30 Outubro 2023
Raniero La Valle – escritor, ensaísta, político, jornalista de ponta da Rai na época de ouro do serviço público de rádio e televisão, católico, cronista, analista e intérprete do Concílio, ex-diretor do Avvenire, uma riquíssima história política sobre os ombros, sempre à esquerda – presenteia aos leitores do jornal L'Unità uma entrevista-lição que tem como fio condutor a tragédia que está se consumando na Terra Santa. Em Gaza, mas também em Israel.
A reportagem é de Umberto De Giovannangeli, publicada por L’Unità, 27-10-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Que chave de leitura pode ser dada à tragédia que está se consumando em Gaza nestas horas?
São três tragédias. A primeira é a tragédia que está se abatendo sobre Gaza. De acordo com uma linguagem comum e corrente, não se pode definir como genocídio, porque genocídio significa, na ideia comum, a destruição de um povo inteiro. Mas, se considerarmos o genocídio em sentido específico e técnico que foi usado pela ONU na Resolução de 1946 e depois na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, então o que está sendo perpetrado na Faixa de Gaza é um genocídio. Porque, de acordo com essa definição, genocídio é o assassinato ou a tentativa de destruição, mesmo que de uma parte ou de membros individuais, de um povo por pertencerem a esse povo ou por pertencerem a um grupo étnico, racial, religioso ou político como tal. Nesse sentido específico, certamente há um genocídio em curso, porque há uma população inteira de toda região geográfica inteira que está condenada a ficar sem água, sem comida, sem eletricidade, sem hospitais... Desse ponto de vista, é uma tragédia. A pergunta é por que todo o mundo, exceto Ernesto Galli della Loggia e poucos outros, dizem a Israel que não deve entrar em Gaza e completar o trabalho de destruição...
Pergunta fundamental. E qual é a sua resposta?
Porque o mundo inteiro teme outra tragédia. Que é a tragédia do Estado de Israel, que, se continuar nesse caminho em que Netanyahu o colocou, certamente obterá uma vingança, uma retaliação pela terrível ofensa, pelo terrível ataque e agressão que sofreu por parte do Hamas, mas se coloca em perigo, em risco. Porque realiza uma ação reprovada e considerada excessiva, desumana, pela grande maioria do mundo e pelas próprias Nações Unidas. Isso põe o Estado de Israel em perigo. E eu gostaria de dizer que o perigo, que muitos israelitas atribuem a Netanyahu por não ter sido capaz de evitar o ataque que sofreram no dia 7 de outubro na fronteira da Faixa de Gaza, na realidade remonta a Netanyahu muito antes. Não se deve esquecer que Netanyahu esteve no governo de Israel durante mais de 13 anos, e o último massacre que estava tentando fazer era contra as instituições fundamentais do Estado, a começar pelo Judiciário. Isso nos leva a dizer a terceira tragédia que eu vejo e que, pelo contrário, é menos notada e considerada, ou não considerada, por uma cultura ocidental que não está mais acostumada a pensar nestes termos.
Qual seria essa terceira tragédia?
É a tragédia do judaísmo como religião. Do judaísmo como comunidade religiosa, como fé, como patrimônio, como tradição. O risco que o judaísmo corre hoje é sua identificação absoluta com o Estado de Israel, o que faz com que qualquer julgamento que seja feito sobre o Estado de Israel, bom ou mau que seja – e neste momento é principalmente um julgamento severo e de crítica –, se pulverize e se estenda ao próprio judaísmo. E isso não por um abuso dos observadores externos, mas porque essa é a mesma identidade que o Estado de Israel reivindicou para si.
Mas atenção: não no início do sionismo. Porque, quando o sionismo começou sua batalha, no início do século passado, ele tinha em mente a colocação dos judeus em uma terra que fosse deles, na qual democracia e sionismo se unissem. Essa ainda era a ideia fundadora, a ideia original, sobre a qual o Estado de Israel foi constituído em 1948, tanto que até hoje todos, cansados, repetem como um mantra que Israel é a única democracia no Oriente Médio.
Mas o que aconteceu? Aconteceu que, na longa e perversa gestão política do Estado de Israel por Netanyahu, chegou em 2018 uma lei constitucional que ele quis e conseguiu aprovar, porque, não tendo obtido uma maioria nas eleições, aliou-se aos partidos religiosos ultraortodoxos, extremistas de direita, obtendo assim uma estreita maioria no Knesset, o parlamento israelense. E, com essa estreita maioria, fez com que o Knesset aprovasse uma lei constitucional com a qual a identidade do Estado de Israel foi alterada.
Se antes o Estado de Israel era um Estado democrático, com essa lei de julho de 2018 ele foi transformado no “Estado-nação do povo judeu”. Nessa lei identitária, existem três pilares que explicam tudo o que veio depois e, de alguma forma, se forem mantidos, também atestam a impossibilidade de resolver o problema israelense-palestino. Por isso, essa repetição da proposta de “dois povos, dois Estados”, mesmo que feita de boa-fé, não tem neste momento, assim como não teve durante todas essas décadas, nenhuma possibilidade de realização.
Quais são os pilares dessa lei sobre o Estado judeu?
A primeira é a referência à terra. À terra sagrada de Eretz Israel. O assentamento naquela terra é definido como um direito natural. Portanto, não é um direito político, não é um direito que nasce, como para todos os outros povos ou Estados, de um acontecimento cultural, histórico ou de nascimento, mas é considerado um direito natural. Dessa formulação, segue-se que o direito de exercer a autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusivo do povo judeu. Estou lendo isso no parágrafo C do primeiro princípio fundamental. Afirma-se, portanto, que o povo judeu é o único que tem direito à autodeterminação no Estado.
Autodeterminação significa soberania, significa direitos políticos. Por isso, se esse povo é o único que tem direitos políticos, está definido pela Constituição que nenhum outro povo pode tê-los.
Resulta daí que, no que diz respeito ao povo palestino, não se trata apenas de que ele deve ser mantido em uma condição de minoria, mas também de que não deve existir. Não deve existir porque não pode ter uma existência política, isto é, não pode ter uma existência real. Daí derivam os outros dois pilares da lei constitucional judaica.
Quais?
O primeiro é que Jerusalém “íntegra e unida” é reivindicada como a capital do Estado. O que significa que não é possível pensar em uma Jerusalém Oriental em que seja estabelecido um possível governo palestino. Jerusalém é definida pela lei constitucional como indivisível. Una e indivisível.
As reivindicações da comunidade internacional de fazer de Jerusalém a capital, certamente de Israel, mas também da Palestina, são canceladas, excluídas dessa lei. O outro pilar dos três diz respeito às colônias. Ponto 7, assentamentos judaicos. Cito textualmente: “O Estado considera o desenvolvimento de assentamentos judaicos como um valor nacional e agirá para encorajar e promover seu estabelecimento e sua consolidação”.
Se você fala de assentamentos, evidentemente não está falando da terra originalmente de Israel. Fala-se da presença dos colonos judeus nos territórios ocupados, isto é, na Cisjordânia, em Jerusalém, na área que foi adquirida, conquistada, por Israel na Guerra dos Seis Dias de 1967. E, portanto, as colônias. E, portanto, os 700 mil colonos que hoje em 270 assentamentos estão espalhados por toda a Cisjordânia. De uma população de três milhões de palestinos e, portanto, com uma proporção muito considerável, inatural em comparação com uma terra que é a terra dos palestinos. E essa é a outra coisa que torna impossível pensar em um Estado palestino, até porque esses assentamentos são feitos em rede, conectados entre si, razão pela qual continua sendo uma pele de leopardo para os palestinos.
Por fim, o último pilar é que a competência do Estado de Israel, o que não existe para nenhum outro Estado no mundo, é estendida aos judeus da diáspora, ou seja, aos judeus que vivem em qualquer outra parte do mundo e que não estão em Israel. De fato, o artigo 6 – conexão com o povo judeu – diz: “O Estado agirá no âmbito da diáspora para fortalecer a afinidade entre ela e os membros do povo judeu”, e depois: “O Estado agirá para preservar o patrimônio cultural, histórico, religioso do povo judeu entre os judeus da diáspora”. O que significa uma competência geral do Estado de Israel que se estende a todos os membros do povo judeu que estão espalhados pelo mundo.
Essa identificação do Estado assim concebido com o povo judeu – que se chama povo judeu não tanto e não só pela etnia, mas sim pela fé de Israel, pela grande tradição bíblica, pela grande história que é o judaísmo, pela mensagem dos profetas, pela tradição da Torá, pelo peso que tudo isso teve no mundo – está ligada a este momento específico da existência política do Estado de Israel. E, portanto, o judaísmo está totalmente envolvido no perigo que o Estado de Israel está correndo neste momento.
Se há uma angústia, essa angústia, como a chama um grande judeu, filósofo e cientista, Yehuda Elkana, que escreveu contra essa angústia existencial que os judeus mantiveram após a imensa tragédia da Shoá, bem, essa angústia, para usar essa palavra, é uma angústia que diz respeito a Gaza, diz respeito ao Estado de Israel, mas também diz respeito à própria religião do judaísmo.
À luz de todas essas importantes considerações, estamos realmente em uma situação sem saída?
A saída é que haja uma conversão desses elementos, dessas realidades. É evidente que não basta nem uma solução puramente jurídica nem uma solução baseada em um compromisso frágil e revogável. Aqui, confrontam-se grandes forças, inclusive militares. Provavelmente, nesse nível, o Estado de Israel consegue ultrapassar o perigo de hoje, porque é uma grande potência militar, porque é um posto avançado dos Estados Unidos no Oriente Médio, porque tem uma óbvia solidariedade da maioria da comunidade internacional, especialmente da ocidental. É possível, altamente provável, que o Estado de Israel que sofreu e que está provocando, consiga superar o perigo. Mas não é possível que essa situação possa ser remediada. E também para os palestinos e para o judaísmo.
Para que isso não ocorra, é preciso que todas essas três realidades passem por uma conversão profunda. No que diz respeito aos palestinos, é preciso se afirmar cada vez mais a distinção entre o povo palestino e as alas extremistas ou até terroristas que comprometem a vida, a existência, a causa e os direitos sacrossantos do povo palestino. Uma conversão profunda do Estado de Israel que não pode mais continuar se identificando, simpliciter, com a religião judaica. E depois também uma conversão do judaísmo, que não é uma prepotência dita e exercida de fora, porque o cristianismo também sofreu essa conversão.
O que significa?
O cristianismo também passou por uma fase que durou quase mil anos, a fase da “cristandade”, que, segundo um historiador austríaco bem conhecido do Papa Francisco, Friedrich Heer, representou a tentativa da instauração de um Estado totalitário europeu, de Constantino a Hitler. O cristianismo saiu disso por meio da superação do regime de cristandade, do regime constantiniano, da grande revisão feita no Concílio Vaticano II e que hoje é tão admiravelmente expressada pelo Papa Francisco.
O fato de as religiões precisarem de uma contínua tomada de consciência de si mesmas, de mergulharem nas profundezas de sua própria tradição e de serem capazes de interpretar suas próprias páginas fundadoras de uma forma que corresponda às exigências dos tempos é algo que diz respeito a todas elas e, portanto, também ao judaísmo. Penso que o diálogo judaico-cristão, que é uma grande conquista destas últimas décadas, um grande valor ao qual os católicos da Igreja romana, mas também de outras confissões, chegaram com plena convicção, no qual o judaísmo também começou a entrar, para ser preservado e fortalecido, deve conseguir ajudar reciprocamente uns e outros a se converterem.
A solução não é para amanhã, é uma solução de longo prazo, mas é importante que pelo menos seja iniciada, se houver uma vontade sincera de rever as causas que levaram à tragédia atual, que também pode degenerar em uma guerra mundial.
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Genocídio em Gaza. “Netanyahu está levando o judaísmo ao fundo do poço”. Entrevista com Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU