04 Abril 2020
"Graças ao desenvolvimento da medicina moderna, hoje há muitas maneiras de se proteger ao cuidar de um paciente com um vírus altamente contagioso. Contudo, em contexto de pandemia, o material para essa proteção também se torna escasso. No mundo inteiro está faltando EPI (equipamentos de proteção individual), como máscaras e luvas. Como cuidar de pacientes com Covid-19 salvaguardando a segurança do profissional?", escreve Alexandre A. Martins, professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA.
No século XVI, quando cuidar de pessoas doentes não tinha o prestígio que tem hoje e representava um risco para o cuidador, um jovem católico – que se recuperava de uma enfermidade no hospital São Tiago do Incuráveis, em Roma – decidiu que sua vocação era servir os enfermos. Esse jovem tinha 25 anos e uma incurável chaga em uma das pernas; fora um soldado medíocre e, sem qualquer formação médica, reconheceu que os doentes precisavam mais do que era oferecido. Eles precisam de cuidados semelhantes ao amor de mãe. Sonhando mudar essa realidade, em que muitos eram praticamente abandonados para morrer, esse jovem reuniu um grupo de pessoas que conheceu no hospital e as convidou para proporcionar um cuidado integral e amoroso aos doentes.
Cuidar dos doentes, na Idade Média, também representava expor-se à contaminação e ficar enfermo. Nesse período, a Europa viveu muitas pragas, e a principal ação era isolar os infectados, que morreriam sozinhos e não contaminavam mais alguém. Assim, cuidar dos enfermos era muitas vezes visto como uma forma de punição, o que ocorria literalmente com os presidiários, por exemplo, obrigados a tal atividade. Para o nosso jovem de 25 anos deu-se o oposto: cuidar dos enfermos era um privilégio que o colocava mais perto de Deus. Assim, ele afirmava que deveria cuidar dos enfermos mesmo com risco de se contaminar e perder à própria vida. Esse jovem é São Camilo de Léllis, fundador da Ordem dos Ministros dos Enfermos que, mais tarde, recebeu o privilégio eclesiástico de ter um quarto voto (além dos três comuns à vida religiosa: pobreza, obediência e castidade), o voto de cuidar dos enfermos mesmo com risco de perder a própria vida.
Estamos vivendo um momento de peste, isto é, uma pandemia causada pelo coronavírus. O mundo está parando para parar o vírus e diminuir as pessoas doentes com Covid-19. Por ser uma doença respiratória, ventilação mecânica e terapia intensiva são necessárias nos casos mais graves. Em um contexto pandêmico, com um surto de pessoas com a mesma enfermidade precisando do mesmo tratamento, há escassez de recursos, o que por si só gera muitas questões éticas relacionadas à alocação de recursos, para onde e para quem.
No cuidado de pacientes com Covid-19, uma questão muito importante é o alto grau de contaminação do coronavírus, o que exige proteção dobrada do profissional de saúde para não se contaminar. Graças ao desenvolvimento da medicina moderna, hoje há muitas maneiras de se proteger ao cuidar de um paciente com um vírus altamente contagioso. Contudo, em contexto de pandemia, o material para essa proteção também se torna escasso. No mundo inteiro está faltando EPI (equipamentos de proteção individual), como máscaras e luvas. Como cuidar de pacientes com Covid-19 salvaguardando a segurança do profissional? O dilema é grande, por que, ao mesmo tempo em que precisamos do médico e do enfermeiro cuidando do paciente, não podemos deixar que eles se contaminem, pois precisamos deles para o cuidado. Proteger os profissionais da saúde é fundamental para a promoção do cuidado e para que esse mesmo profissional não se torne ele próprio um propagador do vírus.
Nos EUA, essa realidade de falta de EPI e a grande demanda de pacientes com Covid-19 estão gerando um grande debate, especialmente quando diz respeito à ressuscitação cardiopulmonar. A realidade é que muitos pacientes com Covid-19 vão ter parada cardiopulmonar e vão precisar de manobras de ressuscitação. Essas manobras envolvem vários profissionais que ficam expostos aos fluídos dos pacientes, contaminado pelo coronavírus. Sem adequada proteção, é quase certo que os profissionais vão se contaminar também. Então, o que fazer em caso de parada cardiopulmonar e falta de EPI adequados? Os profissionais de saúde têm um juramento que moralmente os obriga a cuidar do paciente, mas não têm um quarto voto, como têm os membros da Ordem de São Camilo.
Nos EUA, a decisão por ressuscitação ou não é do paciente (ou do seu representante legal), por meio de advance directive, conhecida como Diretivas Antecipadas de Vontade. Isso gera o que chamam de code ou no-code, isto é, realizar manobras de ressuscitação ou não ressuscitar, de acordo com a vontade do paciente. Se não há essa vontade expressa, a decisão da equipe médica é por code. O jornal Washington Post publicou um longo artigo, resultado de conversas com vários médicos e bioetistas sobre uma possível Universal DNR (sigla em inglês para não-ressuscitar) para pacientes com Covid-19. Isso gerou um polêmico debate nos sistemas de saúde país afora. As razões para a Universal DNR seriam a escassez de recursos, especialmente de EPI, e a proteção dos profissionais, para evitar mais contaminação e manter o profissional ativo e o mais eficaz possível na alocação de recursos. Nos EUA, é lei fazer o que o paciente deseja, portanto, é crime não realizar manobras de ressuscitação para um paciente que manifestou previamente seu desejo. A Universal DNR, para ser valida, precisa ser aprovada por uma nova lei nos Estados. Há dilemas éticos aqui, como, por exemplo, o de não deixar de ressuscitar um jovem com Covid-19 que claramente se beneficiaria da manobra.
O Brasil não tem lei que regulamenta as Diretivas Antecipadas, mas há uma resolução do Conselho Federal de Medicina (no. 1995/12) que as recomenda e exorta o médico a seguir a diretiva. Mas quase oito anos depois dessa resolução, a prática não mudou muito, e a decisão ainda está dependente da prerrogativa do médico, que geralmente opta por faz a ressuscitação. A BBC Brasil conversou com médicos de três Estados que estão cuidando de pacientes com Covid-19. Todos os entrevistados alegaram a carência de EPI e cenários nos quais o paciente precisa ser entubado e o médico não tem a proteção adequada; um médico decidiu entubar o paciente com Covid-19 e assumiu o risco de se contaminar, enquanto que, numa mesma situação, outro médico não entubou para não ter risco de se contaminar. Na medida em que os casos de Covid-19 aumentarem, esse cenário se tornará frequente nos prontos-socorros e UTI do Brasil.
O dilema ético é grande. Ao mesmo tempo em que os Católicos rezam para São Camilo, que se tornou o padroeiro dos doentes e dos profissionais de saúde, não podemos exigir que os profissionais de saúde façam o quanto voto camiliano. Nos EUA, na ausência de Diretivas Antecipadas, alguns hospitais têm recomendado que os profissionais avaliem caso por caso e tomem a decisão com base na proporção entre a necessidade e o benefício da intervenção. Nenhuma intervenção sem perspectiva de proporcionar um benefício terapêutico equivalente deve ser realizada. O princípio ético de proporcionalidade, com base no conhecimento médico e na perspectiva clínica do paciente, parece ser o caminho apropriado para guiar as decisões em caso de parada cardiopulmonar de paciente com Covid-19. Mesmo sem uma lei que regulamenta as Diretivas Antecipadas no Brasil, as decisões nesse cenário devem seguir o mesmo caminho ético. Mas isso não resolve todo o problema, porque o profissional precisa ser protegido e tem a autonomia para recursar realizar um procedimento que o ponha em risco. Autoridades públicas, com a colaboração do setor privado, devem se esforçar o máximo possível para garantir a produção de EPI e proteger os profissionais. Trata-se de uma obrigação de justiça e cuidado para com a população.
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Ressuscitação Cardiopulmonar e Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU