21 Fevereiro 2017
"Trabalhar com mudanças profundas implica recorrer a outros caminhos, em particular, implica abandonar o objetivo de governar os outros a fim de colocar-se a tarefa de impulsionar a organização dos povos, que é o primeiro passo na direção do autogoverno", destaca Raúl Zibechi, escritor, jornalista e pensador-ativista uruguaio, em artigo publicado por La Jornada. A tradução é de Silvio Pedrosa, publicada por UniNômade, 19-02-2017.
Eis o artigo.
“Terrivelmente decepcionante” é, como qualifica o intelectual Antonio Negri, a atuação da esquerda no Brasil, após uma visita na qual se encontrou com dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT), ex-ocupantes de altos cargos nos governos de Lula e Dilma Rousseff e membros de movimentos sociais. Negri nunca escondeu suas simpatias pelos governos progressistas latino-americanos com os quais manteve boas relações. Por isso é significativo que um dos mais destacados pensadores atuais tome distância da esquerda da região.
Suas opiniões foram expressas em um longo artigo publicado no começo de fevereiro cujo título é Impressões de uma visita ao Brasil. Sua análise se organiza em torno de sete perguntas, das quais abordaremos apenas as mais relevantes.
A primeira consiste em saber por que o PT reprimiu as manifestações de junho de 2013. Negri se surpreende que todos aqueles consultados tenham dito que “esses movimentos ameaçavam desde o início a manutenção de nossa governabilidade”. Lembremos que se tratavam de lutas contra o aumento do preço do transporte e contra a repressão policial. Negri desconsidera as respostas recebidas por ele que afirmaram que se tratava de um movimento insuflado pela CIA, pois entende que isto não tem sentido.
Negri assinala que, já nesses momentos, “o PT tinha uma relação ruim com as populações metropolitanas”, as quais, desde 2013, protestavam contra a inclinação neoliberal do governo Dilma.
A segunda pergunta que formulou é por que continuam morrendo tantos jovens negros. Não obteve respostas, o que lhe permite destacar que a falta de vontade do PT para compreender e assimilar essa problemática gerou um “vazio de relações” com a população das favelas e que, em consequência disso, foi “facilitada a entrada da direita religiosa (e não religiosa) no interior do proletariado negro”. Negri acredita que esse é um dos nós da crise do PT, já que este perdeu contato com um setor-chave do proletariado e que essa perda “revela a crise mais pesada para a esquerda, ali onde ela era hegemônica”.
Quando perguntou por que o PT não foi capaz de responder à ofensiva da direita desde 2013, concluiu que relações que se mantinha com os sindicatos e os camponeses sem terra “se haviam tornado irrelevantes, ou talvez subsistisse apenas para fins de propaganda”. Negri sustenta que isso permitiu que a direita conquistasse a hegemonia nas ruas pela primeira vez em muitos anos.
Pouco depois faz algumas afirmações notáveis. O PT não encarou uma reforma constitucional que garantisse a governabilidade sem necessidade de corrupção. “A ideia de governar por meio da corrupção, ou seja, retomando o hábito da direita, não parece haver perturbado o projeto do PT desde o princípio”, escreve o coautor de Império. No mesmo sentido vai sua denúncia de que os governos do PT estabeleceram “um acordo tácito de fair play com os conglomerados midiáticos; nenhum ataque a eles da parte do governo e recíproca lealdade por parte dos meios de comunicação”, pelo menos, durante a década em que funcionou a governabilidade, ou seja, entre 2003 e 2013.
Em suas conclusões, Negri sustenta que os quadros do PT “interpretam tudo nos termos do equilíbrio governamental e parlamentar”, o que explicaria porque não foram capazes de se colocar à frente das mobilizações de junho de 2013 e porque optaram por reprimi-las. Quando os criticou por não haver apostado nos “contrapoderes dos pobres” para enfrentar a direita, obteve uma resposta que considera “patética” para alguém que se considera de esquerda: “defendemos o estado de direito”.
Negri crê que o PT não voltará a ser uma força hegemônica e que a esquerda brasileira não poderá se reconstruir em poucos anos. A questão passa agora pelas lutas dos secundaristas nas escolas e pelas lutas levadas a cabo pelas mulheres, escreve Negri. Mas o ponto central, uma vez mais, é a questão negra, ou seja, o setor mais pobre e rebelde da classe operária. “O PT se converteu em uma força branca, pálida em relação a questão racial e débil para confrontar as políticas neoliberais”.
São essas, de forma muito resumida, algumas conclusões de Negri depois da última passagem ao Brasil. Creio que são acertadas, sobretudo a ênfase em explicar a crise através da repressão aos manifestantes, o afastamento dos movimentos e a incapacidade para compreender a questão racial. Que ele não coloque a esquerda como vítima dos meios de comunicação e do Império é um passo adiante em relação com as análises medíocres que ouviu.
Haveria que explicar, além disso tudo, porque os governos do PT optaram em dar prioridade à governabilidade e não às lutas sociais e de classe. Esse ponto é importante, pois não é a primeira vez em que isso acontece. Estamos diante de um tipo de atitude que vai muito além das opções tomadas pelos dirigentes do PT.
A primeira questão se relaciona com os caminhos escolhidos. Optar pela ocupação do estado leva diretamente a defender o “estado de direito”, à “razão de estado”, o que implica posicionar-se contra os movimentos e os povos. A velha esquerda, todavia, crê que o estado é uma ferramenta neutra, algo que hoje soa vazio, depois de um século inteiro de revoluções fracassadas.
A segunda questão é mais complexa. O estado é, e continua sendo, a incubadora da classe dominante. Desde que chegou ao governo, o PT estreitou alianças com os grandes empresários e com o setor financeiro, foi um grande defensor do agronegócio.
Ademais, durante os seus governos, os bancos obtiveram os maiores lucros de sua história. A corrupção que agora vem sendo exposta, de uma maneira interessada por parte das direitas, não constitui uma anomalia, mas é intrínseca ao sistema. É impossível governar uma grande nação capitalista sem corromper-se.
Portanto, trabalhar com mudanças profundas implica recorrer a outros caminhos, em particular, implica abandonar o objetivo de governar os outros a fim de colocar-se a tarefa de impulsionar a organização dos povos, que é o primeiro passo na direção do autogoverno. O resto é seguir atrás de messias e salvadores.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A velha esquerda não recuperará hegemonia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU