27 Fevereiro 2024
Balsas garimpeiras estão no rio Maú, na fronteira entre os dois países. Na parte brasileira, ele faz margem com o território indígena, onde é proibida a mineração. Do outro lado, na Guiana, a atividade é liberada. Situação indefinida e transfronteiriça expõe indígenas às invasões dos garimpeiros.
A reportagem é de Jullie Pereira, publicada por InfoAmazônia, 15-02-2024.
O rio Maú está na fronteira entre dois países: de um lado, o Brasil, onde a mineração em terras indígenas é proibida; do outro, a Guiana, onde a atividade é liberada. Na margem brasileira do rio, os indígenas que vivem na comunidade Mutum, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, afirmam estar vulneráveis às invasões garimpeiras.
“É como estamos falando, eles estão voltando de novo. Eles vêm, trazem todo o equipamento de garimpo, entram aqui e sobem [o rio] de barco. Por isso, está tendo água suja aqui. Eles passam, dizem que têm acordo com os tuxauas (Cargo de liderança concedido pela comunidade a qual a pessoa faz parte. São responsáveis por participar de assembleias, organizar movimentos e repassar informações para coordenadores regionais) do outro lado [Guiana] e vão”, conta a tuxaua da comunidade Mutum, Santilha Macuxi, liderança que teve a casa queimada por invasores devido ao conflito entre indígenas e garimpeiros.
Na Guiana, os indígenas têm autonomia para explorar e permitir que os não indígenas façam mineração em suas terras. O diplomata Paulo Chuc, do Consulado do Brasil no país, explica que, apesar da legislação guianense, os garimpeiros não têm permissão para atravessar para o lado brasileiro.
“Se do lado da Guiana eles tiveram um alvará ou o ok dos indígenas de cá [Guiana], eles não estão fazendo nada de errado. Mas, se eles decidiram expandir a exploração, atravessaram os rios, foram para o lado brasileiro e resolveram tentar explorar lá, claramente cometeram delito”, explica.
Em carta aberta divulgada pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), lideranças da TI Raposa Serra do Sol (TIRSS) afirmam que os garimpeiros estariam atravessando o rio à noite para explorar o lado brasileiro. “A balsa em questão durante o dia ficava parada sem atividade do lado guianense e, à noite, passava a garimpar de forma ilegal no estado brasileiro, poluindo o rio e aumentando a insegurança das comunidades […]. As lideranças denunciam ainda que vêem sofrendo com constantes ameaças de morte, além de já terem registros de ao menos uma casa queimada”.
A reportagem da InfoAmazonia acompanhou uma ação de combate do Grupo de Proteção e Vigilância Territorial Indígena (GPVITI), ligado a comunidades indígenas da TIRSS, que ocorreu na primeira semana de janeiro. Uma balsa de garimpo foi incendiada. O GPVIT informou que ainda existem outras duas ancoradas no rio.
Além da invasão, as lideranças dizem que os garimpeiros estão levando bebidas alcoólicas para dentro da comunidade. A reportagem da InfoAmazonia observou latas de cerveja jogadas ao chão na beira do rio, durante o período em que esteve no território. “Eles fazem bagunça aqui na comunidade, ficam embriagados, usam drogas aqui mesmo”, conta Amarildo Macuxi, coordenador da região das Serras, onde estão 77 comunidades da terra indígena.
Os indígenas também alertam para uma mudança na “saúde” do rio e para a falta de peixes nos locais tradicionais de pesca. “Eles [garimpeiros] ganham força porque na Guiana é permitido o garimpo, é legalizado. Então, eles conseguem manipular as comunidades, mas eles não poluem só o lado da Guiana, poluem o lado do Brasil também”, complementa Amarildo.
Questionado sobre a legislação dos países para preservação dos recursos naturais em fronteiras como a do rio Maú, o diplomata Paulo Chuc afirma que seria necessário uma conversa entre os dois países.
“A pauta poderia ser levantada e resolvida no campo diplomático. Nós temos uma questão de fronteira que é o rio, que de um lado pode estar contaminado e obviamente a contaminação vai para todos os lados. Como poderíamos mitigar ou resolver essa questão? Acho que o melhor caminho seria os ministérios do meio ambiente de ambos os lados sentarem e tentarem algum tipo de ação possível, já que num país o garimpo é legal e no outro não é”, afirma o diplomata.
A reportagem solicitou uma resposta oficial do Consulado do Brasil na Guiana sobre a regularização dos garimpeiros no rio Maú e, assim, o diplomata Paulo Chuc informou que foi enviado um questionamento diretamente ao Ministérios dos Assuntos Indígenas, da Guiana. Nesta quarta-feira (14), ele informou à InfoAmazonia que ainda não tinha recebido um retorno do órgão guianense. A reportagem também procurou o Ministério de Recursos Naturais da Guiana e o Consulado da Guiana em Boa Vista, mas não obteve resposta.
Amarildo Macuxi afirma que os garimpeiros estão em acordo com indígenas Macuxi guianenses, que vivem em uma comunidade no outro lado do rio. “Esses garimpos têm acordo com os parentes da Guiana e estamos tentando tomar providências, porque eles estão poluindo, degradando o meio ambiente. Eles [indígenas guianenses] têm uma organização diferente da gente. O acordo que eles têm é que os garimpeiros colocam as balsas e empregam os indígenas”, diz a liderança.
A comunidade Mutum foi inicialmente construída para ser uma vila de garimpeiros na década de 90. Até a homologação da TIRSS, em 2005, a área servia de abrigo e prestava apoio às atividades garimpeiras no rio, a cerca de 20 minutos, conhecido pela presença de ouro, diamante e nióbio. Depois da demarcação, os garimpeiros foram retirados e os indígenas passaram a viver nas casas de alvenaria.
O professor Reginaldo Gomes, do departamento de história da Universidade Federal de Roraima (UFRR), explica que as leis sobre demarcação e usufruto de territórios indígenas da Guiana são diferentes das do Brasil. “Aqui, nós temos um reconhecimento de demarcação da terra e da cultura indígena que é diferente do dos nacionais [não indígenas]. Na Guiana, é diferente”, explicou o professor.
O historiador é referência nos estudos sobre a relação Brasil, Venezuela e Guiana, sendo autor de livros como “Amazônia Caribenha: processos históricos e os desdobramentos socioculturais e geopolíticos na ilha da Guiana” e “Amazônia Caribenha Colonial e a história do gado em Roraima”.
Ele explica que a exploração de garimpo na região é antiga, envolvendo indígenas e não indígenas. “A questão do garimpo de ouro e diamante vem desde o século XIX. Na área do Brasil, que é onde está Roraima, vem já no século XX. No caso do rio Maú, a margem esquerda do rio é da Guiana e a margem direita é do Brasil, mas, na hora da garimpagem, eles possivelmente atravessam, porque neste contexto é fácil o deslocamento entre os territórios”, diz.
Sobre a invasão do território indígena brasileiro e a queima da balsa, Reginaldo diz que existe um problema para os dois países. “Isso gera um conflito diplomático. No passado, existiam conflitos entre indígenas que eram a favor e indígenas que eram contra. Mas, neste século, têm legislações que devem ser percebidas e respeitadas e essas legislações também entram em conflito. Precisamos dialogar e chegar num caminho para respeitar e viver melhor”, diz o professor.
“Fazer uma legislação conjunta não é fácil. O Brasil tem legislação ambiental, Guiana também, mas são interpretações diferentes. A Guiana explora madeira, explora cassiterita, urano, eles dizem que o meio ambiente é respeitado, mas também se retira a riqueza para melhorar a vida deles”, conclui.
Com esse histórico de invasão e garimpo no rio localizado a metros de casa, os indígenas vivem sob pressão. A casa de Santilha, por exemplo, foi incendiada em 25 de outubro de 2023. Nesse dia, ela conta que estava em Boa Vista, capital de Roraima, com uma das quatro filhas, quando recebeu uma ligação de parentes que informaram do incêndio. A casa está cheia de vestígios do fogo. Paredes sujas de preto e objetos carbonizados são vistos no quintal e nos quartos.
Santilha acusa representantes da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiurr), uma organização indígena que existe desde 1993, de estarem a favor dos garimpeiros da região e estarem incentivando os ataques. Historicamente, os integrantes da Sodiurr são a favor do garimpo na terra indígena. Eles representam comunidades indígenas dos povos Macuxi, Wapichana e Ingaricó, cuja maioria da população está na TIRSS.
Na época da luta pela demarcação, a Sodiurr reivindicava que a delimitação do território fosse feita por ilhas, em que alguns espaços poderiam ficar de fora. Isso colocou a organização diretamente em conflito com o CIR, que defendia a tese da homologação por área contínua, e que acabou saindo vencedora, impedindo legalmente qualquer trabalho de garimpagem na região. As organizações atuam em apoio às comunidades que estão associadas. Na comunidade Mutum, existem indígenas que fazem parte do CIR e indígenas que fazem parte da Sodiurr.
“Fizeram isso para eu ir embora, porque eles não querem o CIR organizado aqui, mas quem lutou para ter essas casas boas foi o CIR. Mas eu disse: ‘agora eu vou ficar aqui, eu vou mostrar quem sou eu’. Eu fiquei, foi feita a perícia, mas não sei como está”, disse a tuxaua Santilha.
Apesar de ter continuado a morar na comunidade, Santilha conta que não quer mais continuar lá. Com o conflito e a distância para as outras comunidades, quem tem a chance de sair, prefere deixar o local. O medo é perder a comunidade novamente para o garimpo. “Eu disse para o coordenador Amarildo que se não fizerem o retiramento [desintrusão] desse pessoal, eu já vou embora, não quero mais estar nisso”, disse a tuxaua.
O advogado Ivo Macuxi, assessor jurídico do CIR, afirma que apesar da perícia ter sido feita na casa de Santilha, nenhuma resposta sobre o atentado foi dada pela Polícia Federal. “O Estado está ausente, só vem quando a gente aciona ou quando acontece algum problema. Eles acham que é mais um caso, não levam muito a sério. É muito difícil localizar os acusados, mas vamos continuar cobrando a Polícia Federal para que cheguem até os responsáveis”, afirma.
A presidente da Sodiurr, Irisnaide de Souza, nega qualquer envolvimento da organização indígena no conflito: “o incêndio na casa da tuxaua, segundo as informações, suspeitam que foram os ingleses [guianenses] que queimaram, em briga por causa do garimpo”. Questionada sobre a ação dos garimpeiros e sobre a posição da Sodiurr em relação a eles, ela nega qualquer apoio. “Com certeza que não; como eu falei, tomamos conhecimento desses garimpeiros depois que ocorreu o fato [queima da balsa], e a informação que eu tive é da Guiana”, afirmou.
Já o advogado Ivo Macuxi diz que a organização incentiva o garimpo na região. “Eles apoiam e defendem abertamente o garimpo, inclusive aqui na região do rio Maú. Eles [Sodiurr] sempre estão com essa proximidade com o governo neoliberal e conservador. São usados para atacar os indígenas, para tentar criar um cenário de que estaria acontecendo conflito entre indígenas. Isso foi muito usado nos últimos anos”, diz.
A Sodiurr apoia abertamente a implementação de uma legislação pró-garimpo em Roraima. Em outubro de 2021, as lideranças receberam, na Comunidade Flechal, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Antes, em 2020, entraram com uma ação contra o CIR, pedindo que fossem retiradas as barreiras sanitárias feitas dentro do território, que tinham o objetivo de limitar a entrada de não indígenas, para combater o coronavírus. A ação foi aceita e a Polícia Militar do estado entrou em conflito com os indígenas, seis deles ficaram feridos.
“A gente respeita porque eles têm as comunidades deles e estão dentro da Raposa Serra do Sol, mas, por outro lado, eles defendem tudo isso. Eles entraram com uma ação no STF pedindo que o Supremo autorize garimpo aqui”, diz o advogado Ivo Macuxi.
O sociólogo Rodrigo Chagas, pesquisador do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Fronteiras da UFRR e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que a Sodiurr vive uma ideologia marcada pela valorização da prosperidade, e analisa que isso decorre de uma forte atuação missionária religiosa no local.
“Na Sodiurr, o debate é muito mais dentro da teologia da prosperidade. Eles dizem que o pessoal da esquerda não quer progredir. ‘Eu também quero ter meu ar condicionado em casa, eu também quero mandar meu filho para escola na cidade’ [eles dizem]. Então, essa visão de mundo que tem a ideologia do agronegócio, da teologia da prosperidade, do neoliberalismo, isso é muito forte quando você conversa com as lideranças”, explica.
Por conta desses conflitos, as comunidades estão fazendo monitoramento dos seus territórios de forma própria. No período em que a InfoAmazonia esteve na comunidade, ocorreu uma assembleia que estava sendo protegida pelo GPVITI 24h por dia. O coordenador do grupo, Anastácio Batista, do povo Macuxi, conta que as ameaças são constantes. Durante a reunião, foi decidido também que o grupo deve permanecer e ter apoio para fortalecimento das ações.
“Muitas vezes, nem dormimos direito depois que começamos esse trabalho [o grupo de proteção], começamos a ser ameaçados. Todos somos ameaçados. Ameaçam de morte mesmo. Muitas vezes, são nossos próprios parentes, aqueles que não apoiam o nosso trabalho, dizem ‘tal pessoa vai pegar vocês’. O nosso dia a dia é muito preocupante”, diz.
Ele está à frente do grupo há 1 ano e foi escolhido pelos próprios tuxauas, depois que começou a se posicionar contra os invasores. “Nós já tentamos fazer acordos de todos os jeitos, já procuramos o consulado da Guiana, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Desde que começou a aumentar a atividade garimpeira, a gente viu as mudanças das águas, o óleo no rio, o clima esquentando. Pelo nosso entendimento, isso vem tudo através dessas coisas que não são boas [garimpo]”, diz Anastácio.
O sociólogo Rodrigo Chagas também afirma que a dificuldade no local ocorre principalmente por causa da fronteira. “Existe uma dinâmica de fronteira, toda fronteira tem essa dinâmica. Que dinâmica é essa? Passagem de ilícitos. Podem ser pessoas, drogas, armas, roupa, naquele lugar estão passando coisas. Na Guiana, o que temos principalmente é atividade mineral, de garimpo, de ouro. Ali na região das Serras é um espaço que não tem fiscalização, que o estado está praticamente ausente”.
A reportagem questionou a Polícia Federal de Roraima sobre as ações de combate ao garimpo naquela região, mas não obteve resposta.
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Garimpo na fronteira entre Brasil e Guiana ameaça indígenas no território Raposa Serra do Sol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU