11 Novembro 2023
Um grande jesuíta dialoga com Raniero La Valle numa envolvente entrevista ao l'Unità. Sobre a guerra em Gaza, o judaísmo, o difícil mas indispensável diálogo inter-religioso. Padre Felice Scalia lecionou na Faculdade de Teologia da Itália Meridional e depois no Instituto Superior de Ciências Humanas e Religiosas de Messina. É autor de numerosos ensaios, entre os quais recordamos o mais recente Il Vangelo dusatteso desconsiderado. Cosa abbiamo perso di vista nel messaggio di Gesù (Paoline Editoriale Libri, 2023).
A entrevista é de Umberto De Giovannangeli, publicada por l’Unità, 09-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em entrevista a este jornal, Raniero La Valle afirmou que entre as tragédias que se consomem nestes dias, há um mês, em Gaza, há também a tragédia da religião judaica, que com o Estado de Israel, posto em perigo pela sua própria ação, corre o risco de ser identificada.
A religião judaica teve diferentes facetas ao longo dos séculos. Talvez a mais importante seja que Eloim, o Deus que chama Abraão a “sair da sua terra” para ser “uma bênção para todos os povos”, convida este homem, rico e infeliz, a iniciar uma jornada sem precedentes: experimentar um contato com o divino que seja abertura à esperança de um futuro “outro” para si e para a humanidade. Única condição: não se misturar com os outros povos, estar “além” de sua lógica, de seu modus vivendi. Existe, portanto, no DNA do judaísmo uma espécie de messianismo cujo conteúdo não se revela imediatamente, mas caminhando ao longo da história com o “seu” Deus.
O que significa?
O judaísmo é uma religião de nômades em busca (nunca de posse) da pretendida “Terra Prometida”, entendida não tanto como um lugar geográfico, mas como um lugar teológico: o judeu caminha para se aproximar do rosto Deus e da natureza íntima de si mesmo. O Deus dos judeus quer a vida, não a morte, a liberdade, não a escravidão, abole os sacrifícios dos primogênitos, quer a paz. Mover-se dentro desse horizonte torna o homem plenamente humano.
O desesperado Abraão aceita a proposta, mas ele primeiro, e outros depois dele, estão sempre em dúvida entre salvaguardar a especificidade da sua fé e acolher o estilo dos “gentios”, entre adorar o Deus da vida ou curvar-se como todos a um ídolo “fruto de mãos de homem”.
O verdadeiro judaísmo, portanto, não é encontrado na história desse punhado de tribos que se tornaram um povo, mas no fio vermelho dos seus profetas que sempre empurram para aquele “além”, aquele “diversamente” do evento fundador.
Aqui está a resposta para a pergunta. Depois do Holocausto, na complexa história da transição de um protetorado inglês a um “Estado de Israel”, uma linha de pensamento queria adotar um modelo típico dos “gentios” (segurança popular garantida por um Estado forte, rico, invencível, dentro das fronteiras da bíblica Terra Prometida), a outra optava por uma convivência pacífica de judeus e palestinos (os bíblicos "filisteus"), segundo a fórmula "dois estados para dois povos".
Esta última era a linha de Martin Buber e depois de Yitzhak Rabin, presidente israelense assassinado em 4 de novembro de 1995.
Netanyahu, identificando o judaísmo com a sua história conturbada (e muitas vezes infiel a si mesma), e ao afirmar que o Estado de Israel era um estado confessional exclusivo dos judeus, criava uma exclusão de criaturas humanas de credos diferentes, uma luta de raças que não poderia levar a nada de novo em favor da vida e da “bênção para todos os povos”. Nesse sentido colocou em perigo não só a segurança que queria garantir ao povo, mas a própria identidade de religião. O judaísmo de um Netanyahu, hoje aliado com os ultraortodoxos, torna-se o caminho para negar o judaísmo na sua essência.
La Valle usa uma palavra forte para definir o que as forças armadas israelenses, por mandado político, estão perpetrando na Faixa de Gaza. Esta palavra terrível é genocídio. Certamente quando se ouvem palavras como "solução definitiva", "aniquilação" do Hamas, “inexistência do povo palestino” (teria sido inventado por ingênuos pacifistas europeus), quando essas palavras ressoam, é difícil evitar a ideia de que os líderes militares judeus estejam infligindo aos palestinos, se não aquele extermínio que os seus pais sofreram, certamente algo que muito se aproxima. É difícil classificar o extermínio de 3.200 crianças palestinas em três semanas de guerra como um “efeito colateral”. Não brincamos com números; trata-se de crianças, futuro de uma nação.
O Hamas matou 40 (e é obsceno, absurdo) mas a reação israelense na “Faixa” é difícil de ser chamada “legítima defesa”; é vingança e o início de um planejado genocídio-extermínio de um povo.
La Valle distingue entre “genocídio” no uso comum do termo e genocídio conforme definido no 1948 pela ONU na “Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio”.
Aquele documento enumera tão meticulosamente os casos em que se concretiza o crime de genocídio, que parece o resultado de uma alucinação antecipatória do que estamos verificando nos nossos dias.
Quando quer, o homem raciocina, mas nem sempre quer.
La Valle diz: “As religiões precisam de uma contínua tomada de consciência de si mesmas, para interpretar as suas páginas fundadoras de acordo com as exigências dos tempos”.
O Papa João XXIII foi criticado por grande parte da Igreja Católica por ter convocado um Concílio Vaticano II (que necessidade há?) e sobretudo por ter escrito na Pacem in terris que toda guerra nos tempos modernos é simplesmente loucura. Bellum alienum est a ratione. Diziam que um Papa deve se preocupar com a vida eterna, não com a política, com o céu, não com a terra. O manso Pontífice anotou em seu diário uma famosa frase: “Não é o Evangelho que muda, somos nós que o compreendemos melhor”. Que significa: a história e as situações históricas revelam-nos a riqueza e a profundidade profética de um Evangelho que responde não aos problemas humanos de 2000 anos atrás, mas aos de hoje. Caminhando com história e olhando com os olhos de Cristo, descobrimos como enfrentar circunstâncias da vida para que se tornem anúncio de salvação possível.
Acredito que La Valle entendesse isso, e talvez implicasse muito mais: não se é seguidor de Jesus Nazaré se não se souber “ler os sinais dos tempos”, isto é, os avisos de Deus naquele específico período histórico.
Numa comovente carta a toda a Diocese, o Cardeal Pizzaballa, Patriarca de Jerusalém dos latinos, afirma: Os bombardeios em Gaza causarão apenas morte e só aumentarão o ódio. Só pondo fim a décadas de ocupação e às suas trágicas consequências, e dando uma clara e segura perspectiva nacional ao povo palestino é que se poderá iniciar um sério processo de paz.
Há anos assistimos não só à eclosão de muitas guerras, mas também à militarização estratégica do ódio como semente de outras guerras.
Diferentes populações, há séculos em paz na sua diversidade religiosa e cultural, são postas na necessidade de combater umas com a outras. Tivemos uma amostra dessa nova barbárie do homem, nas guerras jugoslavas, mas hoje ninguém pode dizem que o que acontece na Faixa de Gaza criará irmandade entre judeus e palestinos. Eis alcançado o objetivo: fazer um povo viver no medo e na insegurança, saber usar nos kibutzim pá e kalashnikov, regar os campos enquanto se atira no intruso.
Como se essa pudesse ser chamada de vida humana. O discurso de que é preciso distinguir entre paz e vitória (a paz exige justiça e respeito pela dignidade de cada homem, enquanto a vitória é atribuída a quem mata mais no menor tempo possível) esse discurso não agrada aos supostos grandes "pais da pátria", aos fabricantes de armas nem aos "grandes" homens de partido que estão governando o mundo.
O Cardeal Pizzaballa ousa dizer uma verdade que o nosso pensamento único atlantista toma todo o cuidado de não expressar. Esta verdade gritada pelo Papa Francisco nos últimos dias e por milhares de jovens nas ruas europeias e até mesmo estadunidenses, é simples na sua complexidade: “Só pondo fim a décadas de ocupação (...) e dando uma clara e segura perspectiva nacional ao povo palestino, poderá ser iniciado um sério processo de paz".
O Cardeal Pizzaballa escreve: “Foi na cruz que Jesus venceu. Não com as armas, não com o poder político, não com grandes meios, nem se impondo. A paz de que ele fala não tem nada a ver com a vitória sobre o outro. Ele venceu o mundo amando-o". Padre Scalia, é a paz justa, a paz na justiça, aquela invocada pelo Papa Francisco para contrastar, usando uma afirmação do pontífice, “a terceira guerra mundial em pedaços”, em curso?
Eu não vejo outra. Estamos numa encruzilhada histórica: temos os meios para concluir essa corrida rumo à anulação da vida na Terra, e os meios para virar a página e perceber que a vida, o futuro, a manutenção do delicadíssimo ecossistema, ainda estão por pouco nas nossas mãos. A paz no respeito pela Carta dos Direitos Humanos (ou seja, da dignidade de cada homem), a fraternidade e a colaboração dos povos para viver e deixar viver, a benevolência e o amor, todas essas coisas hoje não são um opcional de boas almas, mas um dever absoluto de cada pessoa de bem. Não nascemos para nos massacrar uns aos outros e nem mesmo para nos roubar uns aos outros, mas modelámos a chamada civilização ocidental com base nesses verbos. A nossa geração talvez seja chamada para iniciar uma revolução antropológica. Talvez apenas para dizer que todo o “sistema” deve ser mudado nos seus valores fundadores, porque nos leva diretamente à morte de tudo e de todos. É verdade, essa mudança exige séculos, parece loucura e desfruta das fáceis ironias do “pensamento único”.
Mas temos alguma outra alternativa?
Acredito que não. Ou a catástrofe absoluta ou o início de uma novidade absoluta, a opção vida.
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“Entre a paz e a vitória, a razão não é de quem mata mais”. Entrevista com Felice Scalia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU