A farra da ‘boa-fé’ no comércio do ouro

O deputado federal que fez a emenda da presunção de legalidade no comércio com Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários – DTVMs culpa Bolsonaro pelo aumento nas permissões de lavras garimpeiras. Governo, STF e partidos políticos querem mudanças na legislação que abriu brechas para “esquentar” notas fiscais de ouro explorado ilegalmente na terra dos Yanomami, em Roraima. O Banco Central apoia a medida. (Na imagem, barras de ouro. Foto: Pixabay)

11 Março 2023

O deputado federal Odair Cunha (PT-MG), autor da emenda jabuti à Lei nº 12.844, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2013 e que abriu brechas para fraudes na compra e venda de ouro ilegal de terras indígenas no país a partir da presunção de boa-fé do vendedor (garimpeiro ou minerador), defende a legislação e responsabiliza, em entrevista à agência Amazônia Real, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo desmonte da fiscalização e aumento das Permissões de Lavra Garimpeira (PLG’s) pela Agência Nacional de Mineração (ANM).

A reportagem é de Leanderson Lima, publicada por Amazônia Real, 06-03-2023.

“Na época, antes de 2013, não havia nenhuma regulamentação do processo de compra do ouro que viabilizasse a fiscalização. Você poderia comprar ouro de garimpo sem informar aos órgãos de controle a origem. Com a documentação gerada pela lei há uma maneira de rastrear a origem do ouro. Mas para isso é preciso algo fundamental: fiscalização. E é importante frisar: a presunção de boa-fé não impede ou torna desnecessária a fiscalização pelos órgãos competentes”, afirma Cunha, que completa a explicação:

“Note-se ainda que não há presunção que subsista a qualquer tipo de fraude. Lamentavelmente, como vimos nos últimos anos no governo Bolsonaro, houve um desmonte geral dos órgãos de fiscalização e uma ampliação desenfreada e irresponsável do número de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG)”.

O parlamentar disse que enviou um ofício à Agência Nacional de Mineração requerendo a suspensão imediata da 6ª Rodada do Edital de Disponibilidade de mais 420 áreas para PLG’s no país. “O ofício pede ainda uma auditoria completa nas PLG’s já emitidas e do ouro vendido a partir de cada uma delas. É um absurdo colocar novas PLG’s disponíveis quando, claramente, não há fiscalização naquelas já existentes”, afirma o petista.

O ouro ilegal, extraído de garimpos clandestinos em terras indígenas ou em Unidades de Conservação (UC's), principalmente as localizadas na Amazônia, é “legalizado” no momento em que as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs), empresas do sistema financeiro autorizadas a adquirirem o minério pelo Banco Central (BC), fazem a compra. O vendedor, utilizando-se apenas do recurso da garantia de boa-fé, preenche uma nota fiscal em papel e autodeclara a origem do metal. É neste momento que os fraudadores declaram que a origem do ouro é de um garimpo legalizado em outro estado. Por exemplo, ele explora e extrai o minério da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, e declara que a origem é de um garimpo no Pará. Dessa forma, as DTVMs, que compram o ouro ilegal, são isentas de fiscalizar a origem.

Após quase dois meses da decretação da emergência de saúde devido à crise humanitária na TI Yanomami, em janeiro deste ano, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e o anúncio da retirada de 20 mil garimpeiros do território, o governo estuda revogar a presunção de boa-fé da Lei nº 12.844. O próprio governador de Roraima, Antônio Denarium (Progressistas), já declarou publicamente que “todo ouro explorado no estado sai ilegal”. Veja no vídeo da série Ouro do Sangue Yanomami.

O líder indígena Davi Kopenawa responsabilizou Bolsonaro pela devastação ambiental no território e por mortes de crianças, mulheres, jovens e homens da etnia Yanomami. Relatório da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) diz que, entre 2018 a 2022, 1.285 Yanomami morreram de doenças como malária, desnutrição grave, pneumonia, Covid-19, entre outras. O maior número de mortes ocorreu em 2020, quando foram registrados 332 óbitos. Em 2022 foram 209 mortes notificadas pelo órgão. O relatório informa ainda que nos últimos quatro anos o número de casos de malária passou de 9.928 em 2018 para 20.393. Um aumento de mais de 105%.

Crianças yanomami com as mães nos arredores da Casai em Boa Vista.
(Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil)

“Quem matou o meu parente, meus irmãos, minha família, foi o [ex-]presidente Jair Bolsonaro. Nos quatro anos que ele ficou junto com os garimpeiros levou a doença, coronavírus, malária, gripe, disenteria, verminose e outras doenças. Foi ele que matou. Ele matou e foi embora. Se não tivesse matado, estava aqui junto com nós”, denunciou Davi Kopenawa, que denunciou crime de genocídio contra o ex-presidente na Organização das Nações Unidas (ONU).

O esquenta da boa-fé

Investigação da Polícia Federal apontou, este mês, que de 2020 até o fim de 2022 as emissões de notas fiscais eletrônicas fraudulentas teriam sido superiores a R$ 4 bilhões, correspondendo a cerca de 13 toneladas de ouro obtidas de forma ilícita no estado. A corrida do ouro explodiu durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, quando ele anunciou a legalização de garimpos em terras indígenas. O governador Denarium também incentivou a atividade por meio do Projeto de Lei (PL) 233/2022, posteriormente derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O deputado Odair Cunha afirma que o uso da presunção de boa-fé para “esquentar” o ouro extraído de forma ilegal de territórios indígenas é um ato “criminoso”. “Toda pessoa que incorre em crime deve responder segundo o rigor da lei. O procedimento de compra previsto na lei se constitui num ponto inicial para garantir a rastreabilidade, mas é necessário garantir outros procedimentos que amplificam e melhorem a fiscalização”, explica.

O parlamentar usou o “jabuti” para regulamentar o comércio do ouro em uma Medida Provisória sobre seguro agrícola. A proposta passou na Câmara dos Deputados, com pouca repercussão e sem a comoção de organizações ambientais e indígenas, e foi sancionada por Dilma Rousseff.

Para reparar o dano socioambiental nas terras indígenas da Amazônia, Cunha disse que propôs ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a criação de um grupo de trabalho para discussão do processo de comercialização do ouro no Brasil. Em janeiro, o Partido Verde (PV) ingressou com uma ação no STF questionando a presunção de boa fé na compra e venda do ouro. O PSB e a Rede também se posicionaram contra a legislação.

Na entrevista exclusiva à Amazônia Real, Cunha defendeu a suspensão das outorgas de Permissões de Lavras Garimpeiras (PLGs) “até que se tenha condições efetivas de se fazer uma fiscalização rigorosa, digitalizada e que leve em consideração a capacidade produtiva de cada PLG”.

“É preciso criar também um Cadastro Nacional de Garimpeiros, implementar a Nota Fiscal Eletrônica e limitar a quantidade de PLG a uma por CPF. Defendo ainda o acompanhamento online durante os processos de compra, levando em conta a capacidade produtiva de cada PLG e a implementação de auditoria, por parte da AMN, em todas as declarações de origem feitas por garimpeiros nos últimos 10 anos. Além disso, é fundamental a fiscalização permanente pelos órgãos de controle”, disse o deputado.

A reportagem procurou a ex-presidenta Dilma Rousseff para se posicionar sobre a legislação que abriu brechas para fraudes no comércio do ouro no país, mas sua assessoria de imprensa não retornou a solicitação de entrevistas.

O que diz o Banco Central

No Brasil, segundo o Banco Central (BC), de acordo com as normas vigentes, a realização de operações com ouro podem ser feitas por instituições como os bancos múltiplos [tradicionais], bancos comerciais [que atuam com financiamento em indústrias, comércio e serviços], bancos de investimentos [que atuam com aplicações como CDB, Letras de Crédito, Letras de Câmbio], Sociedades Corretoras de Títulos e Valores Mobiliários e as chamadas sociedades Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM).

Em resposta à Amazônia Real, a assessoria de imprensa do BC informou que apoia iniciativas que possam aprimorar o marco legal para a fiscalização do comércio do ouro, tais como a revogação da presunção de legalidade na aquisição do ouro por instituição financeira e a exigência de nota fiscal eletrônica. “O BC apoia também a criação de mecanismos privados que aumentem a rastreabilidade da cadeia produtiva do ouro”, diz nota do banco.

De acordo com o BC, oito DTVMs atuam “efetivamente na aquisição de ouro bruto nos últimos dois anos”. São elas: Carol DTVM Ltda, Coluna S.A. DTVM, Dillon S.A. DTVM, F D Gold DTVM Ltda., Fênix DTVM Ltda., OM DTVM Ltda., Parmetal DTVM Ltda. e Patacão DTVM Ltda.

Dessas empresas, a Dillon S.A, a Carol DTVM Ltda, a F D Gold DTVM Ltda., e a Coluna S.A. DTVM são suspeitas de irregularidades na compra do ouro, segundo investigação da Polícia Federal.

A Repórter Brasil analisou o balanço financeiro da empresa BP Trading, que registrou um faturamento de R$ 1,4 bilhões em 2019. Entre as principais clientes da BP estão duas DTVMs acusadas pelo Ministério Público Federal (MPF) de comercializarem ouro ilegal extraído do Pará: a FD’Gold e a Carol DTVM. Cada uma recebeu da BP, respectivamente, R$ 18 milhões e R$ 860 mil.

Essas duas DTVMs, somadas à Ourominas, são as principais compradoras de ouro ilegal, respondendo pela aquisição de mais de 70% de todo o metal ilegal ou potencialmente ilegal, segundo recente levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em colaboração com MPF. De todo o metal adquirido por essas empresas em 2019 e 2020 no Pará, pelo menos 60% não têm origem comprovada, diz o estudo.

Devido a essas conclusões, o MPF entrou com ação civil pública, em agosto do ano passado pedindo a suspensão das atividades dessas DTVMs, bem como o pagamento de R$ 10,6 bilhões por danos socioambientais.

Além da FD’Gold e da Carol DTVM, uma terceira fornecedora da Trading BP é a Coluna DTVM, que esteve na mira da Polícia Federal por adquirir o metal de garimpos ilegais, conforme mostrou com exclusividade a Repórter Brasil em parceria com a Amazônia Real na série “Ouro do Sangue Yanomami”. A reportagem investigativa, publicada em junho de 2021, revelou que o ouro que sai da Terra Indígena Yanomami é comprado de forma ilegal por atravessadores e pelas DTVMs, podendo terminar em grandes joalherias brasileiras, como a HStern.

O esquema de compra de ouro, extraído de forma irregular do Território Indígena Yanomami (TIY), funciona com parte do metal sendo levado ilegalmente para países como Venezuela, Suriname e Guiana Francesa, onde são vendidos. A outra parte do ouro segue para Boa Vista, onde é comprado, de forma irregular, por joalherias, já que essas não possuem autorização do Banco Central para comprar e vender o minério.

“A fiscalização que compete ao Banco Central é tão somente a da regularidade da contabilização do ouro”, diz nota enviada pela instituição.

Dessa forma, a competência para fiscalização do ouro durante as primeiras transações nos Postos de Compra de Ouro (PCOs) é exclusiva da Agência Nacional de Mineração e da Receita Federal.

Os PCOs são dependência de instituição financeira e destinam-se exclusivamente à aquisição de ouro físico em regiões produtoras, para convertê-lo em ouro ativo financeiro e viabilizar sua negociação nessa qualidade. A Coluna DTVM, investigada pela Polícia Federal, diz em seu site que tem Postos de Compra e Ouro nos estados do Pará e Mato Grosso.

Em resposta à agência Amazônia Real, o Banco Central afirma que, “desde a edição da Resolução nº 4.072, de 26 de abril de 2012, que alterou e consolidou as normas sobre a instalação de dependências, as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo BC podem instalar os seguintes tipos de dependências: Agências, Postos de Atendimento (PA), Posto de Atendimento Eletrônico (PAE) e Unidade Administrativa Desmembrada (UAD). A instalação desses tipos de dependência passou a ser informada ao BC, não havendo mais a figura dos Postos de Compra de Ouro (PCOs), desde então. Essa mesma norma definiu que os Postos de Compra de Ouro (PCO) em funcionamento, na data de sua publicação, deveriam ser considerados como PAs, motivo pelo qual remanesce registros desses antigos PCOs nas bases de dados públicas disponíveis no site do Banco Central”.

Ao ser questionada pela reportagem sobre as investigações da DTVMs pela Polícia Federal e MPF, a BP Trading afirma que “todas as instituições financeiras (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários) são devidamente autorizadas e fiscalizadas pelo Banco Central e demais órgãos de controle, sendo, ainda, auditadas por auditores independentes. A BP Trading mantém rigorosos controles quanto à origem do mineral adquirido de seus fornecedores, conforme manuais e regramentos internos, sendo condição inafastável para a realização de suas operações que o minério esteja acompanhado da devida documentação pertinente exigida pela legislação em vigor”.

Em resposta anterior à reportagem, a Ourominas, que controla a OM DTVM, afirma que “não compactua com o garimpo ilegal e com a violação ao meio ambiente, sejam na Amazônia ou em qualquer local do Brasil OM nunca teve nenhuma representação/PCO no Estado de Roraima. Estamos solidários com a situação dos indígenas Yanomami”.

A Coluna DTVM diz que “desconhece as alegações de compra de ouro proveniente de reservas indígenas, não tendo recebido qualquer notificação da Polícia Federal, Ministério Público Federal ou de qualquer autoridade a este respeito”.

Mas afinal, quem fiscaliza as DTVMs?

Sobre isso, o Banco Central informou que, por força da Lei, a atuação do BC é “limitada à fiscalização das atividades e das operações das instituições por ele autorizadas a funcionar apenas quanto a regras legais ou infralegais aplicáveis à sua atuação no âmbito do sistema financeiro”. Legalmente, segundo o BC, não compete a bancos centrais, no Brasil ou em outros países, atuarem na fiscalização de atividades relacionadas ao garimpo e à extração de ouro.

Apesar de não ser de sua competência, a fiscalização, o BC diz que interage com “outros atores que atuam na cadeia de comercialização do ouro em fóruns sobre o assunto, a exemplo das ações no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), bem como sempre contribuiu e se colocou à disposição para integrar grupos de trabalho com o intuito de melhorar a ação do Estado sobre a matéria”, informou o banco, por meio de nota.

A reportagem de Amazônia Real procurou a Receita Federal e Agência Nacional de Mineração (ANM) para saber como os órgãos fiscalizam as DTVMs. A Receita não respondeu às perguntas enviadas à assessoria de imprensa.

A ANM disse estar comprometida com a fiscalização da mineração, observando o cumprimento das determinações técnicas e legais. “Todas as nossas ações institucionais são no sentido de assegurar o pleno funcionamento do setor mineral”.

Por meio da assessoria de imprensa, a ANM informou que foram implementadas medidas que visam aprimorar a fiscalização e a transparência do setor. “Entre elas, estão a criação de um painel de inteligência fiscalizatória, que permite a identificação de irregularidades e fraudes; o painel de fiscalização do ouro, que fornece informações sobre a produção e o comércio de ouro; e, o sistema de primeiro adquirente, que garante maior transparência na alocação de recursos oriundos da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (…) a implementação de medidas como essas são fundamentais para garantir a transparência e a eficiência das atividades do setor”, disse em nota.

Para impedir a entrada de garimpeiros na terra dos Yanomami, o governo Lula determinou o fechamento do espaço aéreo. Veja no mapa. 

Foto: Amazônia Real

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