07 Fevereiro 2024
Número de garimpeiros aumentou mais de 200% nos últimos anos na Floresta Estadual (Flota) do Paru e passa de 2 mil pessoas, em mais de 100 frentes de exploração ilegal; para influenciar o governo, garimpeiros criaram associação de extrativistas de fachada com esperança de promover alterações no plano de manejo da área.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazônia, 29-01-2024.
Uma das maiores unidades de conservação de uso sustentável do mundo, a Floresta Estadual (Flota) do Paru, no oeste do Pará, está dominada pelo garimpo ilegal movido a mercúrio e cianeto, substâncias altamente tóxicas e de uso restrito. A área abriga árvores gigantes da Amazônia, incluindo um exemplar de angelim-vermelho com idade entre 400 e 600 anos, que é a maior árvore da América Latina. A região é explorada por mais de 2 mil garimpeiros, em cerca de 100 frentes de extração de ouro e, além disso, pelo menos 41 pistas de pouso, todas clandestinas, são usadas para viabilizar a logística dentro da área protegida, segundo dados apurados por órgãos do governo e organizações ambientais que integram inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal (MPF).
Criada em 2006 para proteger uma rica biodiversidade de espécies da fauna e da flora em uma área de 3,6 milhões de hectares, que inclui, além das árvores gigantes da Amazônia, espécies endêmicas, que só são encontradas naquela região, a proteção da Flota Paru é responsabilidade do governo do Pará, através do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-Bio).
No entanto, desde sua criação, a floresta estadual nunca recebeu fiscalização para acabar com o garimpo. Pelo contrário, o Ideflor-Bio deu assentimento para legalizar a mineração dentro da unidade de conservação (UC), contrariando o próprio plano de manejo da Flota, que classificou as áreas ocupadas por garimpos como zonas temporárias, de caráter provisório, que deveriam ser desocupadas para readequação da proteção nessas regiões.
Em outubro de 2023, uma liberação para mineração de ouro foi cedida à empresa Mineração Carará LTDA, do empresário Eduardo Ribeiro Carvalho Pini, apontado pela investigação do MPF, como dono de áreas de garimpos ilegais em atividade na Flota. O documento foi assinado pelo presidente do Ideflor-Bio, Nilton Pinto, e apresentado para obtenção do licenciamento ambiental dentro da área protegida, que ainda aguarda análise da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).
No entanto, tanto informações dos relatórios de vistoria quanto imagens de satélite analisadas pela reportagem identificam que a área requerida para licenciamento já está em atividade, ou seja, já opera como garimpo ilegal ao lado de uma pista de decolagem.
Eduardo Pini se tornou um dos personagens centrais da pressão do garimpo na Flota Paru. Em 2018, ele fundou uma associação de coletores de castanha, a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Jari, como forma de abrir caminhos para reivindicar pleitos dos garimpeiros da região. Como presidente da associação, conquistou, inclusive, um assento no conselho gestor da Flota, em que tenta alterar o plano de manejo para liberar a mineração onde o garimpo é proibido.
Fontes que atuam na região ouvidas pela reportagem, e que pediram anonimato por questões de segurança, informam que os aviões que servem o garimpo até transportam castanha retirada da Flota, mas, na realidade, a associação é apenas uma fachada para atender interesses dos garimpeiros, que passaram a ser cada vez mais presentes nas reuniões do Conselho Gestor da Flota.
Por meio da associação, os garimpeiros também pediram autorização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para utilizarem a Estação Ecológica (ESEC) do Jari, que é de proteção integral e faz divisa com a Flota do Paru, para acessar os garimpos da região. Por ser de proteção integral, o acesso de pessoas à ESEC só é permitido por meio de autorização do ICMBio. Boa parte dos garimpos dentro da Flota estão na chamada área de amortecimentoÁrea do entorno da ESEC onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade de proteção integral. da ESEC, e segundo o MPF oferecem impactos ambientais diretos à estação ecológica.
Em 2006, 2018 e 2021, o ICMBio fez levantamentos da extração ilegal do ouro no entorno da ESEC. Os registros foram anexados a um inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal (MPF) do Pará em 2022, para apurar o garimpo ilegal na região. Em agosto do ano passado, o órgão emitiu recomendação para que as pistas de pouso sejam implodidas, com pedidos de ações expedidas para o Ideflor-Bio, Instituto Brasileiro Do Meio Ambiente E Dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ICMBio, Agência Nacional De Aviação Civil (ANAC) e Agência Nacional De Mineração (ANM), mas, até o momento, nenhuma medida prática foi tomada.
Os relatórios de vistoria identificaram a situação das frentes de garimpo, que funcionam com estrutura semi-industrial, com maquinário pesado e com uso de produtos químicos restritos, como o caso do cianeto, que é controlado pelo Exército Brasileiro, e o mercúrio, cujo uso depende de autorização específica do Ibama. Esses agentes químicos são altamente tóxicos e contaminam as águas, os peixes e o solo, podendo causar envenenamento de humanos que consomem recursos contaminados da floresta.
“Observamos um aumento considerável nas áreas com indícios de garimpos ilegais na área de influência da ESEC Jari, quando comparamos com os relatórios de 2006 e 2018 como este de 2021, sendo que algumas áreas já estão na borda dos limites da ESEC Jari a cerca de 300 metros do igarapé Cumaru, que faz limite natural com a UC”, diz trecho do relatório de vistoria do ICMbio, realizada em 2021.
Observamos um aumento considerável nas áreas com indícios de garimpos ilegais na área de influência da ESEC Jari, quando comparamos com os relatórios de 2006 e 2018 como este de 2021, sendo que algumas áreas já estão na borda dos limites da ESEC Jari a cerca de 300 metros do igarapé Cumaru, que faz limite natural com a UC. — Relatório de vistoria do ICMbio
Segundo o Plano de Manejo da UC, elaborado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o Ideflor-Bio, haviam 628 garimpeiros dentro da área protegida em 2009. Em 2023, um novo levantamento mostrou que esse número saltou para mais de 2 mil, uma alta de mais de 200%.
A explosão das frentes de garimpo na Flota também oferece risco aos cerca de 300 extrativistas que vivem de maneira sustentável na região por meio da coleta da castanha-do-Pará.
Além disso, toda a área da Flota está dentro da chamada Reserva Mineral de Cobre e seus Associados (Renca), criada em 1984, que engloba nove áreas protegidas, impedindo a regularização da garimpagem. Com o passar dos anos, a área da Renca apta à exploração mineral foi drasticamente reduzida com a criação de reservas biológicas, a regularização de terras indígenas e a elaboração de planos de manejo que demonstraram incompatibilidade da atividade de mineração com a preservação da região. Com isso, a Renca se tornou uma grande área de reserva mineral e de diversidade biológica quase intocada.
Um levantamento da InfoAmazonia identificou, na base da ANM, que há 753 pedidos de mineração na Flota do Paru para exploração de diversos tipos de minérios. Parte desses requerimentos chegaram a ter pedidos indeferidos pelo órgão federal que considerou sobreposição com a Renca, outros acabaram sendo alvo de desistência por parte dos próprios requerentes.
No entanto, diversos pedidos ainda tramitam no órgão federal, inclusive com autorização para exploração de lavra garimpeira, contrariando tanto o que estabelece o plano de manejo como o que está previsto para a Renca.
Um desses processos é o de Eduardo Pini, que tem três requerimentos para legalizar garimpos na região, incluindo o garimpo Carará, que aparece nos relatórios de fiscalização do ICMBio.
Em 2021, a ANM emitiu uma Guia de Utilização (GU) permitindo à Mineração Carará explorar até 50 mil toneladas de ouro por ano dentro da Flota. Apesar de a GU ter validade apenas com a apresentação do licenciamento ambiental, os relatórios de fiscalização mostram que o garimpo segue em pleno funcionamento. Na prática, a manobra visa legalizar um garimpo que, segundo constatado pelo próprio ICMBio, opera de forma ilegal na área de amortecimento da ESEC Jari e dentro da Flota do Paru.
Até pouco tempo, as Guias de Utilização eram um tipo de autorização em caráter excepcional, como forma de uma empresa extrair quantidades limitadas de minério por tempo determinado, e só eram emitidas após o empreendedor obter todas as licenças ambientais exigidas para o início da operação. Mas, desde 2020, após alterações promovidas no governo Bolsonaro, a emissão de GUs não exige mais apresentação de licença ambiental, ainda que a ANM exija que a exploração só seja permitida após todas as licenças.
Na prática, o uso da GU se tornou um atalho para exploração antes da concessão definitiva de lavra, o que pode não ocorrer se forem observadas as limitações para a mineração na área da Flota.
Em outros casos, a ANM autorizou a instalação de garimpos que nunca apresentaram relatórios sobre o volume de ouro explorado, o que rendeu multas aos garimpeiros por falta de recolhimento dos impostos devidos da atividade. A agência também emitiu alvarás para exploração de cassiterita dentro da Flota.
Segundo apurou a reportagem, pelo menos uma parte do ouro retirado ilegalmente de dentro da Flota é comercializado no município de Laranjal do Jari, no Amapá, onde os garimpeiros estariam burlando os meios de fiscalização da exploração garimpeira adotado pelo atual governo, que instituiu a Nota Fiscal Eletrônica para o comércio de ouro. Para colocar o metal ilegal no mercado e garantir a emissão das notas, de acordo com fontes locais, os garimpeiros estariam dizendo para os compradores que a exploração teria ocorrido em áreas autorizadas pela ANM.
Próximas ao angelim-vermelho, com quase 90 metros de altura, há diversas outras árvores com alturas entre 70 a 80 metros na Flota do Paru. A UC ainda abriga rios, cachoeiras, montanhas, savanas e uma grande diversidade de espécies da fauna e da flora.
O grandioso angelim-vermelho tem 88,5 metros de altura e 9,9 metros de circunferência. Para chegar até ele, são necessários 15 dias percorrendo cerca de 400 quilômetros de rios cheios de corredeiras e mais 40 quilômetros a pé pela mata densa. Nem assim ele está a salvo da escalada do desmatamento e do garimpo.
Desde 2008, mais de 8 mil hectares da Flota do Paru foram desmatados. O pico do desmatamento na região ocorreu em 2019, no primeiro ano do governo do ex-presidente Bolsonaro (PL), quando 1,4 mil hectares foram devastados.
Questionada sobre quais medidas foram adotadas para evitar o garimpo ilegal conforme recomendou o MPF, a ANM informou que “foi realizado mapeamento por imagens de satélite no entorno da Estação Ecológica do Jari, em que se identificaram feições no terreno sugestivas de atividade de garimpo nas proximidades às pistas de pouso. Além disso, foi realizada análise junto à base de dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), em que se constatou que nenhuma das 41 pistas de pouso instaladas na região estavam homologadas”. A agência não respondeu sobre as autorizações para mineração e garimpos concedidas dentro da área da Flota.
Eduardo Ribeiro Carvalho Pini afirmou à reportagem que exerce atividades na região desde 1981 e disse que teria autorização da ANM para as atividades — na verdade, segundo dados da ANM ele tem quatro pedidos cadastrados no órgão, mas nenhum deles com licenciamento ambiental para exploração. Ele critica a ação dos órgãos ambientais e de organizações que atuam na região, afirmando que nenhuma das unidades de conservação da região “impedem nossa atividade mineral”, o que não é verdade.
“Eu tenho toda documentação e estou em vias de obter a licença de operação. O que o ICMbio aponta está errado”, afirmou citando o mesmo requerimento minerário que recebeu GU da ANM, cujo licenciamento ambiental ainda se encontra pendente.
Já o MPF informou ter requisitado apoio da Polícia Federal e do Ministério da Justiça para cumprir as recomendações para cessar o garimpo na área. Segundo a procuradoria, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente não prestou esclarecimentos sobre as recomendações e a a Secretaria de Segurança Pública do Pará informou que não é competência do estado investigar pistas de pousos clandestinas.
O ICMBio informou que “monitora a situação por se tratar de área contígua à Unidade de Conservação Federal Esec do Jari”, mas reforça que “os ilícitos ambientais estão circunscritos aos limites da Floresta Estadual do Paru (Flota Paru), sob responsabilidade dos órgãos estaduais”.
A ANAC não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Após a publicação da reportagem, o Ideflor-Bio afirmou que “trabalha de forma integrada com o Ministério Público, Polícia Civil, Militar, Federal e Exército, para desarticular garimpos ilegais em Unidades de Conservação (UCs) estaduais”. No entanto, o órgão justifica a autorização dada à Mineração Carará, para explorar ouro, apontando que a empresa é “autorizada pelo Ministério de Minas e Energia, para atividades de pesquisa e lavra mineral de ouro onde está instalada, desde o ano de 1981” e que o empreendimento está localizado na zona de ocupação temporária — onde estão os garimpos. “Houve análise jurídica pela Procuradoria Autárquica do Instituto, não havendo assim impedimentos legais à este empreendimento” afirmou o Ideflor-Bio.
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Órgão ambiental do Pará tenta legalizar garimpos em floresta que abriga maior árvore da América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU