“Quem negaria um copo com canudinho a um padre de 83 anos que vive com Parkinson? No final, foram, como sempre, os pobres que salvaram o dia. Em uma de suas últimas cartas da prisão, Swamy falou comovente sobre a ajuda que recebia de seus companheiros de prisão: pobres e analfabetos, eles não tinham dificuldade em entender o que significa ser humano. Eles seguravam a colher do padre Stan, levavam o copo até sua boca, apoiavam-no para ir ao banheiro, e o banhavam porque ele não conseguia sozinho. 'Nós ainda cantamos em coro', ele escreveu em sua carta. 'Um pássaro preso ainda pode cantar'”, escreve Jo McGowan, escritora e fundadora da Fundação Latika Roy, uma organização voluntária para pessoas com necessidades especiais, em artigo publicado por Commonweal, 20-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O padre jesuíta Stan Swamy morreu em custódia policial na Índia em 05 de julho. Ele havia sido preso por atividades terroristas, uma acusação que ele e os que o conheciam categoricamente negavam. Uma vida de luta pela paz e a ação direta não-violenta, Swamy era melhor conhecido por sua devoção aos direitos humanos, especialmente por adivasis da Índia (indígenas), dalits (que eram conhecidos como “intocáveis”) e os pobres da zona rural.
A Teologia da Libertação, já bem estabelecida na América Latina, foi aplicada à Teologia Dalit quando me mudei para a Índia em 1981. Um dos seus principais proponentes era o padre Stan. Ele era amigo de dom Hélder Câmara e Paulo Freire e foi profundamente influenciado pelo trabalho deles. Meu marido e eu viajamos para o sul da Índia, na cidade de Bangalore, para encontrá-lo alguns poucos meses depois de nossa chegada na Índia.
Bangalore era considerada a “cidade jardim” naquele tempo, e nós nos sentamos com o padre Stan pelos belos gramados do Instituto Social Indiano, um centro de pesquisa e formação administrado pelos jesuítas, o qual ele coordenava à época. Isso era muito confortável para seus gostos e ele estava frustrado de ter permanecido ali. “Eu pertenço às vilas”, eu lembro ele dizendo.
Alguns anos depois, aos cinquenta e cinco anos – época em que a maioria das pessoas está começando a planejar a aposentadoria – padre Stan foi transferido para o sul de Bihar, uma das áreas mais pobres da Índia (mais tarde se tornaria o estado separado de Jarcanda). Lá ele permaneceu pelo resto de sua vida, trabalhando incansavelmente em circunstâncias extremamente difíceis com trabalhadores sem terra e agricultores Dalit.
Em 2018, Swamy, junto com vários outros ativistas, se tornou o assunto de uma investigação da Agência Nacional de Investigação (NIA) sobre um incidente ocorrido no início daquele ano em Bhima Koregaon, uma vila quatro horas ao sul de Mumbai. Em janeiro, uma manifestação comemorativa do duocentésimo aniversário de um levante dalit bem-sucedido se tornou violenta. As turbas da casta superior ficaram furiosas porque os palestrantes do evento sugeriram que as mesmas injustiças contra os dalits persistiam até hoje. Pelo menos uma pessoa foi morta e muitas propriedades foram destruídas. Dois conhecidos nacionalistas hindus foram acusados de instigar a violência. Um foi preso e depois solto; o outro nunca foi acusado, apesar dos protestos massivos exigindo sua prisão. Algumas semanas depois, um dalit de dezenove anos que testemunhou a violência morreu misteriosamente; seu irmão, também testemunha, foi preso sob a acusação de tentativa de homicídio. No final daquele ano, nove eminentes ativistas de direitos humanos na casa dos 60 e 70 anos haviam sido presos. Em julho de 2018, foi a vez de Swamy, embora ele disse que nunca tinha estado em Bhima Koregaon na vida. Ele foi interrogado por várias horas pela polícia local e mais tarde novamente por funcionários da NIA.
Em um vídeo que ele fez após outro interrogatório em outubro de 2020, Swamy calmamente descreveu a sequência de eventos. Para ele, o que aconteceu não tinha nada a ver com seus movimentos antes do incidente de Bhima Koregaon e tudo a ver com a pilhagem sistemática de terras tribais (adivasi) pelo governo e empresas. Apontando para o papel que desempenhou nos últimos trinta anos – ajudando os adivasis a se conscientizarem de seus direitos, entrando com ações judiciais de interesse público e lutando pela aprovação de leis pró-adivasi – Swamy concluiu: “Isso criou um conflito com os estado e eles queriam-me fora do caminho. Uma maneira fácil de fazer isso era me implicar em alguns casos graves”.
Durante o interrogatório, os oficiais produziram resmas de material que alegaram ter sido extraído do próprio computador de Swamy. Uma extensa investigação dessa alegação foi conduzida pela Arsenal Consulting, uma empresa de perícia digital perto de Boston. Eles concluíram que o material foi plantado por malware no computador de outro ativista e, em seguida, transferido para qualquer pessoa com quem o ativista se correspondeu, incluindo Swamy.
No final do vídeo, Swamy disse que foi convocado a Mumbai para mais interrogatórios, mas se recusou a ir. Sua idade (oitenta e três), sua saúde (ele tinha Parkinson e um problema cardíaco) e a pandemia de covid-19 pareciam boas razões para ele não viajar. Sua declaração em vídeo termina com estas palavras:
“O que está acontecendo comigo não é só comigo, nem ato isolado. É um processo mais amplo que está acontecendo em todo o país. Todos nós sabemos como escritores, advogados, poetas, ativistas e líderes estudantis proeminentes foram colocados na prisão porque expressaram sua discordância ou levantaram questões sobre os governantes da Índia. Portanto, faço parte deste processo e estou feliz por fazer parte dele. Não sou um espectador silencioso. Eu faço parte do jogo e estou pronto para pagar o preço, seja ele qual for”.
Poucos dias depois, Swamy foi preso e levado de avião para Mumbai, onde ficou preso na prisão de Taloja. A acusação formal foi sedição e violação da Lei de Prevenção de Atividades Ilegais de 1967.
O superior-geral dos Jesuítas, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, cardeais, bispos, padres e membros de ordens religiosas, bem como organizações de direitos humanos e cidadãos comuns em toda a Índia e em todo o mundo, falaram em defesa de Swamy e os outros ativistas. Manifestações de solidariedade exigindo sua libertação imediata foram realizadas em todo o país. Quando estas se mostraram ineficazes, a abordagem se voltou para medidas paliativas, especialmente para o padre Stan, dada sua saúde precária. Estávamos particularmente preocupados porque, por causa de seu Parkinson, Stan não era capaz de segurar um copo com firmeza o suficiente para beber dele. Eu, e muitos outros ativista da inclusão social aqui, enviamos vários copos com canudinho para a prisão. Todos estes foram devolvidos aos seus remetentes.
Esse pequeno detalhe, mais do que qualquer outra coisa, me trouxe à mente a mesquinharia vingativa dessa prisão. Quem negaria um copo com canudinho a um padre de 83 anos que vive com Parkinson? No final, foram, como sempre, os pobres que salvaram o dia. Em uma de suas últimas cartas da prisão, Swamy falou comovente sobre a ajuda que recebia de seus companheiros de prisão: pobres e analfabetos, eles não tinham dificuldade em entender o que significa ser humano. Eles seguravam a colher do padre Stan, levavam o copo até sua boca, apoiavam-no para ir ao banheiro, e o banhavam porque ele não conseguia sozinho. “Nós ainda cantamos em coro”, ele escreveu em sua última carta. “Um pássaro preso ainda pode cantar”.
Quando, como parecia inevitável, ele contraiu a covid-19, ele finalmente foi levado a um hospital de Mumbai onde, embora acorrentado a sua cama como mandado pela lei, ele finalmente teve os cuidados que lhe foram negados na prisão. Mas era muito tarde. Entubado, ele morreu de parada cardíaca em 05 de julho.
Agradecimentos ao padre Stan Swamy por defender os pobres durante toda a vida e, no final, ser tratado exatamente como um deles. No atual clima da Índia de supressão implacável da dissidência, o exemplo de seus maus-tratos pode ser visto como um aviso para os outros. Paradoxalmente, porém, muitos aqui encontram esperança e inspiração em sua história. Um caso legal desafiando a violação dos direitos humanos do padre Stan agora estão sendo planejados, e sua morte já conscientizou mais pessoas sobre a injustiça com que os pobres vivem todos os dias neste país. Christina Samy, que fez formação com o padre Stan e se tornou uma ativista de direitos humanos em tempo integral, colocou bem: “Em sua vida, Stan foi um desafio ao status quo. Em sua morte, ele é ainda mais”.