que quando fala do Brasil e da América do Sul, Negri parece estar falando de algo que não existe no mundo dos fatos, a não ser no interior das narrativas do PT e, mais em geral, do ex-governismo – ou quem sabe nos balões de ensaio conceitual do “Laboratório” sediado em Buenos Aires que ele inventou para ajudar a compor o sistema-mundo negriano. Pois não há nenhuma análise material da dinâmica da crise na qual o governo Dilma-Temer nos mergulhou.
Manietando assim o diagnóstico da conexão com as transformações reais que determinam os acontecimentos políticos e econômicos, a ponto de reduzir a análise a afirmações ideológicas sobre complôs das direitas e genéricos apelos a movimentos que mais parecem siglas listadas em manifestos de movimento estudantil. Como se fôssemos vítimas de uma onda fascista ex machina e, portanto, devêssemos cerrar fileiras com os últimos representantes da civilização esquerdista, mesmo quando manifestamente equivocada na prática e na teoria. A avaliação dos efeitos das políticas sociais de Lula se conforma a estudos estatísticos e apanhados sociológicos derivados do marketing lulista sobre a emergência de uma nova classe média e a suposta erradicação da miséria, um passe partout repetido para justificar tudo. Mas essa justificação, a que Negri também se soma, para a corrupção do governo Lula e do PT – fatos que não precisam da grande mídia conservadora para serem fatos – parou no tempo.
No Brasil, estamos vivenciando um duplo desastre:
1) a tentativa neodesenvolvimentista que naufragou em seus próprios termos e 2) a volta de um neoliberalismo que nunca fora de qualquer modo superado, e que agora arreganha os dentes em meio à falência do projeto de poder do PT.
Agora as reformas ricocheteiam sobre a população como “solução única” e a esquerda não tem mais nenhuma proposta de reforma, nenhuma imaginação, pois esta depende, como já dizia Tronti em Operários e capital, da classe que a nutre da vitalidade e do conhecimento das lutas. Lula-Dilma e Temer nunca mexeram com os interesses globais como poderia fazer crer a narrativa dicotômica de sabor noventista entre neoliberalismo e progressismo, pelo contrário, encheram os bolsos de velhos e novos empreendedores multinacionais da aristocracia do Império, desde a compra superfaturada da refinaria de Pasadena (no Texas) até a presença bilionária da JBS dos irmãos Batista no mercado dos Estados Unidos, para citar apenas dois exemplos.
A queda do preço das commodities é posterior ao início da recessão brasileira. Denunciar o neoliberalismo na universidade do estado do Rio de Janeiro traz em seu cerne uma mistificação brutal: quem quebrou o Rio foi o governo progressista. E já até reconheceu a responsabilidade pela crise. A primeira delação não foi aquela do doleiro que lavava o dinheiro da pilhagem da maior estatal brasileira, mas a imposição, logo depois da reeleição de Dilma, do pior dos ajustes: um ajuste desajustado que mergulhou o Brasil numa recessão cujos maiores prejudicados foram os mesmos pobres que aquele governo, a todo o momento, dizia proteger e representar.
A indignação dos panelaços e as manifestações pelo impeachment em 2015 e 2016 foram justas – mais uma vez, outro fato que prescinde da acorrida oportunista dos grandes meios de comunicação – e a nova direita as hegemonizou porque a esquerda inteira caiu na armadilha da defesa do PT e de Lula. Negri não está falando do Brasil real em que vivemos, mas de um lugar imaginário, respondendo mais à necessidade de continuar sustentando as suas análises erradas sobre o Lulismo do que em apreender o que está acontecendo. Ele enfim define as mudanças promovidas nesses últimos 13 anos como uma “revolução social”. Basta constatar a situação de guerra biopolítica em que estamos mergulhados, bem antes dessa crise, para termos uma ideia do que está acontecendo nas metrópoles e no interior do país. Mas, para Negri, se tratou mesmo de uma revolução. Mas não vamos insistir em semântica, caindo no vício linguageiro que parece contaminar os debates (quem é mais de esquerda, quem é “de luta” etc).
As pequenas brechas que foram abertas durante os anos 2000 nos interessaram no que tocam aos processos de radicalização democrática que elas viabilizavam. Quer dizer, da produção de novas subjetividades enquanto jatos de alta pressão de trabalho vivo e comum que passaram por essas brechas apesar do direcionamento majoritário do governo, em sua aliança com o bloco racista de biopoder e as oligarquias urbanas e rurais. Quem impele as mudanças, as únicas que nos interessam, não são os governos, mas as lutas, mesmo que nos governos possam encontrar condições mais ou menos favoráveis. O que significa que os governos não são todos iguais, premissa metodológica que nos norteou durante o percurso teórico e prático de apreensão do lulismo, mas que nem por isso significa que devamos deixar de lado a análise da composição das lutas (de classe).
Então, se houve mesmo revolução, foi em Junho e quanto a isso o Lula e o PT passaram para o retrato como contrarrevolucionários. A Restauração depois de junho de 2013, cujos ápices foram a Copa das Copas, em julho de 2014, e depois a falsa polarização bancada por bilhões desviados na eleição de outubro, não foi apenas a explicitação do fato que o governo Dilma-Lula e o PT tinham se convertido em engrenagens plenas do poder constituído, – da potestas aqui entendida como hard power, aquele corpo do rei que nunca morre. Foi também o fechamento definitivo e irreversível de qualquer processo que, anteriormente, poderia franquear alguma avaliação positiva dos governos do PT, enquanto espaços ambivalentes de construção e transformação.
O retrato desse Brasil imaginário atingiu as raias do teatro do absurdo quando Negri passou a repetir ipsis litteris a mesma análise que fazíamos doze anos atrás, na época em que estourou o escândalo do mensalão. A linha discursiva, à ocasião, se orientava por reconhecer que a lógica do poder para governar com esse Congresso e esses mecanismos eleitorais e partidários envolvia jogar o jogo para, por assim dizer, corromper a corrupção. Talvez, quando dissemos isso, tenhamos sido ingênuos, ou quem sabe tenhamos aderido muito fácil ao privilégio moral que a esquerda se concede a si mesma, um tipo de reserva mental que, quando é ela quem adere a estratégias nem um pouco louváveis, ou francamente reprováveis (a mais reles safadeza), é para um bem maior.
O que se revelou a posteriori no entanto não deixa margem para análises intrincadas e volteios dialéticos hegelianos. Aconteceu o inverso do que prevíramos naquela ocasião, um fato bem mais ordinário e fácil de entender. O que aconteceu é que a corrupção corrompeu Lula e o PT. Não somente Lula e o PT não aproveitaram a volta por cima que conseguiram dar em 2006, depois da reeleição, como também a usaram assim como a estrondosa popularidade para, por um lado, se homologarem ao modo patrimonialista de pilhagem do comum pela via do Estado neocolonial e, pelo outro, elevarem a corrupção ao quadrado, institucionalizando-a por dentro de um grandiloquente projeto neodesenvolvimentista. Não apenas Lula preferiu manter suas relações pelegas com o pai Emilio Odebrecht, como também as modernizou, as elevou a um novo patamar de organicidade política e econômica, com o filho Marcelo à proa do transatlântico, como no filme “Titanic” antes de chocar-se com o iceberg.
De que adianta agora, quando o navio está indo a pique, enclausurar-se no salão nobre da embarcação para tocar a “Internacional Socialista”? Não temos vocação para avestruz. Mas que bela revolução! A corrupção não é nenhum problema de direito constitucional, algo que o formalismo neokantiano de um Norberto Bobbio poderia resolver. Se Negri quiser mesmo valorizar a noção de “acumulação por espoliação” de David Harvey, aqui estamos: a corrupção da qual falamos é a renovação permanente, neocolonial, da acumulação originária. Tomar a corrupção por tema central – essa que saqueou a Petrobrás e engordou no mesmo ritmo do crescimento econômico e do boom das commodities – não significa cair numa crítica idealista ou numa despudorada nostalgia pela Ideia de Esquerda ou de Socialismo, mas analisar o modo de funcionamento do biopoder no Brasil. Um modo mafioso que se capilariza nos territórios, na forma da guerra de extermínio dos pobres, índios e negros. Corrupção e racismo não são temas separados e muito menos opostos, como se fossem problemas de lados antagônicos do espectro ideológico.
Negri rompeu as relações com a UniNômade Brasil num período preciso e quanto a isso não pode ficar nenhuma ambiguidade. Isso aconteceu entre setembro e outubro de 2014, quando soube que uma parte de seus membros tinha anunciado o apoio no primeiro turno da eleição brasileira à Marina Silva. Votar Lula pode e sempre pôde; votar Marina não pode. O militante italiano se permite no Brasil o que ele nunca assumiu para si em sua própria situação europeia.
Em 2005, na campanha francesa pelo referendo sobre a Constituição Europeia, Negri não aderiu à chantagem que cobrava o voto “não”, em razão do alegado conteúdo neoliberal do marco jurídico daquela Carta. Na ocasião, Negri chamou o voto pelo “sim”, tendo sido a seguir repreendido por todo o esquerdismo neossoberanista do velho continente. Mas, no Brasil, segundo ele próprio, é bem diferente, aqui temos de aceitar a chantagem e ao mesmo tempo desviar o rosto de qualquer saída institucional moderada. Essa saída – para quem não apostasse tudo nas lutas ao modo proudhonista, ou então num absenteísmo por sinal conjunturalmente legítimo – chegou a se apresentar, por um curto momento e obra da contingência, como uma alternativa real em 2014 e ela tinha um nome. Chamava-se e continua chamando-se Marina Silva. Foi por alguns membros da Uninômade Brasil – uma fração que não era sequer majoritária – terem chamado o voto em Marina no primeiro turno que Negri decidiu cortar os contatos.
O voto pela Constituição Europeia não era pelo neoliberalismo, Negri nos dizia, mas pela Europa como campo de luta. Pois bem. O apoio conjuntural a Marina não era por um “programa definido”, mas pela renovação de um campo institucional moderado que evitasse o atolamento pantanoso que foi a reeleição de Dilma e Temer. Assim, aqui no Brasil, Negri defendeu o pior, preferindo princípios abstratos à dinâmica material. Ao mesmo tempo em que discursivamente afirma a necessidade de uma saída moderada pela “social-democracia” (sic), se vincula à operação de assemblage movida pela nomenklatura do PT e sua intelligentsia, que consiste em fazer de sua própria queda a queda de toda e qualquer hipótese alternativa; da morte de seu mundo, a morte de todo mundo.
O golpe-que-não-houve se prestou exatamente a isso. O tal golpe nada mais é que o nome da matriz irresponsável de narrativas com o que se impossibilita ex ante qualquer análise material, diagnóstico consistente ou posicionamento teórico-político eficaz. Essa falsa saída reformadora e narratocêntrica, – em que mesmo as melhores cabeças de uma geração parecem ter se anquilosado, – começou, no Brasil, com a restauração de Junho, depois com a campanha de “desconstrução” de Marina e, finalmente, com o Fora Temer petista.
O imobilismo da esquerda em geral diante da investida da Lava Jato contra as cúpulas do PMDB e o próprio Temer, sem esquecer a solidariedade dos senadores do PT com Aécio Neves quando destituído pelo STF, é a demonstração do que é o real conteúdo da tragédia brasileira. Negri aderiu à campanha que o marketing petista conduziu contra Marina, a alternativa viável e responsável naquele outubro de 2014, para aqueles que não quisessem cerrar fileiras com o grosso absenteísmo na população. Nós não aderimos e não vamos aderir. Também tivemos divergências quando, no meio do movimento contra a Copa, ele concedia entrevistas a toda a mídia que agora considera golpista. Sem contar que mantivemos uma avaliação diametralmente contrária à que ele fez das mídias bancadas pelos esquemas petistas, ou seja, um conjunto de blogues produtores de fake news.
Consideramos positiva a oportunidade que o Negri tem de explicitar as suas posições políticas. Não nutrimos a mesma esperança a respeito da abertura que ele identifica no campo de esquerda depois do fim do governismo petista e muito menos a respeito dos pilares de uma nova doxa da esquerda mundial, que mais parece um pastiche de instintos antineoliberais dos anos 90 e anti-sessentaoitistas dos anos 70… Se, nos termos de Foucault, é um fato histórico-político que a razão neoliberal do princípio da sociedade-empresa substituiu a razão de estado do princípio da soberania, a crítica dessa virada tem se reduzido a uma denúncia impotente das lógicas neoliberais de dominação, como se a crítica fosse um dever moral, com o fito de alertar uma sociedade supostamente anestesiada (pelas pulsões do consumo, pela aceleração dos ritmos, pela ultramidiatização) e manipulada (pela grande mídia, pelo espetáculo, pelas indústrias culturais). Em vez de apontar nos fluxos e forças vivas que operam na “positividade” do neoliberalismo as instâncias de potência e fuga, como ambicionava Foucault ao levar a sério o tanto de pensamento que está implicado nessa governamentalidade, a crítica esquerdista se torna mera lamúria a justificar a utopia negativa disponível no mercado da representação: o velho busto da liderança, o velho partido, a velha bandeira.
Não admira, por isso, o consórcio de teóricos do comum e da crítica da acumulação primitiva, de David Harvey a P. Dardot e C. Laval, terem afinal convergido política e teoricamente com o cattivo maestro, em seu apego mal disfarçado ao verdadeiro socialismo e seus representantes idealistas na esquerda. Para não falar da reunião inusitada de um campo alargado, sui generis e anti-imperialista que reúne, de um lado, os Epistemólogos do Sul (desde Coimbra) com seu fetiche veteromarxista por uma “nova guerra fria”, e de outro lado, os intelectuais monocórdios do progressismo falido como Atílio Bóron, para quem Putin é o novo Lênin. Todos finalmente juntos na imorrível tônica de cerne estalinista da unidade das esquerdas contra o avanço das direitas (segundo as mil variações do mesmo tema).
Tudo isso nos conduz à necessidade de uma reflexão sobre, por um lado, as ambiguidades da ruptura pregressa de Negri com a esquerda e, por outro, os revisionismos e as dissociações que mais recentemente ele está fazendo com relação a isso. Algo que nos propomos fazer, por exemplo, por meio de uma releitura do que ele escreveu sobre as dimensões absolutas de uma democracia constituinte que, na realidade, fica parecendo – pelas suas próprias declarações – nos levar de volta ao totalitarismo das experiências do socialismo real, uma experiência que não foi suficientemente metabolizada por Negri e, mais amplamente, pelo pós-operaísmo como um todo.
Merleau-Ponty tem páginas memoráveis sobre a inviabilidade da desestalinização da esquerda no poder, onde ele explica que o princípio máximo do estalinismo é que ele se instala num patamar moral respaldado pelas estruturas históricas de onde ele julga tudo e todos mas não pode ser julgado por ninguém. Mas isso não é o estalinismo, é a esquerda no poder: ao passo que Lula pode tudo, Marina não pode nada mesmo e nós, menos ainda. Nos últimos tempos, tivemos algumas evidências que para Negri a esquerda voltou a merecer aquele consenso servil que, nos últimos cem anos, levou um sem número de intelectuais a apoiar o socialismo real, antes, durante ou depois de Stálin.
Que isso não seja coerente com o que ele tenha escrito sobre o socialismo real e a esquerda europeia – em particular, a italiana –, ou com o que ele fez em sua militância, isso nos anos 1970, não nos interessa realmente. Ainda que nos inquiete o comichão que, possivelmente, haja uma coerência superior sim e que isso demande uma revisão mais profunda de nosso modo de ler a sua vida e obra. A despeito disso, não estamos cobrando coerência nem denunciando suas opções e dissociazioni. Temos para nós que a diferença de posicionamentos é algo produtivo, inclusive quando marcada com aspereza e franqueza, como assim recebemos a notícia da ruptura de facto conosco. E la nave va. Mas vale destacar: parece-nos que, para Negri, a esquerda é uma entidade abstrata ante a qual ele faz questão de deixar registrada a sua fidelidade derradeira. O Bye bye Mister Socialism então era só um arrivederci.
Não cabe aqui uma reflexão mais profunda sobre as ambiguidades da (não) ruptura de Negri com a tradição socialista e, por tabela, com o estalinismo que a atravessa – algo que, por pensarmos urgente, será feito com o vagar e o rigor que cabe à complexidade da matéria. O que interessa aqui é simplesmente afirmar que nós não mantemos nenhuma fé em dogmas nem em nenhuma igreja e não seguimos nenhum rabinato, seja ele a Ideia da Esquerda e seus representantes fundamentalistas ou reformadores, seja o corporativismo universitário reorganizado numa nova doxa apaziguada.
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A diferença brasiliana. Artigo de Giuseppe Cocco e Bruno Cava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU