Para o professor e pesquisador, a concentração de informação e poder das empresas de tecnologia interdita um processo democrático e de sociabilidade transparente
Esta entrevista começa com a seguinte afirmação: “Talvez estejamos vivendo um dos piores momentos da relação entre as tecnologias digitais e a democracia”. O autor da frase é Rafael Evangelista, professor, pesquisador e autor do livro Cultura hacker, cibernética e democracia (Edições Sesc, 2018), que concedeu entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O pano de fundo, que motivou o convite, foi o Hackathon ["maratona" hacker de curta duração] de Elon Musk, que, na prática, é um experimento para criar uma mega-API [API é uma interface de programação de aplicações que permite que diferentes softwares interajam entre si, facilitando a troca de dados, recursos e funcionalidades] onde os dados da população dos Estados Unidos seriam reunidos em um único banco. O desejo, que vem embalado num discurso de maior eficiência, traz riscos iminentes.
“Podemos pensar em dois tipos de consequências: uma mais imediata e outras que têm a ver com o projeto de sociedade idealizado por esses líderes do Vale do Silício – esses ‘capitães da indústria da informação’. No curto prazo, esse tipo de experimento permite um controle maior sobre os dados”, descreve Evangelista. “O Hackathon que o Musk está propondo é para construir mais ferramentas de manipulação desses dados, o que não necessariamente significa acesso direto a eles. Agora, o Musk não é uma figura muito confiável e a própria mentalidade do Vale do Silício tem muito de agir com pouca precaução, de se preocupar pouco com os riscos envolvidos, porque eles acham que dessa forma terão um desenvolvimento tecnológico mais acelerado. Mas eventuais vazamentos de dados que aconteçam podem fazer com que alguns cidadãos tenham suas vidas expostas e estejam sujeitos a alguma perseguição”, complementa.
A questão de fundo é que não é possível haver democracia quando poucas empresas detêm um volume tão grande e expressivo de informações sobre as pessoas e, na outra ponta, a população não tem ideia qual a lógica de funcionamento desses algoritmos. “Não é possível haver democracia em uma era em que as Big Techs detêm tal concentração de poder, o poder de intermediação das relações sociais. Então, se não diminuirmos o tamanho dessas empresas, se não desenvolvermos políticas antitruste, em que não haja tanta concentração de dados em suas mãos e não sejam empresas tão poderosas, não haverá remédio”, avalia o entrevistado.
“Com empresas desse porte é difícil ter democracia e é difícil ter democracia com a falta de transparência dessas empresas – e a falta de transparência inclusive na forma como elas medeiam informações. Ao se colocarem como intermediárias dessas relações sociais, elas concentram muito poder. E não prestam contas para o público sobre a maneira como governam esses dados, da forma como elas incidem sobre as pessoas”, assevera.
Rafael de Almeida Evangelista (Foto: Antonio Scarpinetti / SEC Unicamp)
Rafael de Almeida Evangelista é graduado em Ciências Sociais, mestre em Linguística e doutor em Antropologia Social, todos os títulos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 2018, foi pesquisador visitante junto ao Surveillance Studies Centre, da Queen’s University, no Canadá. Desde 2003, é pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, e desde 2011 é professor do programa de pós graduação em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp). É coordenador do grupo de pesquisa Informação, Comunicação, Tecnologia e Sociedade (ICTS) e membro da Rede Latino-Americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Tem especialização em Jornalismo Científico (Unicamp). Autor do livro digital Para Além das Máquinas de Adorável Graça: cultura hacker, cibernética e democracia.
IHU – Hoje, como ocorre a relação entre democracia e tecnologias de comunicação e informação?
Rafael Evangelista – Talvez estejamos vivendo um dos piores momentos da relação entre as tecnologias digitais e a democracia. Embora haja facilidade no acesso à informação e ao consumo de notícias, as pessoas estão não só suscetíveis como também vulneráveis às políticas e práticas de desinformação. Há um alto consumo informacional. As pessoas estão o tempo inteiro consumindo informação em seus celulares, mas temos informação de muita baixa qualidade e que é utilizada não no sentido de produzir cidadãos mais bem informados para conseguirem participar democraticamente, mas para capturar a atenção e o engajamento das pessoas. Isso ocorre porque vivemos em uma economia que é movida a dados, dados que as pessoas produzem nesse ambiente da internet e das tecnologias da informação.
Há alguns anos, ainda havia uma perspectiva um pouco melhor no sentido de uso dessas tecnologias para melhorar a educação, o nível de acesso à informação, para democratizar as vozes e os acesso aos meios de comunicação. Hoje, há uma democratização da possibilidade de se produzir informação, as pessoas podem escrever e contam com ferramentas para capturar suas falas e impressões do mundo. No entanto, há uma dificuldade na produção de informação de qualidade e de as pessoas acessarem elas.
Há uma avalanche de informações, sobretudo informações de baixa qualidade, feitas para capturar a atenção e produzir engajamento. Isso dificulta para as pessoas distinguirem o que é informação que pode contribuir para a cidadania e o que é uma informação que é uma tentativa de manipulação das emoções para diversos fins, entre eles, políticos, comerciais ou mesmo para produzir esse engajamento em redes sociais. E há uma dificuldade de se chegar nas pessoas, pois quem controla o acesso entre as mídias e o público são as plataformas. Perdeu-se o contato direto das mídias com seu público.
IHU – Pode explicar, a partir de seu livro Cultura hacker, cibernética e democracia (Edições Sesc), as relações entre a cultura digital e a democracia?
Rafael Evangelista – É interessante você retomar o termo cultura digital, porque ele parece ser um termo que quase desapareceu dos debates sobre a política ou sobre a própria internet. Como falei na questão anterior, a ideia era que essa cultura digital fosse uma cultura que passasse por uma maior participação política, que não fosse só uma cultura de consumo de entretenimento, que é o que temos hoje. Há muita capacidade e possibilidades de consumirmos e mesmo produzir informações, mas estão voltadas para o entretenimento ou para um engajamento político divisivo, pouco construtivo. Não digo que não há canais ou jornalismo de qualidade; temos informações de qualidade. Digo que há um mar de informações tão grande, tantas recomendações algorítmicas, que as pessoas ficam afogadas nesse mar.
A perspectiva da cultura digital, como tratada no livro, passa pela essa ideia de cultura hacker. A cultura hacker, da maneira como estou trabalhando, envolve um movimento de apropriação tecnológica. Não só o uso de dispositivos, redes sociais ou computadores, mas um processo de entendimento sobre o funcionamento desses objetos técnicos e uma relação de apropriação, em que “eu não sou usado por eles, mas os torno instrumental para meus objetivos emancipatórios e políticos”. A tecnologia pode servir à democracia, mas isso não é um processo automático. Uma tecnologia controlada por poucos, só orientada ao marketing e ao mercado, pode funcionar na direção oposta e servir ao autoritarismo. Estou trabalhando num posfácio para o livro, que deve ser relançado em breve, onde dou relevo a como as tecnologias da informação estão sendo usadas na construção de instituições autoritárias.
IHU – Quais podem ser as consequências do experimento de Elon Musk à frente do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês) para construir uma mega-API para transferir informações fiscais de diferentes bancos de dados para a nuvem?
Rafael Evangelista – Podemos pensar em dois tipos de consequências: uma mais imediata e outras que têm a ver com o projeto de sociedade idealizado por esses líderes do Vale do Silício – esses “capitães da indústria da informação”. No curto prazo, esse tipo de experimento permite um controle maior sobre os dados. Sim, há o perigo de vazamentos, mas certamente o experimento leva a uma centralização muito maior das informações nas mãos do Estado – no caso, o governo Trump. Isso significa um reforço do poder estatal num contexto em que a democracia já está fragilizada, liderada por alguém com inclinações autoritárias.
Um exemplo disso são as políticas de expulsão de imigrantes baseadas em critérios bastante frágeis do ponto de vista legal. De certa forma, o Estado está sendo mobilizado contra esses grupos. Então, se esse Estado passa a controlar ainda mais informações, o risco é que esse poder seja usado para perseguir certos grupos. Esse seria o maior perigo imediato.
O Hackathon que o Musk está propondo é para construir mais ferramentas de manipulação desses dados, o que não necessariamente significa acesso direto a eles. Agora, o Musk não é uma figura muito confiável e a própria mentalidade do Vale do Silício tem muito de agir com pouca precaução, de se preocupar pouco com os riscos envolvidos, porque eles acham que dessa forma terão um desenvolvimento tecnológico mais acelerado. Mas eventuais vazamentos de dados que aconteçam podem fazer com que alguns cidadãos tenham suas vidas expostas e estejam sujeitos a alguma perseguição. Pode ser por parte do Estado, como comentei, mas pode ser também por parte de grupos políticos que ganhem acesso ao sistema e usem para perseguir seus inimigos.
Uma questão frequente, quando se fala sobre dados pessoais e o Estado, é a importância de que as diversas partes do Estado não tenham acesso às bases totais de dados. Por exemplo, um determinado ministério precisa de alguns dados dos cidadãos para fazer políticas públicas, mas ele precisa dos dados referentes a esse ministério e não do cruzamento total desses dados. E o que está sendo proposto ali, a partir dos dados da Receita Federal americana, é uma centralização desses dados. Então, isso é potencialmente perigoso. Essa ideia de separação em diversos silos de dados foi também para evitar problemas por esse cruzamento de dados.
IHU – Especialistas afirmam que há riscos nesse procedimento, não somente de vazamento de dados, mas também de manipulação de informações. Pode explicar quais os riscos possíveis?
Rafael Evangelista – Eu não falaria diretamente de manipulação de informações, porque entendo manipulação como um falseamento. Talvez fosse mais preciso dizer que se trata de um uso político de informações, não necessariamente secretas ou sigilosas, mas que podem colocar pessoas em risco por elas estarem em determinados contextos sociais em que essas informações fazem parte da privacidade da população.
Muitas vezes podemos ter informações sobre hábitos de consumo, locais que determinada pessoa frequenta; essas informações podem ser usadas para colocar a pessoa em situações de fragilidade perante a comunidade onde vive. Por exemplo, alguém que é de uma família conservadora e que frequenta lugares que a sua família não gosta ou que mora em uma cidade conservadora, mas a pessoa consome alguns produtos ou frequenta lugares que podem expô-la, colocá-la em risco e dar margem a perseguição. Um vazamento seletivo de dados, ainda que reais, nas mãos de grupos políticos que querem atingir pessoas vulneráveis pode ser bastante problemático.
IHU – É interessante pensarmos o papel dos hackers, pois esses personagens costumavam ser quase anarquistas digitais, mas agora são convidados por um governo que, apesar de ter sido eleito, tem tido posturas bastantes autoritárias. Como os hackers afetam a democracia?
Rafael Evangelista – Hacker é uma palavra muito maleável, polissêmica e historicamente está ligada a uma comunidade que procurava se apropriar da tecnologia, que acreditava na democratização das informações, mas, ao mesmo tempo, foi usada pela imprensa como sinônimo de invasor de sistemas. Atualmente, a palavra Hackathon tem servido para simplesmente marcar eventos em que as pessoas se juntam para mexer em códigos de computador em período delimitado. Não significa que todos que vão a estes eventos sejam hackers ou que sejam reconhecidos como hackers pela comunidade hacker.
Os hackers, pelo menos entre os anos 1970 e 1990, antes mesmo do termo se popularizar, tiveram um papel importante no sentido de tentar democratizar a tecnologia, como uma cultura de democratização da tecnologia, que sempre falou muito a favor da informação livre e do direito das pessoas em mexer em computadores e saber como funcionam, terem o controle sobre eles. Nessa história hacker há também grupos hackers que têm uma aversão bastante grande à democracia formal e ao Estado; eles têm uma postura que pode ser classificada como anarquista. Não é um anarquismo que promove o coletivismo, mas um anarquismo que promove um individualismo exacerbado, aproximando-se do que hoje se conhece como anarcocapitalismo.
Então, tem esse flerte de determinadas comunidades hackers com o anarcocapitalismo que se casa muito com essa mentalidade autoritária do Vale do Silício, de caras como o Elon Musk. Ele está em uma secretaria de eficiência governamental, mas na cabeça dessas pessoas o ideal é destruir o Estado. Então, ele está por dentro do Estado atuando para destruir o Estado, porque eles sempre veem o Estado como uma entidade que oprime as pessoas. Claro que esse posicionamento político envolve uma questão de interesse próprio, pois estão numa posição de poder que de fato rivaliza com a do Estado.
Todas essas empresas de tecnologia são contra a regulamentação das suas atividades, são contra a intervenção do Estado e há um movimento político forte de supervisão estatal das atividades das Big Techs. Esta aproximação do Vale do Silício com o governo Trump também tem muito de fazer um movimento político para evitar a regulação.
Nesse sentido, os hackers tanto ajudaram a democracia, no intuito de propor as ferramentas tecnológicas para promover mais participação, quanto alguns deles fazem parte de grupos que acham que é preciso destruir o Estado democrático – e não se sabe muito bem o que se coloca no lugar desse ente. Alguns deles têm uma visão de mundo bastante hierarquizada, tecnocrática. É uma mentalidade que está no topo, nos comandantes das Big Techs, mas se espalha por grupos que não têm tanto poder concreto.
Lembro que Musk é só a figura mais midiática do grupo de empresários de tecnologia que se aproximou de Trump. Esse grupo tem ainda figuras como Peter Thiel, da Palantir, prestando serviços ao Estado já há algum tempo, em especial no setor de segurança. Eles têm uma postura elitista no sentido de se colocarem como condutores da sociedade sem terem muito respeito pelo que a sociedade moderna construiu. A perspectiva deles é a de condução da humanidade, como se fosse gado, a partir das suas ferramentas tecnológicas.
Portanto, a cultura hacker é muito complexa para dizer que ela tem um efeito único sobre a democracia. Os hackers conservadores podem atuar destruindo a democracia. Alguns vão dizer que isso não é o verdadeiro espírito hacker e eu tendo a me alinhar com essa perspectiva, de que a cultura hacker tem muito mais a ver com uma ideia de apropriação tecnológica. É um distanciamento do espírito hacker, mas são grupos que acabam sendo associados ao termo, por estarem no setor tecnológico. Como eu disse, é um termo sempre em disputa.
IHU – Como o hackativismo reconfigurou o papel social dos hackers na sociedade tecnocientífica? Qual tem sido a postura destes atores sociais na luta pelas liberdades democráticas?
Rafael Evangelista – Acho que respondi um pouco dessa questão na resposta anterior, mas gostaria de sublinhar alguns hackers importantes na denúncia contra a opressão e nesse movimento de apropriação tecnológica. Talvez o hacker mais importante nessa perspectiva de apropriação tecnológica seja o Richard Stallman, que é o fundador e figura mais importante do movimento de software livre, do GNU/Linux, que propõe uma relação das pessoas com a tecnologia que deveria ser muito mais próxima. Nesta relação, as pessoas não deveriam ser usadas pelas tecnologias, mas usarem a tecnologia a favor da democracia ao se apropriarem dela. Stallman consolida a ideia do movimento de software livre, que propõe o direito de todas as pessoas de lerem e alterarem os códigos de computador, compartilharem esses códigos e usá-los.
Outros hackers importantes fazem um movimento político desse nicho anarcocapitalista em direção a algo mais em favor das liberdades democráticas, entendendo os perigos da não apropriação tecnológica ou do uso da tecnologia por alguns atores poderosos para controlar grupos subalternos. Entre eles, Julian Assange, com o WikiLeaks, é um ótimo exemplo de um hacker que procurou utilizar ferramentas tecnológicas para disponibilizar informações sobre a opressão de corporações e Estados contra as populações. Ele criou ferramentas para que as pessoas pudessem fazer denúncias anônimas e causou uma transformação muito importante no mundo.
Outro hacker que também precisa ser mencionado é o Edward Snowden, que tinha esse perfil um pouco mais anarcocapitalista. Porém, frente ao que ele pôde acompanhar, que foi a relação entre o Estado americano e as Big Techs, em que estas ofertam os dados pessoais para o Estado, ele se transformou. Não somente os Estados Unidos, porque Snowden denuncia os cinco Estados que compartilhavam dados na época: Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália e Reino Unido. O Snowden mostra essa relação próxima entre essas empresas, que têm nossos dados, porque são as Big Techs que têm acesso a isto e são as Big Techs que controlam as grandes plataformas, que essencialmente recolhem nossos dados e dão acesso facilitado a certos governos. Estes dados são instrumentais para as Big Techs na sustentação de seu modelo de negócio, o capitalismo de vigilância. Snowden mostrou essa relação de colaboração também na política, e hoje podemos falar dessa proximidade e desse grande esquema de espionagem do Estado americano a partir dos dados pessoais coletados junto às Big Techs.
IHU – Olhando a certa distância, parece haver relações entre a imagem “clássica” dos nerds, homens tecnicamente muito inteligentes, mas com pouco traquejo social, e o fenômeno contemporâneo dos “incels”. Até que ponto é possível pensar em convergências de visão política entre esses personagens, que parecem ter uma inclinação a uma perspectiva extremista de direita?
Rafael Evangelista – Eu evitaria estabelecer uma associação direta entre os chamados “nerds” e os “incels”. Não me parece adequado afirmar que um grupo leva necessariamente ao outro. O que podemos observar, no entanto, é que algumas características frequentemente atribuídas aos nerds pela cultura pop – como a dificuldade de socialização, por exemplo – acabam sendo instrumentalizadas por certos atores que se aproveitam dessas fragilidades para promover uma radicalização de cunho machista.
Hoje, muitos que enfrentam dificuldades para socializar buscam na internet uma forma de pertencimento e conexão, o que pode ser positivo. No entanto, há situações em que, especialmente na adolescência, esses sujeitos, frequentemente homens jovens, se veem imersos em ambientes predominantemente masculinos, o que pode torná-los mais suscetíveis a discursos e práticas que reforçam valores do masculinismo.
Portanto, não se trata de uma questão ligada à afinidade com a tecnologia ou ao estereótipo do “nerd” em si. Penso que tem a ver com um campo mais amplo de exploração de ressentimentos. Existem grupos políticos – no sentido amplo do termo – que mobilizam esse tipo de afeto social para radicalizar adolescentes, atualizando discursos machistas que são antigos, mas que ganham nova roupagem nesse contexto.
A isso se soma o fenômeno dos influencers, que muitas vezes fazem do masculinismo um negócio. Eles falam diretamente a esse público vulnerável de homens jovens e constroem sua imagem pública com base em valores patriarcais. Com o tempo, esse discurso ganha autonomia e circula de forma descontrolada e ainda mais radicalizada, produzindo consequências sociais graves. As redes sociais têm impulsionado esse fenômeno, sugerindo aos jovens vídeos e produtos de sujeitos que se colocam como intelectuais politicamente incorretos, mas que na verdade repetem um conservadorismo bastante antigo.
Importa frisar que não sou especialista na cultura dos incels, então não me proponho a fazer uma análise aprofundada do grupo em si. Mas acredito que a relação entre “incels” e “nerds” é, no máximo, superficial – e se for feita ainda uma ligação com os hackers, aí sim me parece um equívoco conceitual. O que temos é uma exploração da cultura machista que se amplifica com a lógica dos nichos e da segmentação nas redes sociais. É nesse mercado de atenção que esses influenciadores apostam suas fichas no machismo como forma de visibilidade e capital.
IHU – Sabemos que as Big Techs têm pouco compromisso com valores civilizatórios e muito compromisso com o crescimento de seus ativos financeiros. É possível existir democracia numa era cujas relações são decisivamente mediadas pelas TICs?
Rafael Evangelista – Não é possível haver democracia em uma era em que as Big Techs detêm tal concentração de poder, o poder de intermediação das relações sociais. Essas empresas têm, hoje, se colocado de modo a substituir diversas instituições sociais, fazendo o papel dessas instituições e de uma maneira que é muito mais centralizada, autoritária e antidemocrática. Então, se não diminuirmos o tamanho dessas empresas, se não desenvolvermos políticas antitruste, em que não haja tanta concentração de dados em suas mãos e não sejam empresas tão poderosas, não haverá remédio. Elas precisam ser “quebradas”, como se tem tentado em alguns lugares. Nos Estados Unidos têm julgamentos acontecendo para que a Meta não seja dona do WhatsApp e do Instagram. Os movimentos de compra que a Meta fez acabaram concentrando dados e grande poder.
Com empresas desse porte é difícil ter democracia e é difícil ter democracia com a falta de transparência dessas empresas – e a falta de transparência inclusive na forma como elas medeiam informações. Ao se colocarem como intermediárias dessas relações sociais, elas concentram muito poder. E não prestam contas para o público sobre a maneira como governam esses dados, da forma como elas incidem sobre as pessoas.
Os líderes dessas empresas têm uma mentalidade que é bastante antidemocrática no sentido de que se utilizam das ferramentas das suas empresas para fazer com que a opinião pública vá para um lado ou para o outro. Isso faz parte também do modelo de negócios delas. É o chamado capitalismo de vigilância.
O capitalismo de vigilância procura utilizar dados para prever e modificar comportamentos. Publicamente, essas previsões e mudanças de comportamento seriam relativas ao comportamento comercial, usadas para o marketing, influência na compra de produtos. Mas nada impede que elas usem seus poderes políticos para influenciar na própria política. Portanto, elas precisam não ter o tamanho que têm e precisam ser reguladas, no sentido de se abrirem mais para o escrutínio público, já que as atividades que elas estão executando são de interesse geral.
IHU – De que ordem é esta nova ciência interdisciplinar que tem surgido a partir da era da informação?
Rafael Evangelista – Acredito que sua pergunta se refira à cibernética. A cibernética é esse ramo interdisciplinar que surge na metade do século passado e que vai se tornar profundamente influente em diversos outros campos científicos. Ela coloca no centro de suas teorias sobre a humanidade a ideia de informação. A partir disso, procura ler o mundo como um conjunto de dados, transforma tudo em dados e tenta extrair informações a partir deles por meio de procedimentos de cálculo, inclusive cálculos probabilísticos.
Esse campo interdisciplinar que é a cibernética vai influenciar a própria ciência da computação e terá impactos significativos em outras áreas do conhecimento. Por um lado, essa abordagem é eficaz e gera efeitos práticos importantes para o avanço do conhecimento. Por outro, ela tem limitações, pois é apenas uma entre várias possíveis perspectivas. Reduzir os problemas do mundo a questões puramente informacionais não é suficiente. Muitas situações não se resumem a uma falta ou excesso de dados nas mãos de um agente A ou B; elas envolvem política, relações de poder e outros elementos sociais e históricos.
Estou fazendo aqui um comentário geral sobre a cibernética, mas é importante dizer que ela dá origem a interpretações bastante complexas também, incluindo ramos internos sofisticados. De todo modo, nas suas versões mais simplificadas e instrumentais, pode-se dizer que a cibernética serve de base para as operações das empresas do Vale do Silício. E é um pensamento extremamente influente na contemporaneidade.
IHU – É possível escapar ao capitalismo de vigilância e ao capitalismo de plataforma?
Rafael Evangelista – É possível escapar, mas não é possível escapar atomizadamente, como indivíduo. Não é uma questão em que os indivíduos conseguem optar por ficar fora ou dentro, é algo que socialmente precisamos tratar. Por exemplo, é possível ter política de regulação do uso de tecnologias da informação que coíbem as operações do capitalismo de vigilância. Pode-se ter um escrutínio público das empresas, das plataformas, desses novos atores do capitalismo informacional, de maneira que elas estejam submetidas às autoridades dos estados democráticos. Que tenha, por exemplo, a transparência de algoritmos, que vai desde sabermos porque tal conteúdo está nos sendo recomendado até informações sobre os preços que as plataformas praticam, como monetizam os conteúdos.
Tem questões muito práticas, por exemplo, de motoristas de aplicativos que querem mais informações sobre as plataformas que operam sobre seu trabalho. E essas são demandas muito justas porque eles não querem ser manipulados nas suas expectativas, nos compromissos que as plataformas estabelecem com eles; eles querem justiça, transparência, querem negociar politicamente.
Isso faz bastante sentido e é possível, por via social e apropriação tecnológica por parte da sociedade, de maneira que a tecnologia não seja um patrimônio exclusivo de poucas empresas detentoras dessa tecnologia e que acabamos terceirizando tudo para elas. Atualmente, essas empresas fazem de tudo, estão em diversas atividades sociais e produtivas, e a sociedade precisa se apropriar dessas tecnologias. Podemos ter uma regulação que faça com que elas se comportem minimamente, prestem contas de acordo com a responsabilidade que elas assumem.
Tem muitas propostas sendo discutidas, tanto no sentido de regulação quanto no sentido de utilizar plataformas com software livre, com códigos que as pessoas podem se apropriar para dar origem a organizações sociais que controlam as plataformas, cooperativas de plataformas. Ou então programas de interoperalidade em que se restringe a operação de algumas empresas a determinadas funções. Com dados interoperáveis, é possível segmentar funções entre diversas empresas, diminuindo o poder de cada uma – legalmente é possível fazer isso de maneira que não tenhamos monopólios. A formação de monopólios é algo natural ao capitalismo, é preciso haver políticas para impedi-los e evitar a concentração de poder e informação.