Extrema-direita cresce na Amazônia a partir de investimentos de grupos religiosos. Entrevista especial com Márcia Maria de Oliveira

Adesão de homens e jovens a grupos misóginos e machistas, que atacam as mulheres, é crescente no Norte do país, diz socióloga

Foto: Tuane Fernandes | Greenpeace

31 Julho 2025

Rondônia, Roraima e Amapá são os três estados que registraram os índices mais elevados de feminicídio e estupros no país, segundo relatório do Mapa da Segurança Pública 2025, lançado recentemente. De acordo com a pesquisadora Márcia Maria de Oliveira, casos de feminicídios e estupros coletivos são registrados nos garimpos, onde o Estado é ausente. Além da violência cometida contra as mulheres, que tem se acentuado na última década, festas organizadas nos garimpos anunciam “leilões em que o prêmio é uma menina”, relata a socióloga na entrevista a seguir concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Outro elemento que chama atenção nesses estados, informa a entrevistada, é o crescimento da extrema-direita associado à religião. “É nesses três estados que o pentecostalismo mais conservador vem crescendo na região e há uma reconfiguração no campo da religião como um instrumento de dominação das mulheres”, afirma. As mulheres de extrema-direita, menciona, “se tornaram o modelo de participação política” na Amazônia. “Michelle Bolsonaro visita esses estados e reúne multidões”, relata.

Na região, acrescenta, há grandes investimentos na expansão da extrema-direita a partir de grupos religiosos. “Não são apenas questões missionárias de levar o Evangelho. São questões políticas, que vão se ampliando com o passar dos anos. Há uma influência muito forte do proselitismo norte-americano. (…) A crítica sociológica que apresentamos a esse modelo é justamente esta: esta não é uma religião que liberta; é uma religião que está a serviço da dominação ou da reprodução da dominação”.

Márcia Maria de Oliveira comenta também as transformações socioculturais que ocorrem na Amazônia, a correlação entre violência contra as mulheres e o garimpo, a xenofobia institucional contra os migrantes e a exploração deles por meio do tráfico humano.

Márcia Maria de Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)

Márcia Maria de Oliveira é doutora e mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mestre em Gênero, Identidade e Cidadania pela Universidad de Huelva, na Espanha, e licenciada em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É professora de Ciências Sociais na Universidade Federal de Roraima (UFRR). É pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (GEMA/UFAM) e do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRON) ligado à Universidade Federal de Rondônia (UNIR). É assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM/CNBB), do Centro Nacional de Fé e Política Dom Hélder Câmara e do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM).

Confira a entrevista.

IHU – Segundo o relatório do Mapa da Segurança Pública 2025, aumentou o número de casos de feminicídio e estupros no Brasil no último ano. Os estados de Rondônia, Roraima e Amapá estão entre os que registram os índices mais elevados. Chama atenção que os três são estados de fronteira. Isso, por si só, é um fator relevante que favorece a violência contra as mulheres? Qual a situação de violência nas regiões de fronteira?

Márcia Maria de Oliveira – Vários elementos convergem para o aumento da violência. A fronteira, por si, é uma região tensa por causa da circulação permanente de pessoas. Historicamente, a fronteira no Brasil é vista como um lugar de refúgio no sentido de ser espaço para se esconder de crimes e condenações. Mas um fator comum nesses três estados [Rondônia, Roraima e Amapá] é o crescimento de uma extrema-direita radical, no sentido de voltar atrás em relação a diversos ganhos sociais e nas relações de gênero, o que configura uma extrema-direita reacionária que regride no sentido do reconhecimento dos direitos das mulheres.

Outro elemento comum nesses três estados é a presença do extrativismo predador, madeireiro e mineral. Na exploração ilegal desses recursos naturais se estabelece um Estado sem lei. Ou seja, se estabelece um modo de exploração totalmente à margem da lei e se opera nesses territórios à margem da lei.

Um elemento que explica o aumento dos feminicídios nessas regiões é a impunidade porque a pessoa comete o assassinato e “cai no mato”, como costumamos dizer aqui. Isto é, o agressor ou assassino não é nem sequer denunciado porque, muitas vezes, nem mesmo é identificado nos processos de denúncia. Isso encoraja outros a fazerem a mesma coisa e gera reincidência.

IHU – Qual é o discurso da extrema-direita em relação às mulheres nesses estados e como ele repercute no imaginário público, inclusive entre as mulheres?

Márcia Maria de Oliveira – As nossas pesquisas têm indicado questões que nos surpreendem. Por essa ser uma região de fronteira, surpreende, por exemplo, o crescimento da adesão de homens – e chama atenção de modo especial os jovens – a grupos misóginos e machistas, formados só por homens que atacam as mulheres. São grupos que se organizam a partir de uma orientação política em que a mulher é vista como uma ameaça ou um ser inferior. Essa é uma das dimensões da extrema-direita que define o lugar da mulher como um lugar de retrocesso. Em contextos em que nós, mulheres, avançamos muito, como na educação, no trabalho, na economia e em questões sociais, de repente tem toda uma estratégia de dominação que aponta retrocessos no avanço das mulheres. Isso vai gerando conflitos intensos. Esses homens não estão preparados para o debate e para dialogar com as mulheres, e aí a violência aparece como uma das estratégias de contenção ou dominação delas. Essa é uma explicação mais sociológica do que estamos observando nessas regiões.

Religião e extrema-direita

Outro elemento relacionado ao crescimento da extrema-direita é a religião. É nesses três estados que o pentecostalismo mais conservador vem crescendo na região e há uma reconfiguração no campo religioso como um instrumento de dominação das mulheres. Aí se projeta a figura da mulher perfeita: bela, recatada e do lar, aquela mulher que está aí para defender o marido. Nesse sentido, o casamento aparece como uma imposição para a mulher existir na sociedade.

A mulher tem a obrigação de defender e projetar politicamente seu marido e a responsabilidade de desobrigá-lo das funções domésticas para ele atuar no âmbito público. Isso faz com que a mulher fique cada vez mais confinada no interior do doméstico, e a participação dela no âmbito social é mínima e muito controlada: é o âmbito da igreja, e mesmo na igreja ela tem espaços específicos para reuniões de mulheres. Não são espaços onde as mulheres têm liberdade de transitar em outras instâncias de debate e reflexão; elas continuam confinadas a espaços restritos e concatenados com aquilo que é o modus operandi da religião. É uma mulher que assume outra postura de lutas sociais, a qual diverge da sua condição social. Não é uma mulher que vai para a luta para mudar as condições de trabalho, desemprego ou desigualdades sociais e migrações.

O discurso muito presente nos meios evangélicos é o de que a mulher precisa projetar seu marido no campo público. Isso tem impacto na própria configuração da paisagem social. Nos estados da Amazônia, há fortemente, sobretudo nos municípios do interior, nichos de moda específicos para mulheres evangélicas, configurando o estereótipo inclusive na vestimenta feminina. São mulheres que, quando se manifestam, reproduzem os estereótipos impostos pela extrema-direita e a religião, que são discursos vazios contra os migrantes, contra as minorias LGBTQIAP+ e as mulheres no mundo do trabalho.

IHU – Esse comportamento tem relação com o movimento bolsonarista e o imaginário em torno da atuação de Michelle Bolsonaro, que atua em defesa do marido e se projeta politicamente como a nova líder da extrema-direita? Ou esse cenário descrito é anterior ao bolsonarismo e tem o pentecostalismo como base de fundo, associado a outros fatores que já estavam sendo gestados na sociedade?

Márcia Maria de Oliveira – Michelle Bolsonaro visita esses estados e reúne multidões. É impressionante. Há um mês e meio, Damares Alves veio a Boa Vista, com a CPI da questão migratória e da desintrusão na terra indígena, e ela parou a cidade. Você não tem ideia da quantidade de mulheres que se reuniram para a coletiva de imprensa dela, que foi num local próximo à universidade. A sala de aula ficou esvaziada. O assunto era a Damares. Ou seja, as mulheres de extrema-direita têm uma ênfase muito forte nas mulheres de toda a Amazônia e se tornaram o modelo de participação política. Aquela participação política que não é para se projetar no âmbito do político ou, quando se projeta, é porque o marido não pode [está impedido].

Em 2015, Suely Campos se candidatou a governadora [de Roraima] no apagar das luzes porque o marido estava impedido pela justiça eleitoral. Mas, na prática, quem foi o governador foi o Neudo Campos. Em outras palavras, é aquela mulher que, no campo político, se projeta quando o marido não pode. O discurso dela era o de salvar o marido, de inocentar o marido das calúnias e injustiças a ele atribuídas. É uma mulher que perde grande parte do seu tempo para defender um corrupto, uma pessoa que, pela justiça, já foi julgada e condenada, mas, no imaginário da mulher, ele sofre uma grande injustiça. Essa é a narrativa que a extrema-direita tem lançado em torno da figura do Bolsonaro nos últimos acontecimentos.

Por parte da sociedade nessa região há uma comoção em torno das injustiças cometidas contra esses homens que estão aí “apenas querendo contribuir com a sociedade”, mas a sociedade os impede. As mulheres reproduzem muito esse discurso e acabam replicando, no seu fazer político, essa ação política que vem se projetando na sociedade. Em geral, elas não se projetam como mulheres que vão causar mudanças a partir da sua atuação política, mas apresentam uma política comedida e ligada a interesses particulares e pessoais, sem pensar o bem público.

IHU – Esse perfil de atuação e narrativa também se reproduz em grupos de mulheres católicas?

Márcia Maria de Oliveira – Sim. Tem uma ala católica conservadora que é mais extremista do que alguns grupos evangélicos. De modo especial, aqui tem uma retomada muito forte no âmbito da Renovação Carismática, de alguns movimentos vinculados ao Opus Dei, à Tradição, Família e Propriedade (TFP). Ou seja, no âmbito da Igreja Católica há posturas muito conservadoras, não só de leigos e leigas, mas de padres que não só legitimam isso, mas também incentivam.

IHU – A que atribui a adesão a essa postura na Amazônia, que enfrenta tantas dificuldades socioambientais, em que a política poderia ser um canal para abordar temas relativos ao bem comum e público?

Márcia Maria de Oliveira – Esse é um processo histórico que vem de longa data. Estamos percebendo a estratégia de crescimento da extrema-direita a partir dos grupos religiosos na região como um grande investimento. Não são apenas questões missionárias de levar o Evangelho. São questões políticas, que vão se ampliando com o passar dos anos. As investidas são muito planejadas e organizadas. Há uma influência forte do proselitismo norte-americano. Explicamos isso com a chegada dos migrantes nas várias regiões da Amazônia.

Muito fortemente os haitianos trouxeram para a Amazônia o crescimento da Igreja Batista da Filadélfia, que é aquela dos louvores e contenções sociais na região do Sul dos EUA. A partir de 2015 e 2016, com a chegada dos venezuelanos, temos a diáspora de religiões mais tradicionais nessa região, novamente vinculadas a denominações que são patrocinadas por igrejas que têm suas matrizes ideológicas nos EUA. Há um investimento econômico bastante pesado.

Projeção religiosa e política

Na maioria dos estados amazônicos, não existe a projeção arquitetônica das igrejas católicas. Basicamente, temos a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, uma igreja relativamente pequena para o tamanho da mobilidade que ela representa na religiosidade popular, e, em Manaus, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, que é uma igrejinha menor que a Igreja da Sé, em São Paulo. Tirando isso, as igrejas são muito simples, considerando o tamanho das cidades. Mas, ultimamente, templos da Igreja Universal ocupam uma quadra inteira. São templos modernos, em detalhes dourados – uma coisa de projeção que visivelmente apresenta uma imposição no campo da regulação religiosa.

Em Roraima, por exemplo, nenhum dos municípios tem igrejas católicas sob aquele modelo das cidades antigas do interior do Brasil, em que as cidades surgem em seu entorno. Em Roraima, as principais igrejas não são católicas; são evangélicas. Na arquitetura das cidades, o centro surge em torno de uma igreja evangélica – o que já é uma mudança histórica interessante. Vejo isso se reproduzindo em todos os estados da Amazônia. Sem falar na quantidade de igrejas; temos uma projeção de mais igrejas do que escolas, muito mais igrejas que farmácias e muito mais igrejas do que centros de atendimento à saúde nos municípios amazônicos. A projeção da religião tem um papel na projeção da extrema-direita muito forte.

Fico imaginando que se fossem igrejas progressistas, de organizar os trabalhadores e ir para a luta, seria fantástico. Mas não. São posicionamentos totalmente contrários a isso. São posicionamentos que implicam em contenção da projeção social da classe trabalhadora, contenção da projeção das mulheres e dos avanços e direitos que historicamente fomos conquistando. A crítica sociológica que apresentamos a esse modelo é justamente este: esta não é uma religião que liberta; é uma religião que está a serviço da dominação ou reprodução da dominação. Isso tem reflexo nas relações sociais e explica a violência contra as mulheres porque toda mulher que ousa questionar esse modelo de sociedade é considerada subversiva ou mulher que fala demais, ou seja, foge daquele modelo que projetado para a sociedade.

IHU – Esse modelo está influenciando as novas gerações? O que percebe na região?

Márcia Maria de Oliveira – Falo do meu lugar de fala, que é a sala de aula. Me assusta ouvir esse tipo de reprodução dos jovens, meninos de 19 e 20 anos, que estão entrando na universidade e reproduzindo, com muita convicção, esse discurso. Recentemente em uma sala de aula, tivemos uma atividade sobre masculinidades, refletindo sobre homens tóxicos. Um jovem de 19 anos chamou atenção para os dados de homens que morrem em acidentes de trânsito, argumentando que o percentual era maior do que os de feminicídio e, portanto, não entendia por que tanta preocupação com o feminicídio. Esse discurso está muito presente no imaginário social e por isso os meninos trazem esse posicionamento para a sala de aula, tentando justificar uma postura contra o debate justamente com discursos que são reproduzidos no campo das narrativas religiosas.

IHU – Fala-se muito do impacto socioambiental do garimpo ilegal e dos conflitos territoriais gerados por causa do avanço do garimpo na Amazônia, mas não se fala muito da violência de gênero que ocorre no garimpo. Qual é a relação entre garimpo ilegal e violência de gênero? Como tem observado esse fenômeno na região?

Márcia Maria de Oliveira – Historicamente, as mulheres também estão nos garimpos. A questão é que, historicamente, o garimpo projetou a presença da mulher reduzida à prostituição. A mulher era vista como entretenimento para divertir os homens que estavam no garimpo. Trata-se quase de uma legitimação da prostituição no garimpo.

O que tem mudado muito – e os estudos comparativos mostram isso – é que os aspectos éticos e morais do garimpo, que nos anos 1970 eram muito bem definidos, mudaram. Por exemplo, a prostituição era vista como um direito, uma parte do cotidiano do garimpo. Mas a abordagem de estudos mais antigos nos mostra que a prostituição estava reservada ao divertimento noturno, concentrada nos fins de semana. Esse era o convencional que perpassava os estudos da década de 1970 até os anos 2000.

De 2000 para cá, isso começa a mudar e ainda mais drasticamente de 2015 para cá. Há um crescimento assustador da presença de mulheres para prostituição nos garimpos. Antigamente, tinha no máximo 20 mulheres atuando na prostituição. Hoje, tem uma multidão de mulheres. Mudou também o perfil: as mulheres das décadas anteriores eram adultas e, às vezes, permaneciam no mesmo garimpo por dez ou vinte anos. Hoje, há uma demanda obcecada por meninas jovens, menores de idade, e o garimpo se tornou diuturno. O que nos faz entender que, ao mesmo tempo que se tem o operário da lama, que está no meio do garimpo, tem grupos que coordenam o garimpo e que não estão na lama do garimpo, mas ficam no controle das atividades e demandam um serviço sexual a semana inteira e durante o dia.

As categorias de controle do garimpo também são novas nas novas conjunturas, onde também está presente o crime organizado. O que vemos nas observações de campo e nas narrativas que nos chegam é que o crime organizado está à frente no comando de muitas atividades de garimpo em toda a Amazônia, não só em Roraima, justamente porque o garimpo também passa a ser caminho para os caminhos e descaminhos da droga. É mais fácil concentrar os caminhos que vêm das fronteiras, e abrir as fronteiras facilita a entrada de drogas advindas de outros países ou a saída de drogas que vão do Brasil para outros países. As áreas de garimpo com pistas de pouso são estratégicas nesse controle.

Outro elemento a considerar são os estupros coletivos. Trata-se de um modelo de prostituição que não é apenas a comercialização de um serviço sexual, mas também a comercialização da violência sexual, o que nos mostra que aquele imaginário de garimpo apresentado nas décadas de 1970 mudou totalmente. Não existem mais condutas de ética. Nos garimpos, os garimpeiros acentuaram muito a ausência do Estado. Eles dizem que o sistema deles é bruto. Eles repetem isso o tempo inteiro. O que tem por trás dessa afirmativa? Não tem a presença do Estado e eles definem as relações sociais a partir do que acham ser correto. Aí se tem uma prática da prostituição baseada em muita violência.

O serviço sexual era, até certo ponto, acordado e havia uma relação de respeito com as mulheres que eram consideradas prostitutas de profissão. Agora, meninas muito jovens são submetidas a todo tipo de violências. Inclusive, há muitos feminicídios nos garimpos, ligados a casos de impunidade. Como o Estado não está no garimpo, no máximo chega-se à informação do feminicídio, mas não há punição porque não há denúncia nem investigação. Recentemente foi registrado um caso de feminicídio porque a menina tentou acertar as contas com o garimpeiro, que não a pagava. Por conta disso, ele a matou e foi embora para outro garimpo. Não há, entre eles, sistemas de punição por tentativas de estupro ou violência, como a expulsão do garimpeiro do garimpo, como havia anos atrás.

Além disso, anunciam nos garimpos leilões em que o prêmio é uma menina que está chegando ao local. É vendida a imagem de uma menina virgem, de 14 ou 15 anos. Festas enormes são mobilizadas em torno disso, com patrocínio de empresas, como a Cataratas, do Rodrigo Cataratas, que patrocinou esse tipo de festa em Roraima por sete, oito anos e segue patrocinando-as na Guiana, porque ele simplesmente é foragido da Justiça – foi julgado e condenado por crimes vinculados ao garimpo. Ele simplesmente transferiu sua empresa para o lado da Guiana e está atuando lá. Continua usando as redes sociais para projetar o garimpo e sua própria figura política no estado, achando que em algum momento será liberado de todas as condenações. Isto é muito provável porque tem muita gente no campo político trabalhando para isso.

Ele continua patrocinando essas festas sem nenhum pudor. Além do entretenimento, com muita bebida e dança, também faz parte da festa trazer meninas e mulheres, muitas recrutadas em comunidades indígenas, que são levadas para essas festas e depois devolvidas para suas comunidades num esquema de aliciamento permanente. Na fronteira com o rio Mau, que faz divisa com a Guiana, há um translado permanente de meninas que atravessam o rio, vão para o lado da Guiana, para festas produzidas por garimpeiros brasileiros que fugiram da região da desintrusão e simplesmente transportaram os garimpos para a Guiana. Não conseguimos perceber uma intervenção direta do Estado nessas regiões, até porque tem muitos políticos envolvidos no patrocínio do garimpo nessas regiões da Amazônia e o enfrentamento a isso é muito complexo.

IHU – Roraima é o estado que tem o maior percentual de estrangeiros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Qual a atual situação deles no estado? Quais são as complexidades envolvidas no processo migratório?

Márcia Maria de Oliveira – Essa é uma região de ingresso e passagem. Segundo as análises que estamos acompanhando, somente 10% de migrantes ficam na região. O interesse principal deles é a documentação. Nos últimos cinco anos ingressaram migrantes que estão com redes familiares, migrantes que adentram com pedido de residência ou reunião familiar. Isso aparece nos dados oficiais do Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGRA). Pouca gente fica na região porque a região não oferece muitas condições de trabalho. Por outro lado, as pessoas que se fixam na região são as que querem permanecer na proximidade dos países, para poder visitar os parentes no outro país.

Por estarmos em região de fronteira, já temos, historicamente, a presença dos migrantes. Mas, nesse momento, a situação é um pouco mais intensificada. De todo modo, o casamento entre brasileiros e venezuelanos, brasileiros e guianenses é muito recorrente na região. O que fez crescer, recentemente, a questão migratória é o reflexo daquilo que está acontecendo no Norte do planeta: as restrições migratórias. As restrições migratórias nos EUA e Canadá fazem com que os migrantes não tenham alternativas. Quando perguntamos por que eles migram para o Brasil, dizem que é porque não conseguiram ir para outro lugar. Muito dificilmente se encontra um migrante que diz que tinha um projeto migratório para o Brasil.

Pesquiso a migração venezuelana desde 2015 na fronteira e nunca encontrei um migrante que tinha projeto migratório de vir para o Brasil. O Brasil não aparece como alternativa migratória, mas como falta de alternativa; não tem mais para onde ir, eles vêm para o Brasil. Isso dificulta muito as relações de pertencimento, no sentido de que o migrante se sinta incluído na sociedade, porque está no país numa condição transitória até encontrar outro lugar para ir ou até poder retornar para a Venezuela.

No imaginário da maioria dos migrantes, eles acham que a Venezuela vai entrar em outro rumo e eles poderão retornar em pouco tempo. Isso explica o ódio que eles têm da permanência do Maduro no governo. O discurso anti-Maduro que os migrantes trazem é muito forte. É como se Maduro fosse o responsável por toda a situação deste país, inclusive a migração e, ao sair do poder, tudo irá se resolver. Ou seja, projetam-se, numa única pessoa, todos os problemas sociais, econômicos e políticos.

IHU – Apesar das relações recorrentes entre brasileiros, venezuelano e guianenses, em 2018 a senhora chamava atenção para o crescimento da onda de xenofobia praticada contra os imigrantes venezuelanos na Amazônia. Como está a situação hoje? O que está por trás do fomento à xenofobia contra os migrantes na região? Os discursos religiosos e da extrema-direita também favorecem esse tipo de comportamento?

Márcia Maria de Oliveira – O discurso xenófobo está muito vinculado às narrativas institucionais. Por exemplo, na TV aberta tem umas trinta inclusões na programação diária de pelo menos uma emissora, a Rede Globo, de discursos do [deputado federal pelo estado de Roraima] Antonio Carlos Nicoletti, sobre projetos que ele conseguiu aprovar na Câmara, de repatriação dos estrangeiros – ele não fala migrantes – como criminosos. Ele está por aqui, em Roraima, e comprou essa briga como se ele fosse o salvador da pátria para livrar os brasileiros dos estrangeiros. Um dos projetos dele é a proposta de construir um grande presídio para venezuelanos. Esses discursos são reproduzidos pelo Nicoletti, pelo governador Antonio Denarium e 95% das Câmaras estadual e municipal.

Há discursos mais sutis, como o da Teresa Surita, que, na última eleição, dizia: “votem em mim porque eu sou da terra”, ou seja, “sou da terra e defendo o povo da terra”. Em nenhum momento ela fala contra os migrantes, mas subentende-se a xenofobia velada. Nos outros casos há uma xenofobia declarada, dizendo que, se eleitos, livrarão o estado dos estrangeiros criminosos que estão na região para bagunçar a sociedade. Começam narrativas falseadas. Por exemplo, dizem que aumentou a violência depois da chegada dos haitianos. Quando vamos verificar os números, isso não se confirma.

Atualmente, o sistema penitenciário de Roraima tem 136 presos venezuelanos. Conferi isso semanas atrás com a coordenadora estadual do sistema penal. Num universo de quase cinco mil presos, tem 136 venezuelanos. Eles estão presos ou por tráfico de drogas ou por furtos ou reincidência de furtos, que são crimes primários. Em outros estados, como Rondônia e Acre, o próprio governador e outros políticos reproduzem o mesmo discurso. No Amazonas, nem se fala.

Há um discurso muito forte contra os migrantes, mas opera por trás disso uma cortina de fumaça. A estratégia da xenofobia é uma forma de tirar o foco de questões mais graves que acontecem no campo político. É como se questões mais graves, como o aumento do preço das passagens em Manaus, não precisassem vir à tona por que tem o problema dos migrantes, que é mais grave. É uma forma de deslocar a própria compreensão da sociedade de temas da migração e outros temas políticos que precisariam de atenção. Isso é mais forte nas instituições políticas e, em segundo lugar, nas instituições religiosas.

Poucas são as igrejas que assumem a acolhida aos migrantes como uma missão sua. As demais assumem o discurso do rechaço. O migrante passa a ser bem-vindo quando entra na religião e se converte. Aí ele não é mais considerado um migrante, mas um irmão. Aí tem um problema grave da imposição cultural da negação da língua, dos sistemas culturais, para eles se aculturarem a outro modo de vida. É o famoso discurso da integração, que é capcioso na nossa região, uma vez que esse discurso do Marechal Rondon nos anos 1970 significou a negação do território e das identidades indígenas.

IHU – Qual é a situação e o perfil das mulheres que chegam nas zonas de fronteira da região Norte do país? Elas são maioria em relação aos homens? Que situações de fragilidade identifica?

Márcia Maria de Oliveira – Num primeiro momento, tinha o movimento mais tradicional da migração da família toda. A partir de 2019, os dados do SISMIGRA mostram mudanças: migração de mulheres mãe solo, que migram sozinhas, mulheres que migram com companheiros ou maridos e são abandonadas porque terminam o relacionamento no processo migratório. Nos processos de interiorização, muitas mulheres relatam que os maridos vão para um estado e somem. Ou seja, há muitas fragmentações de famílias por causa das interiorizações. Isso aparece nas narrativas.

Tem um novo perfil de mulheres em situação de vulnerabilidade porque são mulheres que já estão em situação de abandono na Venezuela e migram, o que acentua ainda mais a vulnerabilidade. Os dados também apontam um relativo crescimento da presença das mulheres, a ponto de no último levantamento do SISMIGRA aparecer 51% de mulheres contra 49% dos homens. Quando analisamos os jovens que migram sozinhos, encontramos uma camada LGBTQIAP+ muito alta.

A violência contra a mulher não termina com a migração. O que vem ocorrendo são novos ciclos de violência porque são situações em que a mulher sai de uma situação de violência com o companheiro e entra em outra. Os migrantes trazem consigo o mesmo comportamento. Uma questão que percebemos nas narrativas é a violência contra as crianças. É assustador como os migrantes mudam o comportamento quando se deparam com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a legislação brasileira de proteção às crianças.

IHU – Você já declarou que uma das piores formas de violência contra as mulheres e de violação contra os direitos humanos é o tráfico humano. Segundo um estudo da REPAM-Brasil, entre 2022 e 2024 foram identificados 309 casos de tráfico humano na região. Qual é a dinâmica de operação do tráfico de pessoas na Amazônia? Que fatores favorecem esse tipo de prática na atualidade?

Márcia Maria de Oliveira – No geral, temos acompanhado a questão do tráfico vinculado à migração. Não podemos separar as duas questões. A pessoa traficada geralmente está em deslocamento interno ou internacional. Há um discurso de aliciamento: a pessoa está sem emprego, sem referências na sociedade e o aliciamento está muito atento à vulnerabilidade da pessoa em deslocamento. O segundo ponto preocupante é que para a economia é muito lucrativo explorar o trabalho do migrante, especialmente se ele for refugiado. Nessa dinâmica aparecem grupos que, na região, estão consolidados como especialistas em aliciar mão de obra migrante.

O segundo nível de exploração é a exploração do trabalhador migrante em situação irregular: não contente em explorar o trabalho mal pago, começa-se a fazer uma exploração do trabalho sem pagamento. Uma coisa é levar um migrante para o garimpo através de um aliciador, ou para atuar numa região de desmoronamento, em que o trabalhador é pago por diárias. Outra coisa é fazer um contrato verbal com o migrante e não o pagar. Isso ocorre todos os dias, juntamente com ameaças. O migrante prefere escapar do garimpo em vez de cobrar a dívida porque a possibilidade de ele ser assassinado pelo brasileiro é quase 50% maior.

A exploração da mão de obra do migrante em situação análoga à escravidão ou com elementos que vão configurar tráfico, como o discurso do engano, a ausência de pagamento e o endividamento, é a reprodução do aviamento: mantém-se a pessoa em situação de endividamento permanente, a ponto de que, quando ela vai cobrar os atrasos de pagamento, ela é informada que tem mais dívida a pagar do que acertos a realizar. Mesmo assim, muitas pessoas não se entendem em situação de tráfico porque não têm elementos suficientes, na sua reflexão, para entender que estão numa situação de tráfico humano. Isso se reproduz fortemente nos trabalhos das madeireiras, que a partir de 2016 foram amplamente liberadas para atuar em toda a Amazônia até 2023. Somente agora elas estão sendo fiscalizadas e fechadas novamente.

O PL da Devastação provavelmente vai encorajar as madeireiras que estão sendo fechadas e fiscalizadas a pedirem licenciamento novamente para a derrubada de madeira e comercialização. Em algumas madeireiras da região, não têm nenhum trabalhador contratado. Tem no máximo o gerente, e todos os demais não têm nenhum tipo de contrato. Ou seja, a contratação verbal pode, a qualquer momento, se materializar na condição do tráfico porque são contratos verbais em que o sujeito não tem nenhum tipo de garantia.

A situação das mulheres é mais complexa porque, além da exploração do trabalho, tem a exploração do corpo. A maioria das mulheres que morrem nos garimpos é migrante; são assassinadas por banalidades. Tem grupos que se especializam em explorar a prostituição via redes. Isso funciona assim, historicamente, na Amazônia toda. Tem mais de 70 redes na região, com grupos especializados em explorar o contrabando. Eles exploram o migrante desde o deslocamento e, depois, continuam explorando-o na condição de tráfico, justamente porque a viagem de contrabando gera dívidas e a pessoa vai sendo conduzida a trabalhar para pagar a dívida e nunca consegue pagá-la. Esse sistema de endividamento é um ponto central para entendermos que ali se configura uma situação de tráfico.

Também tem muitas interconexões demandas por garimpos que se mudaram para a Venezuela e para a Guiana por causa de um controle maior do governo Lula nos garimpos a partir de 2023. A situação de violência com as mulheres, que acontece no garimpo brasileiro, agora também acontece na Venezuela e na Guiana. Isso já aconteceu em outros momentos da história e vem se reproduzindo nesse momento novamente. Tem uma circulação imensa de mulheres em situação de tráfico no lado venezuelano, guianense e no Suriname. As pesquisas do último ano mostram a continuidade dessa modalidade. As mulheres são levadas para frentes de exploração do petróleo no lado da Guiana e do Suriname, para servirem na exploração sexual comercial e nas boates. Do lado da Guiana, o exercício da prostituição é proibido, mas a vinculação de mulheres para o serviço sexual nessas frentes econômicas tem sido permitida. É como se o governo fizesse vista grossa porque, afinal, é o boom da economia atualmente. Então, toleram isso porque, no fim contas, a economia está em primeiro lugar.

IHU – O Estado falha ou é conivente com os casos de violência na Amazônia? Vê alternativas de superação e de resistências dessas diversas realidades de violência?

Márcia Maria de Oliveira – Temos a nítida impressão de que há uma interrupção muito forte entre o que o governo nacional brasileiro tem proposto e o que acontece nos governos locais. Enquanto tem uma iniciativa do governo federal contra o garimpo, praticamente todos os governos da Amazônia o defendem. Enquanto há uma postura firme do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) na defesa das questões ambientais, os governos locais apoiam o agronegócio como se fosse a salvação da pátria. Há uma grande dicotomia entre o que são as políticas apresentadas pelo governo federal e o que acontece nas bases.

Vou dar um exemplo. Em toda a região, o enfrentamento ao tráfico humano foi interrompido em 2014-2015, mas não temos conseguido retomar o enfrentamento ao tráfico de pessoas a partir da permissão dos governos locais da Amazônia. Existe uma estratégia terrível de omitir os dados. Como isso é feito? Não legitimando nenhuma instituição vinculada ao Estado para falar em nome do Estado pelo tráfico de pessoas. É uma estratégia de desqualificar o tema e impedir que as políticas públicas federais cheguem às regiões locais.

É o que venho observando na desintrusão do garimpo na terra indígena yanomami. Tem toda uma operação envolvendo diferentes frentes da Polícia Federal, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), da Guarda Nacional, com toda uma dinâmica de enfrentamento ao garimpo, mas, localmente, prefeitos, vereadores, deputados e governadores fazem uma defesa incondicional do garimpo. Com isso, temos o encorajamento do retorno dos garimpeiros e a reconstituição dos espaços de garimpo. Não existem iniciativas dos governos locais para proibir os garimpos. Pelo contrário, existe uma omissão permissiva.

Para termos uma ideia: a operação da desintrusão destrói o aparato da garimpagem e as máquinas, mas, para que as máquinas não voltem a funcionar, seria preciso retirá-las do espaço, o que gera um custo posterior elevadíssimo por parte da operação. É como se a operação não terminasse com a destruição das máquinas. O que tem acontecido é que os empresários do garimpo começaram a contratar mecânicos nas cidades e levá-los para os locais onde as máquinas foram destruídas. Em três, quatro semanas, uma retroescavadeira que foi implodida com uma bomba está funcionando novamente porque os mecânicos soldam as peças e ressuscitam as máquinas.

Então, precisa haver um processo de retirada de todo esse material que foi sendo levado durante anos para as áreas de garimpo. A retirada desse maquinário levaria mais ou menos dez anos porque não é simples trazer uma retroescavadeira, que pesa toneladas, por picadas no meio da floresta. Teria que desmontar esse maquinário, fragmentá-lo, colocá-lo em balsas e trazê-los pelos rios. É um custo elevadíssimo e sei que o governo federal está num embate com o Tribunal de Contas da União (TCU), que está questionando os custos operacionais. A meu ver, se isso não for feito, as operações ficam quase sem resultado. Se não houver uma postura dos governos locais e estaduais para dizer basta ao garimpo, não vai funcionar.

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