A internet alimenta novas formas de misoginia

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01 Dezembro 2023

A sociedade retrocedeu no tratamento que dispensa às mulheres e a internet alimenta novas formas de misoginia. É o que afirma a linguista e pesquisadora Deborah Cameron, da Universidade de Oxford, em seu último livro, Language, Sexism and Misogyny, publicado pela Routledge, no qual explica como a linguagem é usada hoje para minar o feminismo e perseguir as mulheres em espaços públicos online e também fora da internet, baseando-se em diversas pesquisas acadêmicas.

A reportagem é de Mayte Rius, publicada por La Vanguardia, 30-11-2023. A tradução é do Cepat.

“O retorno à misoginia clara e aberta é visível tanto na política como na cultura popular”, afirma Cameron, enfatizando que embora a misoginia do século XXI seja considerada politicamente retrógrada, seu estilo e forma de expressão pertencem ao presente.

No livro, analisa tanto figuras claramente misóginas como Donald Trump e Andrew Tate (ex-boxeador e youtuber que se tornou milionário com discursos sobre a superioridade masculina e como alcançar a submissão feminina), como a ascensão de movimentos como tradwife ( que reivindica a volta da mulher tradicional, da dona de casa dos anos 1950) e a manosfera (rede de sites, fóruns e blogs em que se promove a masculinidade tóxica e discursos antifeministas), e figuras públicas que enfrentam o sexismo, como Kamala Harris e Greta Thunberg.

E expõe como a ascensão do TikTok e dos fóruns que facilitam a promoção de ideias misóginas levaram a um aumento das ameaças verbais e dos abusos online contra as mulheres, algo que está condicionando a forma como as mulheres participam da política e da sociedade em geral.

“Para algumas mulheres – por exemplo, aquelas que têm um perfil público em destaque na política, no ativismo ou nos meios de comunicação – tornou-se um problema, pois o medo de serem bombardeadas com ameaças de morte, insultos e violações está fazendo com que muitas se excluam da vida pública” ou a ponderar suas intervenções porque “a linguagem das mulheres é vigiada”, diz Cameron.

Begonya Enguix, antropóloga social e professora da Universidade Aberta da Catalunha, considera que a internet e as redes sociais não criam as dinâmicas misóginas (que já existiam na sociedade), mas acrescentam viralidade e impunidade à transmissão dessas mensagens.

“O machismo e a misoginia encontram nas redes sociais um alto-falante muito privilegiado porque as mensagens circulam com muita rapidez e se espalham em um nível que é inviável em contextos não digitais, e também porque pessoas que nunca ofenderiam ou fariam um comentário machista a uma colega de escritório, sim, sentem-se empoderadas e impunes para fazer esses comentários na internet ou ‘curtir’ um vídeo machista”.

Elisa García Mingo, professora e pesquisadora de sociologia da Universidade Complutense de Madrid (UCM) e coautora do relatório Juventudes na manosfera, do Centro Rainha Sofia da Fundação de Ajuda contra a Dependência de Drogas - FAD, concorda que o anonimato e a sensação de pouco controle social na internet fazem com que as pessoas digam coisas que sabem que não podem ser ditas em voz alta. Contudo, acrescenta que se a misoginia cresce nas redes é porque há criadores de conteúdos que a alimentam, pois viram que existe um nicho de mercado no vitimismo masculino, nas ideias de que o feminismo arruinou a vida dos homens.

“Em pesquisas anteriores com jovens de 18 a 30 anos, vimos que em grupos de WhatsApp onde só há homens, há muito mais desabafos ou piadas machistas, e isso tem a ver com um mal-estar geracional, com o fato de haver uma geração de homens que, por múltiplas crises, não cumprirão os mandatos da masculinidade tradicional: ser o provedor da casa, ter um emprego, ser pai de família... Sendo assim, há uma minoria que vai reproduzindo os princípios mais misóginos que circulam na manosfera e se alinha com valores contrários à igualdade”, afirma García Mingo.

Junto a isso, considera que as plataformas online além de não acabarem com esses conteúdos e tecnoculturas tóxicas, também, devido a seus algoritmos e modelos de governança, “favoreçam essa bílis digital”, contribuam para que circule mais e em maior velocidade e que os conteúdos odiosos e violentos rentabilizem mais do que o resto.

“As redes sociais amplificam algo que existe: uma base social de desigualdade de gênero e de crises de mudança global a todos os níveis - das relações pessoais às relações internacionais – que, em determinados contextos, é lida em termos de pânico moral, de desordem, de fim da família, de declínio da população, de decadência da civilização... e afeta mais os homens como pessoas que veem seus privilégios ameaçados”, aponta Enguix.

E destaca que a misoginia na internet faz parte de acontecimentos que se dão em muitas outras áreas, como no fato de o voto na extrema-direita ser basicamente um voto masculino ou em manifestações e encontros sobre masculinidade promovidas pela irmandade entre homens. “Nossas vidas são ambientes mistos que se retroalimentam, as esferas online e offline não podem ser separadas”, enfatiza.

García Mingo considera que esta retroalimentação produz muito impacto, especialmente sobre os jovens, pois grande parte de sua sociabilidade ocorre na internet e estão normalizando esse ódio e essas tecnoculturas tóxicas - Ativistas pelos Direitos dos Homens (ADH), Homens seguindo o seu próprio caminho (MGTOW, em inglês), Incel (Celibatários Involuntários), Gurus da Sedução (PUA, em inglês)... - e isso faz com que pessoas sejam infamadas, que abandonem as redes e sejam expulsas do espaço público, um fato que tem repercussões do ponto de vista democrático e da visibilidade das mulheres no espaço público digital.

Os dados da Delegação do Governo contra a Violência de Gênero mostram o quão hostil é o contexto digital para as mulheres. Mais de 25% das mulheres entre 16 e 25 anos receberam insinuações inadequadas nas redes sociais. E a pesquisa sobre juventude e gênero realizada pelo Centro Rainha Sofia da FAD, em 2021, concluiu que um em cada cinco homens, entre 15 e 29 anos, considera que a violência de gênero não existe e é uma “invenção ideológica”.

“A partir do final dos anos 1990, havia um consenso para que todas as instâncias sociais trabalhassem juntas para proteger, prevenir e erradicar a violência contra as mulheres e esse consenso e respeito pelas vítimas se rompeu e, agora, não apenas são ditas coisas que durante 20 anos ninguém ousava dizer em voz alta, como também se orgulham em dizer e faz parte de uma forma de estar no mundo, de uma certa masculinidade”, comenta a socióloga da UCM.

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