Os Povos Indígenas e a Igreja de Roraima: uma caminhada de resistência e libertação. Artigo de Gabriel Vilardi

O então Bispo da Diocese de Roraima, Dom Mario Antônio, participa da abertura da Assembleia dos povos indígenas | Foto: Jacir J.Filho (colaborador da Ascom/CIR)

12 Julho 2022

 

"Os anos se passaram, alguns missionários e missionárias se foram, outros tantos chegaram. E nesse longo caminho trilhado como companheiros e companheiras dos Povos Indígenas, a Diocese de Roraima tem renovado a sua amizade e comprometimento com o Evangelho da Vida e as causas do Reino. Mesmo com as diminuições das vocações e as fragilidades humanas e institucionais, a Igreja local tem mantido a sua vitalidade e procurado colocar-se ao lado dos crucificados da história."

 

O artigo é de Gabriel Vilardi, Jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região da Serra da Lua.

 

Eis o artigo. 

 

No altar da terra manchada de sangue se oferece o pão do martírio, pois numa região em que a Eucaristia é tão escassa, a Igreja se faz eucarística no corpo doado, fazendo da vida pão partido e sangue derramado por amor aos irmãos e ao Reino”, reconhece com poesia e realidade o Documento de Santarém (2022). Pode-se afirmar que essa tem sido parte significativa da história da Igreja de Roraima, com os Povos Indígenas, desde o final da década de 1960. Uma história permeada por encarnação, compromisso e profecia.

 

Com a submersão na longa noite imposta pela ditadura cívico-militar (1964-1985), a velha mentalidade colonialista, nunca suplantada, irrompeu com força por meio da famigerada “promoção do desenvolvimento nacional”. O início da construção da Transamazônica, em 1970, converteu-se em um prenúncio diabólico dos projetos faraônicos do regime, que pretendia rasgar o território por quase 5.000 Km. Cerca de 29 Povos Indígenas foram afetados, com uma população de pelo menos 20.000 pessoas, sendo que 12 eram Povos em Isolamento Voluntário.

 

Os planos dos generais de plantão sustentados pela elite econômica do país eram preencher o suposto “vazio da região amazônica”, como se inexistisse a múltipla diversidade de povos habitantes desse chão. Para ilustrar a magnitude da catástrofe dessa visão gananciosa, vale citar que os Povos Parakanã e Araras foram reduzidos a apenas um terço de seus membros, em razão dos impactos sofridos pela construção da rodovia.

 

Eclesialmente foram tempos de profundas mudanças nas concepções teológicas de ser Igreja com o advento do Concílio Vaticano II (1962-1965) e os seus desdobramentos na América Latina, por meio da contextualização promovida pelas Conferências Gerais do episcopado do continente em Medellín (1968) e em Puebla (1979). Nessa última, os rostos sofridos da região ganham concretude, entre eles os Povos Indígenas.

 

A história de Roraima, infelizmente, não se constitui numa exceção em relação aos demais estados da Amazônia brasileira. Ao contrário, apresenta-se fortemente marcada pelas tensões causadas pelos conflitos agrários e pelos necroempreendimentos. Entre eles talvez o mais mortífero tenha sido a construção da BR-174, que liga Manaus a Caracaraí, nos anos 1968-1977. Nessa ocasião houve o extermínio de pelo menos 3.000 indígenas Waimiri-Atroari, com a consequente redução de 75% de suas terras. Como se não bastasse, em 1979, o governo militar implantou a hidrelétrica de Balbina, inundando um terço do já amplamente impactado território indígena.

 

Outro povo-mártir que sofreu e continua sofrendo os impiedosos e cruéis efeitos do “desenvolvimento nacional” é o Povo Yanomami. Na década de 1970, a construção da Perimetral Norte trouxe consequências devastadoras. Além de ter afetado as comunidades dos vales dos rios Ajanari e Catrimani, com perdas que variaram de 22% a 50% de sua população, facilitaram o acesso dos garimpeiros à região.

 

Entre o final dos anos 1980 e o início dos 90 calculava-se a existência de 40.000 trabalhadores-vítimas do garimpo ilegal. Situação que se voltou a agravar nos últimos anos com o discurso favorável do atual governo e as suas múltiplas iniciativas para legalizar a atividade, como o projeto de lei nº 191/2020 que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados. Nos anos recentes, o último bispo de Roraima, Dom Mário Antônio da Silva não destoou dos seus antecessores e ergueu com veemência sua voz para denunciar mais uma vez as gravíssimas violações infligidas aos Yanomami.

 

Nacionalmente, a Igreja do Brasil passava por uma fecunda primavera com a inspiradora liderança de bispos como Dom Paulo Evaristo Arns (São Paulo), Dom Hélder Câmara (Olinda e Recife), Dom Aloísio Lorscheider (Fortaleza), entre outros. Pastores que capitaneavam uma Igreja comprometida com a libertação dos oprimidos desta América Latina que, parafraseando Eduardo Galeano, possuía suas veias abertas jorrando sangue. E muito desse sangue era indígena!

 

Bons bispos também marcaram a história da Igreja de Roraima, dentre eles, vale pontuar o inesquecível Dom Aldo Mongiano. Esse foi mais um dos tantos filhos e filhas do Beato Padre José Allamano que passaram por estas terras com coragem e profecia, dedicando-se com comprometida entrega aos Povos Indígenas. Todavia, essa caminhada começou muito antes. Há sinais de que seu antecessor, Dom Servílio Conti (1968-1975), também membro da mesma congregação, já era favorável à causa indígena.

 

Dois exemplos que corroboram essa perspectiva são os ofícios à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em que o bispo cobrava a demarcação da terra Yanomami, encaminhados em 1º de março de 1970 e 18 de fevereiro de 1972. A homologação desse território só ocorreria em 1992, após longos anos de disputa e intensa pressão internacional.

 

Já no começo dos anos 1970, os missionários e as missionárias da Consolata organizavam encontros regionais com as lideranças indígenas para formações em temas eclesiais, como liturgia e catequese. Essas reuniões foram embrião do movimento indígena, porque possibilitaram que pessoas de comunidades diversas se encontrassem e partilhassem as dificuldades e problemas comuns. Como marco, considera-se a primeira assembleia indígena de Roraima aquela que ocorreu na região Surumu, em janeiro de 1971, com o amplo apoio da Igreja.

 

Em 14 de maio de 1975, Dom Aldo Mongiano torna-se o novo bispo de Roraima e a partir do contato com a realidade e com a ajuda dos missionários e missionárias indigenistas compreende a gravidade da situação, até que em 1978 a assembleia diocesana de pastoral, com grande participação das lideranças indígenas, faz a opção preferencial pelos Povos Indígenas e elenca a Pastoral Indigenista como prioritária. Esse caminho consistiu em uma tomada de consciência processual, conforme relata o bispo italiano:

 

“Eu cheguei em 1975; em 77, eu descobri o problema indígena. Comecei a perceber que o índio quase não aparecia na sociedade, não tinha peso nenhum, passava no meio ninguém notava. Quando se ia a maloca, se via os índios todos calados, tristes. O espaço que eles tinham era ocupado pelos brancos. As malocas eram cheias de esterco do gado do fazendeiro. O boi não pisava só nas malocas, pisava neles, pisava no espírito deles.”

 

Com uma consciência cada vez maior das ameaças e injustiças cometidas contra os Povos Indígenas, acontece em janeiro de 1977, na Missão Surumu, uma grande Assembleia Estadual dos Tuxauas com apoio da Prelazia e do Conselho Indigenista de Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e fundado em 1972. Nela participaram 140 indígenas dos Povos Macuxi, Wapichana e Taurepang, sendo 50 deles tuxauas, ou seja, os responsáveis últimos por cada comunidade.

 

Após um primeiro dia de ricas partilhas e análise da conjuntura, no segundo os participantes foram surpreendidos com a presença da polícia e da FUNAI, que afirmaram não ter aquela reunião a autorização necessária das autoridades. Ante a forte defesa dos direitos indígenas e as consequentes críticas à ditadura militar promovida pelo CIMI, o general-presidente da FUNAI quis expulsar o presidente da entidade, Dom Tomás Balduíno, que acompanhava os trabalhos. Com a firme intervenção de Dom Aldo dizendo que se tirassem seu convidado teriam que expulsá-lo também, a assembleia foi dissolvida e os indígenas voltaram para casa.

 

Contudo, as centelhas da resistência agora cada vez mais organizada estavam acesas, em um caminho sem volta. As lideranças indígenas resolveram articular uma nova assembleia poucos meses depois, em 26 de abril do mesmo ano, na comunidade Maturuca, na Raposa Serra do Sol, em que tomaram a histórica decisão “vai ou racha”. Cientes dos sérios prejuízos trazidos pelo alto índice de alcoolismo em seu meio, disseram “não à bebida alcoólica” e “sim à comunidade”.

 

As tensões entre uma Igreja cada vez mais comprometida com a luta dos Povos Originários e uma elite anti-indígena foram crescendo e contaram com episódios de grande truculência e extrema violência. Um deles aconteceu em 06 de fevereiro de 1979 quando o coordenador local da FUNAI informou o bispo que havia uma ordem dos seus superiores de Brasília proibindo os missionários da Pastoral Indigenista e do CIMI de entrar nos territórios indígenas e dos indígenas participarem das reuniões promovidas pela Igreja.

 

Mais uma vez Dom Aldo agiu com coragem e publicou uma carta, lida em todas as paróquias da região, denunciando o ocorrido. Diante da repercussão, a presidência do órgão esclareceu que não havia tomado nenhuma decisão nesse sentido, o que leva à conclusão que se tratava de uma jogada local. Essa postura do escritório regional demonstra a clara falta de isenção da autoridade indigenista e o seu alinhamento histórico aos interesses contrários aos Povos Indígenas.

 

Na sangrenta luta pela demarcação dos territórios indígenas muitas lideranças perderam suas vidas para se manterem fiéis ao seu povo. Casas e roças incendiadas, mulheres estupradas, homens espancados, humilhações constantes e terras invadidas pelos ávidos latifundiários. A constatação era de que só quem possuía um rebanho marcado a ferro podia ser o proprietário do território.

 

Para fazer frente à perversa lógica reinante criou-se, em 1980, o “Projeto do Gado: Uma vaca para o índio” com o apoio dos missionários e missionárias da Consolata. Seu idealizador foi o Padre Jorge Dall Bem, tantas vezes perseguido, caluniado e ameaçado pelas décadas de trabalho na disputada Raposa Serra do Sol. Esse projeto além de contribuir com o processo de homologação das terras indígenas fortaleceu a autossustentabilidade das comunidades e garantiu a autonomia do movimento indígena.

 

Com o fortalecimento do movimento indígena, em 1987, a IX Assembleia dos Tuxauas, realizada no Surumu, funde os então sete conselhos regionais e funda o Conselho Indígena Territorial de Roraima (CINTERR), renomeado como Conselho Indígena de Roraima (CIR) em 1990. Inegável que a organização dos Povos Indígenas em Roraima é um modelo para todo o movimento indígena ao redor do país, tendo conseguido o feito de eleger, em 2018, a então chefe do seu departamento jurídico como a primeira parlamentar indígena da história, a Deputada Joênia Wapichana (REDE).

 

Outro momento marcante aconteceu no final da tarde de 12 de outubro de 1992, em Boa Vista, como reação a onda de ataques à Igreja de Roraima e ao seu pastor pelo seu compromisso em favor dos Povos Indígenas, especificamente à fala de um líder dos garimpeiros que, durante um programa de rádio, ofereceu um quilo de ouro para quem matasse o velho bispo.

 

Na ocasião, Dom Luciano Mendes de Almeida, então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), presidiu um ato em desagravo a Dom Aldo Mongiano acompanhado por proféticos pastores, entre eles, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Moacir Grecchi, Dom Tomás Balduíno, Dom Luís Soares Vieira e outros bispos de 12 dioceses e prelazias de vários estados. Mais do que exigir a salvaguarda da vida do missionário italiano, defendia-se o respeito pela dignidade dos Povos Indígenas, vítimas de um arraigado racismo estrutural.

 

Não pode ser esquecido tampouco os ataques perpetrados pelos arrozeiros contra os missionários e as missionárias da Consolata no longo e tumultuado processo de luta pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Diferentemente daquilo que aconteceu em outras regiões, como a Serra da Lua, a demarcação deu-se de forma contínua e não em ilhas, o que garante uma sobrevivência mais digna para as futuras gerações. Mas a reação a essa demanda foi violenta. Vale citar dois momentos emblemáticos dessa batalha, dentre os inúmeros episódios de agressão e ameaças.

 

Em 2004 a missão Consolata foi invadida e os Padres Ronildo Pinto França e César Avallaneda e o Irmão Juan Carlos Martinez foram mantidos em cárcere privado por três dias. Já na madrugada de 17 de setembro de 2005, a antiga Missão do Surumu foi incendiada, incluindo a escola, as casas dos missionários e das missionárias, a igreja e o hospital. Como se não fosse suficiente, algumas pessoas ainda foram agredidas e ameaçadas. Nessa época, o então bispo de Roraima, Dom Roque Paloschi (2005-2015), atual arcebispo de Porto Velho e presidente do CIMI, prestou todo o apoio aos afetados, somando-se às pressões pela demarcação do território.

 

Diante desse breve panorama da longa e fecunda aliança da Igreja de Roraima com os Povos Indígenas, mostra-se evidente que essa porção do Povo de Deus antecipou algumas intuições trazidas pelo Sínodo para Amazônia. O Papa Francisco nos nº 26 e 27 da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia ensina:

 

“A Amazônia deveria ser também um local de diálogo social, especialmente entre os diferentes povos nativos, para encontrar formas de comunhão e luta conjunta. Os demais estão chamados a participar como “convidados”, procurando, com o máximo respeito, encontrar vias de encontro que enriqueçam a Amazônia. Mas, se queremos dialogar, devemos começar pelos últimos. [...] O diálogo não se deve limitar a privilegiar a opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e excluídos, mas também há que os respeitar como protagonistas”.

 

Uma história que é feita de avanços e retrocessos, conquistas e perdas de direitos, luzes e sombras. Em um tempo que remete aos períodos difíceis da ditadura, não faltam fatos concretos que corroboram a sensação de flagrante ameaça ao direitos indígenas, tais como: a nova onda de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami com os altíssimos índices de mercúrio despejados nos rios; o desmantelamento e cooptação da FUNAI; o assédio dos governos locais para dividir as comunidades indígenas e introduzir o envenenado agronegócio em suas terras; os incêndios criminosos na comunidade do Pium, na região Tabaio; e a truculência das forças policiais simbolizada na violência contra a comunidade Tabatinga, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

 

Os anos se passaram, alguns missionários e missionárias se foram, outros tantos chegaram. E nesse longo caminho trilhado como companheiros e companheiras dos Povos Indígenas, a Diocese de Roraima tem renovado a sua amizade e comprometimento com o Evangelho da Vida e as causas do Reino. Mesmo com as diminuições das vocações e as fragilidades humanas e institucionais, a Igreja local tem mantido a sua vitalidade e procurado colocar-se ao lado dos crucificados da história.

 

As palavras de Dom Aldo quando do ataque ao Centro de Formação Surumu nunca foram tão apropriadas, “é dessas cinzas que Deus vai ressuscitar novas sementes para esperança das comunidades indígenas”. Enquanto as forças das trevas arremetem cruelmente contra os Povos Indígenas e seus aliados, é preciso confiar que novas lideranças são gestadas no seio do movimento, despertando jovens consciências de que sua dignidade e bem-viver não estão à venda, sejam quais forem as ilusórias propostas do capitalismo selvagem de turno. Não passarão! Pois não se vai só, mas acompanhado de um Povo que quer ter voz, ter vez, lugar!

 

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