14 Junho 2023
"O risco de a guerra continuar existe porque nem os russos nem os americanos podem perder. Mas mesmo se assinarem a 'paz', viveremos dentro de um neoliberalismo ainda mais 'autoritário', gerido por oligarquias ainda mais predatórias, apoiado por forças fascistas, racistas e sexistas que irão preparar a próxima guerra contra a China, tal como demonstra a louca corrida rearmamentista", escreve Maurizio Lazzarato, sociólogo e filósofo, professor na Université Paris VIII, autor, entre outros livros, de "O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal" (edUFSCar), em artigo sobre seu livro recém-lançado, publicado por A Terra é Redonda, 10-06-2023. A tradução é de Felipe Shimabukuro.
A guerra na Ucrânia evidenciou os limites políticos do que restava dos movimentos e teorias críticas que expulsaram a guerra (e as guerras) do debate político e teórico, produzindo uma pacificação do Capitalismo e do Estado. A produção, o trabalho, as relações de poder (do homem sobre a mulher, do branco sobre o racializado, do patrão sobre o trabalhador) são discutidos, teorizados, mas em um quadro em que a guerra de conquista e de sujeição, a guerra civil e a guerra entre Estados, parecem fazer parte do século XX. As revoluções e os revolucionários também aparecem confinados num passado que os torna inúteis e nos impede de utilizar seu saber estratégico sobre o imperialismo e as guerras.
O resultado de cinquenta anos de pacificação é a desorientação diante da eclosão da guerra entre imperialismos, agitados pela crônica, à mercê da opinião, sem um ponto de vista de classe porque também fizeram as classes desaparecerem nesse meio-tempo, confundindo a derrota da classe operária histórica com o fim da luta de classes. Em vez disso, a luta de classes se intensificou, sendo de fato travada, mas conduzida com paciência estratégica apenas pelo inimigo de classe.
O problema que temos pela frente é um longo trabalho para reintegrar as guerras e as lutas de classes enquanto elemento estrutural do capitalismo, tentando reconstruir um ponto de vista parcial sobre elas.
Todas as teorias críticas desenvolveram um novo conceito de produção (desejante, afetiva, cognitiva, biopolítica, neuronal, pulsional), ao mesmo tempo eliminando o fato de que, antes de produzir mercadorias, ela precisa “capturar e dividir” produzindo as classes. A produção, o trabalho, as relações raciais e sexuais de poder pressupõem as guerras de conquista e de sujeição que produzem as mulheres, os operários, os colonizados e os racializados, cidadãos que não existem na natureza. A guerra civil de apropriação dos corpos deve afirmar ao mesmo tempo a divisão entre proprietários e não proprietários, entre quem manda e quem obedece.
A “paz” obtida daí é a paz que os vencedores impõem aos vencidos, a continuação da guerra de sujeição por outros meios (a economia, a política, a heterossexualidade, o racismo, o direito, a cidadania). O único efeito da acumulação de capital será agravar os dualismos que a fundam, criando diferenças sempre mais acentuadas de renda, patrimônio e poder dentro das classes de todos os países, e desigualdades crescentes de poder militar, político e de potência econômica entre Estados que levarão à guerra entre imperialismos, o que é, por sua vez, a continuação da “paz” da política, da economia e da biopolítica por outros meios. A guerra não é a interrupção das lutas de classe, mas seu prosseguimento sob outras formas.
Em poucas palavras, trata-se do ciclo econômico-político do neoliberalismo que começa e termina com a guerra, do qual trataremos nos capítulos 3 e 4 ˗˗ junto com a formação de classes, é o grande impasse das teorias críticas contemporâneas por apagar a palavra de ordem de Karl Marx, “expropriar os expropriadores”, condição de toda mudança radical. Elas pensam ser possível impor o “comum”, formas de vida, vidas liberadas, produção de subjetividade e políticas do desejo, sem passar pela derrubada das expropriações originárias.
O 5° capítulo aborda a relação entre a acumulação no mercado mundial, Estado e guerra imperialista, cujo conflito na Ucrânia é uma ilustração perfeita.
Vladimir I. Lênin nos oferece uma boa indicação de método para ler a guerra em curso, desarmando o discurso repetido de modo obsessivo do agressor e do agredido: “O filisteu não entende que a guerra é ‘a continuação da política’, limitando-se a dizer, portanto, ‘o inimigo está atacando’, ‘o inimigo está invadindo meu país’, sem se perguntar por que motivo se combate a guerra, com quais classes, por que fim político (…). E, como para avaliar a guerra se recorreu a frases absurdas sobre a agressão e a defesa em geral, então se recorre aos mesmos lugares comuns dos filisteus para avaliar a paz, esquecendo a situação histórica concreta e a realidade concreta da luta entre as potências imperialistas”.
O motivo e o fim político são certamente a hegemonia do mercado mundial que os Estados Unidos pensavam poder dominar facilmente após a queda do Muro de Berlim. As guerras perdidas para exportar a democracia já eram um sinal de que nem todos queriam viver sob a “pax americana”. Ainda mais preocupante para o Tio Sam é o crescimento do grande Sul (o 1º capítulo é dedicado às suas formidáveis revoluções e à sua transformação em capitalismos, embora irredutíveis ao capitalismo ocidental), e em particular da China e da Rússia, que também não gostam de que os americanos comandem o mundo, por não entenderem com que legitimidade o fazem a não ser por meio da força.
O Sul lê a guerra na Ucrânia como a ponta de lança do projeto do “século americano” (“os neoconservadores”), do “Make America Great Again” (Donald Trump), do “Fazer com que a América dirija o mundo mais uma vez” (Joe Biden), cujo primeiro objetivo é enfraquecer a Rússia, tendo em mira em seguida a China e todo o Sul. Por essa razão, por diferentes motivos, recusaram-se a seguir o “Ocidente”, que é visto por eles como um imperialismo muito mais perigoso do que o russo. Eles fazem isso em países que estão muitas vezes saindo de séculos de colonização e que veem nos Estados Unidos o principal perigo. Esse não é o sentimento dos governos, mas uma consciência geralmente difusa na população, como posso testemunhar no caso da América Latina. Ao que me parece, o Sul capta melhor do que o Ocidente e a Europa infame o que está em jogo na guerra.
No entanto, se abandonarmos o ponto de vista das relações internacionais e adotarmos o ponto de vista de classe, os imperialismos do Norte, do Sul e do Leste se assemelham, pois todos exploram mulheres, operários, imigrantes e colonizados, reprimem as minorias dentro de seus Estados e se apropriam de recursos humanos e materiais fora deles. São governados por oligarquias mafiosas e não apenas no Leste (na Itália não se vota há anos porque as oligarquias financeiras ocuparam o Estado, na França elas se organizaram melhor e conseguiram eleger um presidente da República banqueiro), destruíram o pouco de democracia existente, que não era uma concessão do poder já que foi conquistada à força pelas lutas, como o sufrágio universal.
Eliminado o conflito, a democracia desapareceu porque ela não é de modo algum uma criatura do capitalismo. Como sempre, os mais hipócritas são os ocidentais que, para exportar seu modelo, não hesitaram em demoli-lo dentro de seus próprios países. O resultado é o fascismo, o racismo e o sexismo internos, conseguindo fazer com que Donald Trump, que já está pronto para se vingar (ou alguém por ele), chegue à Casa Branca, ao passo que na França, pátria dos direitos humanos, a extrema direita obteve 42% dos votos na última eleição presidencial.
A Ucrânia não é em nada diferente dos outros Estados do antigo Pacto de Varsóvia, como Hungria, Polônia etc.: governo institucional de direita (com componentes fascistas), à sombra das oligarquias, políticas neoliberais, repressão da “esquerda”, homofobia, sexismo, privatização das terras agrícolas, as riquezas mais importantes do país vendidas a multinacionais agroalimentares e legislação contra o trabalho. Tudo isso sob o controle e direção da OTAN, dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Muito atento às lutas de liberação nacional, Lênin dizia que é preciso defender o direito à autodeterminação das nações e minorias nacionais mesmo sendo governadas pela direita, exceto no caso de se tornarem instrumento dos imperialismos.
Mas quais classes estão em jogo? As classes que dirigem os imperialismos operaram uma integração estratégica progressiva do capital e do Estado. Em vez de pensar o Estado e o capital como duas entidades separadas, este livro utiliza o conceito de máquina bicéfala Estado-capital. Juntos constituem um dispositivo que produz, “governa”, faz guerra, mesmo que com tensões internas, quando a potência soberana e o lucro não coincidem. Integram-se progressivamente, mas sem nunca se identificarem. Para analisar o funcionamento desses imperialismos e de suas classes dirigentes, é necessário voltar (o 5º capítulo será dedicado ao tema) à definição do capital e do Estado e à relação entre ambos, a qual foi caricaturada pelos discursos sobre a globalização: supremacia do capital sobre o Estado, transposição das fronteiras, superação do imperialismo, crise da soberania, automatismos das finanças.
Apesar de todos terem adotado o capitalismo, a gestão da relação política/economia, Estado/capital é diferente em cada país. Os objetivos e os meios empregados para atingi-los também não são os mesmos. Estamos lidando, portanto, com uma multiplicidade de centros de poder político-econômico que, com o agravamento das crises e catástrofes ecológicas, sanitárias e econômicas desencadeadas pelas políticas neoliberais, lutam há um séculopara se apropriar de mercados e de recursos materiais e humanos, a fim de impor as próprias regras e a própria moeda.
Em suma, ainda temos de lidar com os imperialismos, que estão se confrontando com armas, com a economia, com a comunicação, com a logística e com a cultura, portanto, com a guerra “total”. No entanto, o conflito de 1914-18 já era total, aliás, é ele que constitui até hoje a matriz do que está acontecendo (análise desenvolvida no 2º capítulo).
O grande problema dos oprimidos é que o abandono da revolução e da guerra, que estava no centro do debate político do século XX, foi acompanhado de uma renúncia ao conceito de classe, questão capital que não pode ser abordada nesse livro (remeto ao meu livro O intolerável do presente, a urgência da revolução). O que podemos dizer é que as classes, além de capitalistas e operários, compreendem também homens e mulheres, brancos e racializados. Esses dualismos que funcionam nos focos das lutas e das organizações são distintos e, portanto, os pontos de vista se diferenciam, também sobre a guerra.
Os movimentos feministas estão muito mais interessados nas violências, porém, se as guerras são sem dúvida violentas, os dois conceitos não coincidem. A violência sexual, racial e classista deve ser compreendida e politizada como individualização da guerra de conquista. O debate que cresce dentro do feminismo sobre as “violências” poderá abrir um discurso acerca da guerra que certas feministas já problematizaram no que diz respeito à guerra de conquista e sujeição (Wittig, Colette Guillaumin e todo o feminismo materialista, Silvia Federici, Verónica Gago). No centro da guerra estão certamente as pulsões masculinas, porém, se isso é verdadeiro desde a guerra de Troia até a guerra da Ucrânia, logo se trata de uma única e mesma guerra, correndo o risco de perder, assim, a especificidade e a razão das guerras na época dos imperialismos e de sua monstruosa capacidade de destruição.
A teoria e a política ecológica não consideram o laço estreito que une as guerras totais à catástrofe climática e ambiental (no 2º capítulo é abordada a relação de identidade e reversibilidade entre produção e destruição inaugurada pela Primeira Guerra Mundial).
O movimento operário, que tirando os sindicatos praticamente não sobreviveu à derrota histórica sofrida entre os anos 60 e 70, funciona como uma instituição completamente integrada à máquina Estado-capital.
Essa situação em que a iniciativa está nas mãos do inimigo, em que movimentos políticos estão em plena reconstrução depois do ciclo de lutas de 2011, não podia mais gerar um grande debate sobre a guerra, o pacifismo, o rearmamento e a revolução tal como tinha se desenvolvido inicialmente e durante a Grande Guerra. Um ponto de vista de classe significativo parece ter grande dificuldade para emergir.
Ser a favor do fim da guerra não quer dizer ser pacifista: na história dos oprimidos, nada nunca foi conquistado com a paz. A paz não é algo óbvio, deve ser questionada. Que paz se quer? Aquela que antecedeu a guerra e a causou? A paz dos últimos cinquenta anos de contrarrevolução, que foi um massacre das conquistas obtidas por um século de lutas no Norte e a continuação das guerras para exportar a democracia ocidental no Sul (na realidade, guerra de rapina, de apropriação, de extração)? Uma paz que se parecia com aquela que se instaurou depois da Primeira Guerra Mundial e que a única coisa que fez foi preparar a Segunda?
Os revolucionários tinham uma fórmula que deveria nos fazer refletir em sua simplicidade: “A guerra é a continuação da política de paz e a paz é a continuação das políticas de guerra”. Traduzindo: querer a paz sem abolir o capitalismo é um absurdo ou uma ingenuidade, pois o capitalismo não elimina a guerra, mas a intensifica como nenhum outro sistema econômico e político nunca o fez, propagando-a em toda a sociedade.
Na verdade, os próprios conceitos de guerra e de paz são problemáticos em sua oposição: depois da Primeira Guerra Mundial, essa separação não tem mais muito sentido porque “o que é novo é o estado intermediário entre guerra e paz”. A afirmação “temos a paz quando não há guerra” só é verdadeira no caso da guerra militar, mas a “passagem à guerra total consiste precisamente no fato de que os setores extra-militares da atividade humana (a economia, a propaganda, as energias psíquicas e morais dos não combatentes) são envolvidos na luta contra o inimigo”. De qualquer modo, “lutar contra os efeitos (a guerra), deixando subsistir as causas (o capitalismo)”, era considerado pelos revolucionários como um “trabalho infrutífero”, e nós estamos com eles.
O risco de a guerra continuar existe porque nem os russos nem os americanos podem perder. Mas mesmo se assinarem a “paz”, viveremos dentro de um neoliberalismo ainda mais “autoritário”, gerido por oligarquias ainda mais predatórias, apoiado por forças fascistas, racistas e sexistas que irão preparar a próxima guerra contra a China, tal como demonstra a louca corrida rearmamentista.
Podemos dizer o mesmo da reivindicação pacifista de desarmamento: a indústria bélica e o militarismo são elementos constitutivos do capitalismo. Estado, capital e militarismo constituem um círculo virtuoso: o militarismo favorece desde sempre o desenvolvimento do capital e do Estado, e estes últimos financiam, por sua vez, o desenvolvimento do militarismo.
Depois da Primeira Guerra Mundial, a indústria bélica constitui um investimento imprescindível para a acumulação. Tem a mesma função de estímulo que os investimentos produtivos (keynesianismo de guerra), absorvendo o aumento da produção de modo que ela não vá para o “consumo”. Nesse sentido, a indústria bélica é um regulador do ciclo econômico, mas sobretudo “do ciclo político”.
A economia de guerra em que entramos aumentará ainda mais a parte de riqueza produzida que irá para o armamento e reduzirá posteriormente o consumo. No Sul, já não será apenas de uma contração do poder aquisitivo, mas de fome e de explosão da dívida para muitos desses países, falta para outros, miséria para todos os oprimidos, enrijecimento das hierarquias (sexuais, raciais, de classe), fechamento de todo espaço político.
Aqui também vale a máxima revolucionária segundo a qual “lutar contra os efeitos (a indústria bélica e o militarismo), deixando subsistir as causas (o capitalismo)” é errar o alvo.
Durante a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o ponto de vista revolucionário de “transformar a guerra imperialista em guerra civil revolucionária” era absolutamente minoritário. A maioria do movimento operário tinha aderido às guerras nacionais, votando os créditos de guerra e exaltando a defesa da pátria. Dessa ruptura o movimento operário europeu não irá mais se reerguer, apesar da palavra de ordem de politização da guerra, pois é disso que se trata quando se fala de transformá-la, de que ela levará à primeira revolução vitoriosa na história dos oprimidos.
Não se trata de uma repetição que copia esse formidável saber estratégico, mas de usá-lo como postura, ponto de vista, atualizando-o, reconfigurando-o, repensando seus conteúdos, até porque é o único que temos sobre a guerra. Aqui só posso levantar questões às quais responderemos coletivamente se formos capazes disso: o que quer dizer politizar a guerra hoje? No século XX, ela era considerada como um terreno privilegiado do conflito de classe para pôr um fim nas relações de poder e hierarquias de exploração.
Não podemos pensar em transformar a guerra como fizeram na Rússia, na China e no Vietnã, mas deveremos dar um novo conteúdo e uma nova vida ao verbo transformar. “Transformar” a guerra ainda me parece uma tarefa política urgente. Para alcançar essa transformação, temos de reconquistar o que perdemos, o princípio estratégico (o 4º capítulo será dedicado ao tema) a fim de interpretar a guerra de conquista das classes, o fato de elas serem colocadas para trabalhar e a conclusão inevitável das relações de poder inconciliáveis dentro da guerra imperialista. Não é tanto da potência produtiva do proletariado que temos necessidade mas sim do princípio estratégico capaz de interpretar a luta de classes, a guerra civil e a guerra imperialista, de nomear o inimigo e abatê-lo.
Lênin dizia, talvez sabiamente, que devemos “procurar impedir a guerra de todas as formas”, mas apenas se conseguirmos “derrubar” os senhores da morte. Se não conseguirmos isso, vamos continuar sendo esmagados pela destruição geral operada pela guerra.
Maurizio Lazzarato. O que a guerra da Ucrânia pode nos ensinar. Tradução: Felipe Shimabukuro. São Paulo, n-1edições.
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O que a guerra da Ucrânia pode nos ensinar. Artigo de Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU