22 Julho 2023
A desqualificação política do ex-presidente abre uma pequena oportunidade para recompor as forças conservadoras no Brasil que se inclinaram para posições ultra.
O artigo é de Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador hispânico brasileiro, autor dos livros Calle Amazonas (Altaïr), #24H (Dpr-Barcelona), Pasado Mañana (Arpa Editores) e Saudades de junho (Liquid Books), publicado por Revista Contexto, 08-07-2023.
"Fomos os primeiros a dizer que quanto mais complexa se torna uma civilização, mais a liberdade do indivíduo deve ser restringida." A frase, proferida no dia da cassação política de Jair Bolsonaro por Romeu Zema, governador do Estado de Minas Gerais, gerou polêmica. A esquerda brasileira ficou indignada com uma frase atribuída a Benito Mussolini. Romeu Zema, nome forte do Partido Novo, força política jovem de centro, sabia o que fazia. A nomeação velada para Mussolini, dirigida à ala mais radical do bolsonarismo, é um caso clássico da estratégia do apito para cachorros (“apito para cachorros”). Um apito/frase emitido em uma frequência mal captada por filhotes de neofascismo. Durante seu governo, Jair Bolsonaro usou repetidamente o apito de cachorro para conquistar seus seguidores mais radicais. A frase Brasil acima de tudo (diretamente inspirada no lema nazista Deutschland über alles ) ou vestir a camisa do clube de futebol Lazio (historicamente ligada ao fascismo italiano e a Mussolini) são alguns exemplos.
O que um líder supostamente moderado como Zema está fazendo enviando mensagens de extrema-direita? Nada é acidental na estratégia de Zema, um empresário que defende um Estado mínimo e vende a imagem do self-made man. João Amoedo, fundador do Partido Novo e candidato presidencial em 2018, pediu o voto para Lula no segundo turno das últimas eleições presidenciais. No entanto, Zema, que foi reeleito governador no primeiro mandato de 2022, lançou-se a apoiar Bolsonaro na reta final contra Lula. Zema chegou ao poder em 2018 surfando na onda antissistema da extrema direita, associando seu nome a Bolsonaro no whastappfera. E conquistou o governo de Minas Gerais, segunda maior economia e segundo maior colégio eleitoral do país, sem sequer aparecer nas pesquisas. Com sua ligação ao bolsonarismo, Zema conseguiu algo inatingível para qualquer liberal moderado de um país latino.
Na segunda virada de 2022, o apoio de Zema a Bolsonaro foi estrategicamente tímido. Ele precisava de duas coisas: associar seu nome a Bolsonaro e que Lula ganhasse as eleições. Na verdade, ele fazia movimentos para a candidatura de 2026. “Zema quer ser presidente. Com Bolsonaro derrotado, um grupo de analistas e gente do mercado sugeriria que o governador de Minas Gerais poderia ser seu sucessor”, escreveu na época Renato Rovai, diretor da Revista Fórum.
Para entender o flerte de Zema com o eleitor de extrema direita, temos que voltar ao dia 30 de outubro de 2014, quando Aécio Neves, candidato do PSDB, de centro-direita, não reconheceu a vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais. Começou a jornada radical do partido Tucano, como é conhecido o PSDB, que acabaria por desmanchar a direita brasileira que governou o país por oito anos sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso.
A contestação às eleições de Aécio Neves foi um balão de ensaio narrativo para sobrevoar um cenário social que começava a se mover para a direita. Em 1º de novembro de 2014, nascia o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por jovens anunciantes com estética hipster e ideologia neoliberal. Enquanto o MBL conseguia transformar o sentimento antissistema de milhões de brasileiros em raiva contra o Partido dos Trabalhadores (PT), Aécio Neves radicalizava seu discurso. Em 15 de março de 2015, gigantescas manifestações convocadas por grupos de direita tomaram as ruas do país. Em 12 de abril de 2014, a extrema-direita guatemalteca Gloria Álvarez fez um discurso na Avenida Paulista, em São Paulo, para cem mil pessoas. Vestindo uma camisa com a bandeira do Brasil, Glória atacou o "populismo maldito" da esquerda. Glória havia viajado ao país para participar do Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, ligado ao ecossistema da nova direita latino-americana. O Movimento Cívico Nacional Álvarez (MCN) está associado à Rede Atlas, uma think tank nos Estados Unidos que ajuda na expansão da direita radical. Em 2015, o capítulo brasileiro da Atlas Network já patrocinava uma densa rede de think tanks locais, organizações e fundações. Entre eles, o movimento supostamente espontâneo do MBL.
Naquela época, Aécio Neves e a direção do PSDB dialogavam abertamente com os neocons latinos e os novos manifestantes brasileiros. Tanto que o Instituto Fernando Henrique Cardoso recebeu Gloria Álvarez em sua sede em São Paulo, onde proferiu palestra. Ao longo de 2015 e 2016, Aécio Neves foi peça fundamental na legitimação das novas marchas da direita radical e do impeachment que tirou o PT do governo em agosto de 2016. A jornada radical do Tucano continuou fora de controle até a chegada de Jair Bolsonaro à presidência. João Dória, um empresário desconhecido recentemente filiado ao PSDB, tornou-se prefeito de São Paulo contra todas as probabilidades. Ele venceu o primeiro turno das eleições de outubro de 2016, com um discurso contra a classe política. Um ano depois, Dória, tentando se tornar o anti-Lula, devorou o velho PSDB.
A capa da influente revista semanal IstoÉ de 4 de agosto de 2017 trazia João Dória sob manchete em letras amarelas (Nasce o anti-Lula), com o cabeçalho também em amarelo, fazendo referência às cores da bandeira brasileira. Em outubro de 2018, Dória, candidato a governador de São Paulo, foi votar no segundo turno vestindo uma camiseta com uma palavra (BolsoDória) para atrair eleitores da direita radical. Jair Bolsonaro conquistou a presidência. João Dória tornou-se governador de São Paulo. Como efeito colateral, o PSDB obteve o pior resultado eleitoral de sua história no Congresso: apenas 22 deputados. A irrupção de Dória no PSDB desencadeou um efeito explosivo. O partido radicalizou. Muitos quadros acabaram fugindo para os partidos alinhados ao bolsonarismo. E Geraldo Alckmin, peso pesado tucano e inimigo frontal de Dória, embarcou na frente democrática tecida por Lula da Silva para derrotar Bolsonaro. A queda absoluta do Tucano ocorreu em 2022 : pela primeira vez, o partido não apresentou candidato à presidência, obteve apenas 13 deputados, ficou de fora do Senado e, após 28 anos, perdeu seu grande feudo, o estado de São Paulo, que caiu nas mãos do militante de Bolsonaro Tarcísio de Freitas. Apenas uma pequena luz no fim do túnel, o jovem Eduardo Leite conquistou o gaúcho, um dos mais influentes, ao vencer Onyx Lorenzoni, ex-ministro de Bolsonaro.
A viagem do tucano é uma das mais radicais do mundo. O PSDB nasceu em 1988 ancorado na social-democracia. Alguns de seus fundadores lutaram contra a ditadura e iniciaram sua formação política no exílio. Após a consolidação do PT como principal força de oposição após o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, o partido começou a se inclinar para o centro. Aos poucos, ele foi virando para o centro-direita. U m tweet Nas eleições de 2022, José Serra, um dos ilustres políticos do PSDB, sintetizou a surpreendente trajetória do partido que nasceu combatendo a ditadura: “Não vou perder tempo com o assunto. Diante das alternativas, votarei em Lula. E, pelo mesmo motivo, em São Paulo, meu voto será para Tarcísio de Freitas”. É possível votar em Lula em prol da defesa democrática e simultaneamente em um ex-ministro de Jair Bolsonaro?
Uma pergunta correlata: a desqualificação política de Jair Bolsonaro permitirá que a direita se afaste do neofascismo que abraçou? Altamente improvável. Pelo menos no curto prazo. Quando o ultradiscurso se instala no seio de um partido de direita, seja o Partido Popular (PP) espanhol ou o PSDB brasileiro, o retorno é quase impossível. A boa notícia para o Tucanos é que eles saíram simbolicamente das telas: Eduardo Leite, recém-chegado à presidência do partido aos 33 anos, conquistou seu estado com uma campanha que apelou aos valores democráticos para os quais teve o apoio tácito da esquerda. A imagem da comemoração, com Leite cantando samba e tocando pandeiro, parecia querer encerrar uma era de direitos obscurantistas. Leite aceitou o desafio de reconstruir as ruínas do PSDB. Mesmo assim, a tarefa será árdua. Com pouca presença no legislativo, poucos governos regionais e poucas câmaras de vereadores em seu poder, tudo indica que o partido não terá força suficiente em 2026 para disputar a presidência.
O esquivo Romeu Zema vai tentar. Jogará para disputar o campo da direita e da extrema direita simultaneamente, radicalizando o discurso por meio de. Porque, sem dúvida, a direita radical terá um candidato escolhido por Jair Bolsonaro. Quando Zema foi questionado por um jornalista de televisão em fevereiro se seria candidato à presidência, ele respondeu com uma cobra verbal: “Gosto de lutar pelo que é certo. Se no futuro [ser candidato à presidência] for a coisa certa a fazer, eu farei. Quero um Brasil correto e voltado para a direita”.
O paradoxo e/ou moral é que o bolsonarismo rejeita Zema, mesmo como candidato à vice-presidência por um candidato linha-dura. Tanto no Brasil quanto no mundo, a radicalização da direita tradicional é sempre um ganho para a extrema direita. Se a direita radicalizada vencer, será com programa e discurso ultras. Se perder, será à custa de engordar a extrema-direita.
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Brasil sem Bolsonaro: a direita voltará de sua jornada radical? Artigo de Bernardo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU