30 Abril 2020
Tornamo-nos um povo orante? Superamos a ideia de que a única oração é aquela que se esgota na igreja? Aprendemos a rezar? Rezamos como Jesus nos ensinou? Eu duvido.
A opinião é do jesuíta italiano Felice Scalia, ex-professor da Faculdade Teológica da Itália Meridional e do Instituto Superior de Ciências Humanas e Religiosas de Messina.
O artigo foi publicado em Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 28-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto escrevemos esta carta, evidenciam-se nos jornais a decepção e a contrariedade com que a Conferência Episcopal Italiana (CEI) acolheu a última disposição do presidente do Conselho italiano, que exclui, também na Fase 2 [do combate ao coronavírus], a participação dos fiéis na celebração das missas.
A partir de uma perspectiva totalmente diferente (mas não estranha), nota-se que a maioria do nosso povo aprecia o trabalho do governo nesta situação totalmente nova, que expôs os resultados de políticas sociais e econômicas muito discutíveis. Tais polêmicas podem ser o prelúdio para a reproposição da contraposição Estado-Igreja pré-concordatária.
Queremos definir a nossa gente como “povo patriótico” (como alguns católicos “de carteirinha” definiram ironicamente) e a Igreja como antigovernamental? Pior: como Igreja, podemos nos dar ao luxo de dar a impressão de que apoiamos aquelas alas da oposição que instrumentalizaram a religião para as suas campanhas eleitorais?
A todas essas legítimas perguntas, eu respondo que não, que a CEI não quer isso e, acredito, nem mesmo o governo. Embora muitas coisas pudessem ser prudencialmente evitadas. Como a irrupção armada por parte de policiais em Cremona em uma missa celebrada com um pequeno grupo de pessoas em luto. E talvez também devia ter sido evitada a advertência da Cúria daquela cidade ao padre que ousara tanto por excesso de compaixão e que se recusara a interromper o rito, embora disposto a pagar a multa prevista. Obedece-se a lei também pagando por desobedecê-la.
No entanto, dou-me conta de que vivemos um tempo em que discernir claramente o bem do mal não é fácil, e às vezes devemos nos contentar com o “menos mal” ou com o bem possível. Com isso, quero dizer que a última coisa de que a Itália precisa (só a Itália?) é uma guerra entre velas e fuzis.
A CEI, o governo e o Comitê Científico encontrarão um acordo para impedir a difusão do contágio e, ao mesmo tempo, permitir que os fiéis “não vivam somente de pão”.
Mas o que hoje nos angustia é outro problema bem mais complexo e sobre o qual estes meses obrigaram todos a refletir. Posso nucleá-lo em uma pergunta: se em tempos de desorientação se acentua em muitos a necessidade de rezar, temos certeza, nós todos, como Igreja, de que as orações sugeridas são “cristãs”?
É fato que, nesses meses, temos rezado mais. Essa atitude de oração foi transversal, entre clero e leigos, entre doutos e simples, entre povo de Deus e elites, embora de modos provavelmente específicos. Ela assumiu tons que talvez até ontem fossem impensáveis: encorajou-se a oração doméstica, e surgiu espontaneamente uma oração ecumênica, inter-religiosa, “católica”, no sentido mais belo. Ninguém disse: “Senhor, salva primeiro os italianos, ou os católicos...”. Pelo menos, eu espero.
O povo de Deus também foi criativo. As pessoas convidaram os amigos da sacada da frente ou do outro terraço para rezar o terço, organizaram discussões religiosas no WhatsApp entre amigos em um determinado horário, encontraram-se às 7h da manhã para “ir à missa todos os dias, com o Papa Francisco”.
Então, tornamo-nos um povo orante? Superamos a ideia de que a única oração é aquela que se esgota na igreja? Aprendemos a rezar? Rezamos como Jesus nos ensinou? Eu duvido.
Digo francamente que certas formulações de oração exacerbavam tanto a intervenção divina, a ponto de dar quase a entender que Ele tinha que nos afastar da provação, porque foi a partir d’Ele, como castigo, como penitência pelos nossos pecados, que o vírus homicida chegou. Facilmente se podia desenhar na mente das pessoas piedosas a imagem de um Deus justiceiro, irado com as nossas desobediências, vingativo.
Conhecemos o resultado de orações não respondidas. “Estou cansado de olhar para o alto, não existe Deus algum, e, se existe, está cuidando das suas coisas”, alguém pode concluir.
O que me interessa destacar é a necessidade de uma cristianização da oração. Jesus advertia os seus amigos que estava muito em uso uma oração que merecia o seu: “Mas não seja assim entre vocês!”, aquela que pensa em multiplicar palavras para convencer Deus a mudar de opinião, a parar de nos castigar, a “acordar”. Cada um reza como pode e como aprendeu. Assim como se busca a Deus “às apalpadelas”, assim também se reza “às apalpadelas”, de acordo com o grau de desespero, de necessidade e, acima de tudo, de acordo com o próprio ambiente religioso.
Mas, na pastoral, não deveria existir um acompanhamento para saber rezar melhor, assim como existe um para saber crer melhor e para saber viver melhor “coram Domino”? O que acabamos de dizer leva a outro antigo problema que, precisamente em alguns dias, poderá abrir um novo front: religiosidade popular contra religiosidade erudita.
A CEI estabeleceu que, no dia 10 de maio, confiará a Itália ao Imaculado Coração de Maria e precisamente (espero vivamente que sem conexão com o que foi relatado acima) na Diocese de Cremona. Um comunicado da agência Ansa diz:
“Reunindo a proposta e a solicitação de muitos fiéis, a Conferência Episcopal Italiana confia todo o país à proteção da Mãe de Deus como sinal de salvação e de esperança. Ela fará isso na sexta-feira, 10 de maio, às 21 horas, com um momento de oração, na Basílica de Santa Maria del Fonte, perto de Caravaggio (Diocese de Cremona, província de Bérgamo). ‘A escolha da data e do lugar é extremamente simbólica’, explica a CEI. “De fato, maio é o mês tradicionalmente dedicado a Nossa Senhora, tempo marcado pela oração do terço, pelas peregrinações aos santuários, pela necessidade de se voltar com orações especiais à intercessão da Virgem. Iniciar este mês com o Ato de Entrega a Maria, na situação atual, adquire um significado muito particular para toda a Itália.”
Diferentemente, de um modo surpreendente e positivo, o Papa Francisco nos ajuda a reencontrar o sentido profundo, sincero e de abandono na oração, entregando, não só aos católicos, mas também aos homens e mulheres que nestes meses têm estado com medo e fechados nas nossas casas a “Carta a todos os fiéis para o mês de maio” (25-04-2020). Ela permanece fortemente ancorada no dado bíblico, na mariologia conciliar e, ao mesmo tempo, na religiosidade popular por ele sempre invocava e respeitada.
E, precisamente no que diz respeito ao chamado à piedade popular, pensemos como pode ser devocional e ambígua uma “consagração ao Imaculado Coração de Maria” por parte de pessoas já consagradas pelo batismo e, portanto, chamadas a viver “no mundo” (de um modo “outro”, “separado”, “santo”), mas não “de acordo com o mundo”.
Como foi abominável sacudir um terço como uma arma poderosa contra os muçulmanos, atribuindo depois, sacrilegamente, a Maria o massacre de Lepanto. E o uso do terço (e até do Evangelho) por parte de certos crentes nostálgicos (padres e leigos) e certos ateus-devotos, ancorados a um cristianismo de estilo “mais cristandade e menos Cristo”.
Pensemos como é perigoso não só confundir 500 cartas – talvez solicitadas ad hoc – com um pedido da Itália inteira, mas, acima de tudo, insinuar a ideia de que é necessária uma intercessão da Virgem, já que a Trindade não pretende voltar o seu olhar para as nossas desgraças planetárias.
O papa sabe tudo isso e muito mais e, então, na sua carta, faz também desta vez aquilo que ele sempre recomenda fazer: “Evangeliza a piedade popular”. Àqueles que rezarão orações durante todo o mês de maio, ele recomenda, na repetitividade das Ave-Marias e na contemplação dos mistérios de Jesus, que se chegue a considerar como é decisivo olhar para Maria como um modelo de vida cristã.
É necessário – o papa parece dizer –, em uma situação como a nossa, lembrar que temos uma “Mãe nossa”, uma “Mulher” de carne e osso, que, depois de ver o enorme poder dos poderosos, a soberba instalada nos tronos, a humilhação dos forçados a passar fome, o sofrimento dos oprimidos, não se limitou a rezar e a ser uma boa pessoa, mas entrou na briga e se ofereceu totalmente para gerar Deus no mundo. E não apenas para gerá-lo, mas também para defendê-lo, guardá-lo, protegê-lo, até mesmo quando eram atacados, Mãe e Filho, naquela trágica sexta-feira, por inimigos impiedosos, no Gólgota.
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Curar a oração. Artigo de Felice Scalia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU