Tatiane Spitzner, de 29 anos, e Tatiane Rodrigues da Silva, de 30 anos. Uma era advogada e a outra cabelereira, mas o que elas têm em comum? Ambas foram mortas pelos parceiros, vítimas de feminicídio, uma no Paraná e a outra em Minas Gerais. São dois dos inúmeros casos que têm sido noticiados de mulheres que passam a sofrer violência até chegarem a ser mortas. A socióloga Fernanda de Vasconcellos lembra que esses casos todos que vemos nos noticiários ainda são uma pequena ponta do iceberg. Segundo dados do Instituto Maria da Penha, a cada dois segundos, no Brasil, uma mulher é vítima de violência. Para Fernanda, não existe um padrão dessas vítimas. “A violência está presente em todas as classes sociais: o que varia são as formas como o conflito costuma ser administrado pelas partes nele envolvidas”, pontua. Entretanto, a socióloga pondera que “o que as vítimas deste tipo de violência têm em comum é o fato de que, em algum momento de suas trajetórias pessoais, descumpriram alguma expectativa vinculada aos papéis sociais de gênero tradicionalmente atribuídos à mulher: boa esposa, boa mãe, boa dona de casa, possuidora de uma sexualidade ‘controlada’”. Ou seja, se há uma questão de fundo nessas histórias, ela passa necessariamente pela reflexão sobre as questões de gênero e os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Fernanda ainda lembra que os agressores costumam ter em comum a necessidade de reafirmar suas expectativas de gênero, “as quais estão fortemente relacionadas a uma percepção de que a masculinidade deve ser violenta, patriarcal, viril e honrada”. Por isso, embora reconheça avanços nas ações do Estado no que diz respeito à proteção da mulher – vide a Lei Maria da Penha –, a professora acredita que para estancar a chaga da violência contra a mulher é preciso ações mais amplas, embora complexas. “Debates sobre gênero são fundamentais para a existência de uma política de prevenção de violências contra a mulher”, enfatiza. “Não existe a possibilidade de enfrentamento do problema por qualquer via que desconsidere a importância destas discussões no contexto da educação: se o debate for evitado no espaço escolar ou for apresentado de modo a manter uma estrutura social com papéis de gênero tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres (dentro da lógica “menino veste azul e menina veste rosa”), possivelmente seguiremos observando índices crescentes de violência não só contra a mulher, mas também contra grupos que desrespeitam critérios de heteronormatividade”, completa.
A professora ainda faz questão de evidenciar que esse é um debate que tem centralidade na escola, mas que também deve transbordar esse espaço. “É necessária a contínua formação de profissionais que atuam nos diversos âmbitos do sistema de justiça e demais instituições que façam parte da rede de atendimento a mulheres em situação de violência. Sem estas ações de capacitação e aperfeiçoamento, a possibilidade de revitimização é enorme”, adverte.
Fernanda Bestetti de Vasconcellos (Foto: Arquivo Pessoal)
Fernanda Bestetti de Vasconcellos é professora adjunta do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, possui mestrado em Ciências Sociais pela PUCRS e bacharelado em Ciências Sociais pela UFRGS. É pesquisadora visitante no Departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa, no Canadá, e atua como pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal - GPESC e do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos - INCT-INEAC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O ano de 2019 começou com uma série de notícias sobre casos de violência contra mulheres. Vivemos um recrudescimento desses ataques? Ou esses casos são recorrentes, sendo que neste início de ano a imprensa apenas tem dado mais atenção a esses fatos?
Fernanda de Vasconcellos – Podemos dizer, sim, que vivemos um momento em que a violência sofrida por mulheres em seu ambiente doméstico e/ou familiar passa por um processo de acirramento. De acordo com dados da própria Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, por exemplo, ocorreu um aumento de 40,9% em homicídios de mulheres já no ano de 2018, em comparação ao ano anterior.
O aumento de morte de mulheres, perpetradas por homens que fazem ou fizeram parte de seu contexto relacional doméstico ou familiar, não ocorreu somente no Rio Grande do Sul. Estas mortes fazem parte de uma realidade que se estende por todo o território brasileiro e que podem estar vinculadas a situações que se relacionam com características culturais da sociedade brasileira (como o patriarcalismo, por exemplo) e com possíveis reações conservadoras ao que seria um processo (discursivo) de empoderamento feminino, vivenciado no Brasil a partir de meados da primeira década dos anos 2000.
Este crescente processo de exacerbação da violência torna-se objeto de interesse social, em grande parte, pela atenção que a imprensa vem direcionando à questão. De forma similar ao que ocorreu com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha em agosto de 2006, quando começam a ser veiculados na mídia nacional discursos que apontam para a ideia de que “é errado bater em mulher”, com a criação da figura jurídica do feminicídio em 2015, a possibilidade de nomear os homicídios de mulheres motivados pelo não cumprimento de expectativas de gênero deu a imprensa a chance de pautar esta violência de modo mais organizado. Historicamente, mulheres são vítimas de homicídios motivados pela não aceitação do companheiro com o final do relacionamento e as taxas destes crimes crescem anualmente (a despeito da existência de uma lei que criminaliza a violência contra a mulher). Porém, a colocação da figura do feminicídio no nosso ordenamento jurídico permitiu dar uma maior visibilidade social a estas mortes, e não podemos negar que a imprensa tem um papel central neste processo.
IHU On-Line – Existe um padrão no perfil das mulheres vítimas de violência? E com relação ao agressor, existe um padrão? Esses padrões são recorrentes ou também têm se transformado ao longo dos tempos?
Fernanda de Vasconcellos – É complicado afirmar que exista um perfil padrão de mulheres que sofrem violência doméstica ou familiar. Afirmar isso significaria dizer que a violência está relacionada apenas a questões de vulnerabilidade social, uma vez que a maior parte dos casos oficialmente registrados têm como vítimas mulheres que fazem parte de classes sociais menos abastadas. Podemos dizer que a violência está presente em todas as classes sociais: o que varia são as formas como o conflito costuma ser administrado pelas partes nele envolvidas. Neste sentido, fatores como maior escolaridade, existência de recursos financeiros (que possibilitam um acesso mais fácil a serviços de saúde, por exemplo), normalmente, permitem a administração dos conflitos de modo a evitar o acirramento da violência.
O que as vítimas deste tipo de violência têm em comum é o fato de que, em algum momento de suas trajetórias pessoais, descumpriram alguma expectativa vinculada aos papéis sociais de gênero tradicionalmente atribuídos à mulher: boa esposa, boa mãe, boa dona de casa, possuidora de uma sexualidade “controlada”. Quanto aos agressores, eles costumam ter em comum a necessidade de reafirmar outras expectativas de gênero, as quais estão fortemente relacionadas a uma percepção de que a masculinidade deve ser violenta, patriarcal, viril e honrada.
(Arte: Jonathan Camargo | IHU)
O que muda com passar do tempo (de forma bastante lenta, pois estamos falando de expectativas acerca de papéis sociais, algo intrinsecamente ligado à cultura de uma sociedade) são as concepções que os indivíduos internalizam durante suas vidas sobre estes papéis de gênero. Uma mulher divorciada certamente era socialmente julgada de forma mais pejorativa há 30, 40 anos, assim como era socialmente inadmissível um homem dividir as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos com a sua companheira. Ou seja, se nos perguntarmos hoje sobre o que significa ser uma “boa mãe” ou uma “boa esposa”, possivelmente teremos variações nas respostas dadas há 40 anos, o que não significa que tenham deixado de existir expectativas sociais sobre a necessidade moralizante de ser uma “boa mãe” ou “boa esposa” nos dias de hoje.
Porém, quando consideramos o acirramento da violência doméstica e familiar contra a mulher, no momento em que ela se torna letal, é possível dizer que existem marcadores sociais de classe e de vulnerabilidade (situação econômica instável, consumo de álcool e/ou outras substâncias, por exemplo) que comumente estão presentes nos perfis de vítimas e agressores.
IHU On-Line – O quanto a vulnerabilidade social pesa como ingrediente para um contexto de violência contra a mulher?
Fernanda de Vasconcellos – A vulnerabilidade social tem um peso bastante expressivo. Tanto no que se refere à utilização do sistema de justiça criminal para a administração dos conflitos violentos contra a mulher, quanto na transformação do conflito em violência letal. Se passarmos um dia em uma delegacia especializada para o atendimento a mulheres, observaremos que a grande maioria das mulheres em situação de violência que procuram a instituição pertence a classes sociais menos abastadas. Observaremos esse fenômeno também se observarmos as audiências realizadas nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas, novamente, é preciso pontuar que a violência perpetrada contra a mulher em seu contexto doméstico e/ou familiar não é exclusiva de uma ou outra classe social, ainda que os conflitos oficialmente registrados ocorram, em sua grande maioria, em contextos de vulnerabilidade.
Nestes espaços institucionais, as falas de mulheres em situação de violência costumam apontar abuso de álcool, desemprego, impossibilidade de manutenção econômica das partes envolvidas no conflito (se separadas). Muitas dessas mulheres, ainda que estejam buscando a administração do conflito de que são parte pelo sistema de justiça criminal (o qual normalmente não possui condições de atender a expectativas que estejam além de uma resposta baseada na lógica binária culpado/inocente), esperam que o mesmo faça cessar o ciclo de violência da qual são vítimas, mas sem, necessariamente, buscar o fim do relacionamento com o agressor. É algo bastante paradoxal, mas, em grande parte dos casos, o registro criminal em uma delegacia pode significar o acesso (ou informação de como acessar) a serviços de assistência social ou de saúde, os quais poderiam, de alguma forma, prevenir o acirramento de violências sofridas por estas mulheres.
Os casos em que a violência sofrida por estas mulheres é exacerbada, resultando em mortes, normalmente estão ligados à não aceitação por parte do companheiro/ex-companheiro da opção pelo término do relacionamento. Uma maioria expressiva das mulheres vítimas deste tipo de homicídios já havia procurado o sistema de justiça criminal em um momento anterior, seja em um primeiro contato buscando alguma resolutividade para o conflito através da punição do agressor ou não. Esse fato aponta para a dificuldade das instituições de segurança pública, responsáveis pela proteção da mulher em situação de violência, em atender a demanda por proteção de parte de sua clientela.
IHU On-Line – Quais foram os maiores avanços do Estado no que diz respeito à prevenção e punição nos casos de violência contra a mulher?
Fernanda de Vasconcellos – A entrada em vigor da Lei Maria da Penha em 7 de agosto de 2006 configura-se em uma importante conquista referente ao reconhecimento formal do Estado brasileiro da extensão do fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa conquista representa o que pode ser denominado como uma vitória da luta encabeçada pelo movimento feminista brasileiro, a qual foi iniciada nos anos 1970 e fortalecida com o processo de reabertura política do Brasil nos anos 1980, que denunciava a existência de uma cultura patriarcal nacional que possibilitava um tratamento discriminatório em relação às mulheres e leniente em relação aos homens agressores.
A criminalização das violências física e psicológica contra a mulher em seu espaço privado apresentou-se como opção tomada pelo Estado para dar visibilidade, prevenir, proteger e punir os conflitos violentos que foram reconhecidos pela legislação. Neste sentido, foi prevista a articulação entre governo federal, governos estaduais e municipais, de modo a possibilitar a implementação de uma rede de assistência e proteção às mulheres em situação de violência. Considerando a violência contra a mulher um fenômeno complexo e multifacetado, a Lei previu a integração de diversas instituições formais ligadas ao sistema de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde. Além do desenvolvimento de uma rede que oferecesse serviços de forma integrada, a Lei Maria da Penha previu um processo contínuo de qualificação dos profissionais envolvidos no atendimento às mulheres em situação de violência, no sentido de garantir a prestação de serviços capazes de promover os objetivos da Lei.
Independentemente da existência de análises favoráveis ou desfavoráveis às previsões legais e opções formais de administração de conflitos abarcadas pela Lei Maria da Penha, sua entrada em vigor e o funcionamento das estruturas previstas no sistema de justiça criminal e segurança pública não ocorreu sem entraves. Para além de todos os procedimentos de capacitação de profissionais que atuam no atendimento às mulheres em situação de violência, da criação de redes de atendimento e proteção eficazes, disponibilização de serviços vinculados à assistência social e saúde previstos na Lei, os quais não ocorreram de forma a proporcionar a efetividade pretendida pela mesma, a criação de novos procedimentos burocráticos e de novas atribuições para o sistema de justiça criminal acabaram por revelar efeitos imprevistos da mesma.
IHU On-Line – Quando da sua instituição, a Lei Maria da Penha freou os índices, diminuindo casos de violência. Entretanto, um período depois da vigência da Lei, os casos voltaram a crescer. Que leitura a senhora faz desse cenário?
Fernanda de Vasconcellos – É bastante complicado dizer que os índices de violência contra a mulher tenham sido freados em algum momento, mesmo com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha. O que se viu, na prática, foi uma explosão na demanda pelo atendimento nas DEAMs (Delegacias Especializadas para o Atendimento de Mulheres), a qual, no primeiro ano da Lei, significou mais do que o dobro de registros policiais de casos de violência, se considerarmos o caso da DEAM de Porto Alegre (parte substancial de tal acréscimo pode ser explicada pelas crescentes campanhas informativas criadas a partir da Lei Maria da Penha, voltadas para propiciar o conhecimento da mesma pela população brasileira, buscando dar visibilidade ao problema da violência contra a mulher e prestar informações àquelas em situação de violência sobre seus direitos de atendimento e proteção). Mas isso também não significa que os casos de violência contra a mulher tenham mais do que dobrado na época.
Pesquisadores da temática geralmente concordam que existe uma cifra oculta enorme relacionada aos casos de violência contra a mulher. Isso significa que existe uma parcela enorme de casos que não chegam ao conhecimento do sistema de justiça criminal. Logo, os índices deste tipo de violência possivelmente são mais elevados do que aqueles oficialmente registrados.
Os dados são mais precisos se pensarmos nos casos em que a violência é acirrada e torna-se letal. E se observarmos os índices anuais desses crimes, podemos observar que há um crescimento exponencial no Brasil (sendo apresentadas quedas nos índices de mortes de mulheres brancas e aumento de mortes de mulheres negras). Neste sentido, se há um crescimento anual de homicídios de mulheres, não se pode dizer que a Lei Maria da Penha conseguiu, em algum momento, frear os casos de violência contra a mulher.
Este cenário de crescimento das taxas de violência demonstra as limitações do sistema de justiça criminal de lidar com o problema e a permanência de características patriarcais e violentas da sociedade brasileira. O ato de criminalizar uma conduta ou aumentar as penas previstas para outras já existentes tem se mostrado uma estratégia bastante ineficaz para a diminuição de violências e/ou crimes em contextos em que sua aplicação se dá de modo isolado. E ainda que algumas experiências ligadas às áreas da saúde, educação e assistência social tenham sido (parcamente) realizadas, a emergência do conflito penal acaba por “engolir” as outras lógicas de administração. Aderir à lógica do direito penal enquanto mecanismo central de resolução de conflitos satisfaz em muito a demanda da sociedade por punição, o que não significa de maneira alguma que resultará em eficácia no que se refere à prevenção de novos crimes.
IHU On-Line – Quais as limitações da administração dos conflitos conjugais violentos através da utilização do Direito Penal? E quais os desafios para superar esses limites?
Fernanda de Vasconcellos – Pode-se dizer que uma das inovações trazidas pela Lei Maria da Penha esteve relacionada à tentativa de observar a violência doméstica contra a mulher como um fenômeno complexo, como imerso em uma realidade permeada por conflitos de natureza cível e criminal. Esta leitura parece bastante apropriada no sentido de que tenta ultrapassar a dinâmica de fragmentação de um processo que, normalmente, necessita de soluções que deem conta não só de um crime, mas orientem formalmente as separações, o convívio das partes em conflito com os filhos comuns e a manutenção econômica dos mesmos e a divisão de bens existentes. Com isso, esperava-se dar celeridade aos casos e simplificar o processamento.
A urgência da questão criminal acabou por organizar as atividades de modo a deixar os demais conflitos para depois. Uma das consequências disso é o pouco espaço das audiências destinado à discussão do processo de reestruturação dos laços entre as partes, nos casos em que esta é necessária pela existência de filhos comuns. A prioridade do conflito criminal direcionou os contornos do juizado, sendo os demais conflitos cíveis pré-discutidos, parcamente mediados e posteriormente encaminhados para uma vara de família, a fim de que sejam homologados por outro(a) magistrado(a).
A tentativa da Lei Maria da Penha de romper com o paradigma que tradicionalmente separa as esferas criminal e cível obriga a utilização de uma lógica bastante confusa nas audiências referentes aos conflitos abarcados pela legislação, a qual primeiramente (para tratar da questão penal) impossibilita o uso de mecanismos de mediação e, posteriormente (para tratar das questões cíveis/de família), se volta para a máxima aplicação possível da mediação do conflito entre as partes envolvidas. A impossibilidade desta lógica de relevar as necessidades e as possíveis demandas das mulheres em situação de violência doméstica, que costumam estar voltadas para outra direção daquela da utilização de um código binário culpado(a) versus inocente pode ser apontada como uma limitação central da Lei Maria da Penha.
Acompanhada dessa limitação, a inexistência de uma rede adequada de serviços vinculados à assistência social e saúde também é frequentemente apontada como uma das principais fragilidades do contexto de aplicação da Lei Maria da Penha. Novamente, pode-se ler esta situação como uma consequência da lógica penal invadindo os demais contextos em que estão imersos os conflitos domésticos violentos, a qual está materializada no fortalecimento de uma rede de serviços vinculados à segurança pública e justiça penal e na pouca atenção dirigida aos programas de assistência social e saúde, que são frequentemente citados pelos diversos operadores/gestores como insuficientes.
É pouco provável que uma mulher em situação de violência doméstica encontre uma solução (que considere adequada) para o seu problema no sistema de justiça penal, já que a motivação para violência sofrida tem, para além da desigualdade de gêneros, uma origem social. A resposta que é dada pelo Direito Penal configura-se em um auxílio pontual e secundário, o que, geralmente, resulta na frustração das expectativas da vítima (sendo que essa experiência certamente será relevada se ela necessitar procurar o sistema de justiça penal novamente).
A lógica do Direito Penal não leva em consideração a relação íntima existente entre as partes e não é capaz de levar em conta os sentimentos das mulheres em situação de violência ou suas necessidades, já que as mulheres atendidas não procuram no sistema de justiça formal, necessariamente, a condenação criminal ou mesmo a separação de seus parceiros. A administração dos conflitos violentos familiares e/ou domésticos através da justiça penal coloca frente à frente pessoas com um histórico afetivo anterior, não redutível a uma lógica binária (culpado versus inocente, vítima versus agressor). Além disso, essa lógica exige que as figuras de vítima e agressor envolvidas nos conflitos configurem-se em elementos estanques, desconsiderando o caráter dinâmico das relações anteriores das quais são membros as partes do processo. As dinâmicas relacionais que desembocam nos casos de violência doméstica e familiar são muito mais complexas do que isso.
As questões sobre as limitações do Direito Penal enquanto mecanismo de prevenção de violências vêm sendo discutidas desde os anos 1960, a partir de uma virada criminológica iniciada pelo labeling approach, que demonstraram que os efeitos do etiquetamento produzido pelos processos de criminalização acabam por engendrar efeitos não previstos pelo sistema penal de aumento da violência e da criminalidade. Mesmo no contexto brasileiro, não são raros os estudos que apontam para o crescimento ou manutenção de taxas de criminalidade, ainda que penas maiores sejam previstas. Um exemplo emblemático é o da legislação (Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos) que fixou, na década de 1990, a obrigatoriedade de cumprimento de toda a pena de prisão em regime fechado, nos casos de cometimento de crime hediondo. Este endurecimento não foi acompanhado de uma redução das taxas de homicídio, o que era um efeito esperado.
Nesta linha de raciocínio, pensar na inclusão da qualificadora feminicídio nos homicídios de mulheres, a qual aumenta substancialmente a previsão de pena máxima para o crime, enquanto política de enfrentamento e prevenção de novos casos pode nos levar a um questionamento sobre sua efetividade. Sem dúvidas, esta “categoria” tem se mostrado bastante útil para dar visibilidade social ao fenômeno, mas ainda existem muitas indagações a serem feitas se a observarmos como estratégia de prevenção.
Ainda que não seja apresentada uma eficácia no que se refere à redução das violências às quais está direcionada, a criminalização de um comportamento considerado inadequado (ou agravamento da punição prevista) tem o papel de dar visibilidade a um problema social. Neste sentido, mesmo que o conteúdo moral fixado formalmente (em forma de lei penal) não garanta a não realização destes comportamentos, ele tem como mensagem a condenação da sociedade de uma conduta que considera injustificável.
Quando se parte deste ponto, não se percebe como condenável a demanda de movimentos sociais (como é o caso do movimento LGBT e do próprio movimento feminista) direcionada para a criação de tipos penais que condenem a violência à qual seus membros estão expostos. Criminalizar a homofobia, a violência cometida no espaço doméstico contra a mulher, significa, deste modo, denunciar as agressões sofridas por indivíduos que não seguem um padrão de comportamento considerado ajustado pelos seus agressores.
A demanda por criminalização vinda dos movimentos sociais pode ser lida como um esforço para que o Estado efetive os direitos humanos destes grupos, que a sociedade como um todo os reconheça. A utilização do Direito Penal configurar-se-ia em uma estratégia para a promoção de direitos já garantidos desde a Constituição Federal de 1988, mas não distribuídos a estes grupos. Portanto, não há como questionar a legitimidade desta demanda.
IHU On-Line – A senhora pesquisou o atendimento de mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência pelo sistema de segurança pública em Porto Alegre, Belo Horizonte e Distrito Federal. O que essa experiência revelou?
Fernanda de Vasconcellos – A experiência de realizar esta pesquisa em rede foi bastante importante no sentido de comprovar algumas hipóteses que foram sendo formuladas desde o ano de 2007, ano em que comecei a acompanhar o processo de implementação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar em Porto Alegre e o atendimento dado a mulheres em situação de violência na DEAM. Essas hipóteses estavam vinculadas à percepção de que a realidade vivida pelas instituições responsáveis pelo atendimento e administração de casos de violências perpetradas contra grupos vulneráveis estava bastante distante daquilo previsto nas legislações que ordenavam o tratamento destes casos (e que isso ocorreria em grande parte do território brasileiro).
O que pode ser observado foi a existência de uma fragmentação do atendimento e de dificuldade das instituições em promoverem políticas de atenção integradas, intersetoriais e com a abordagem de gênero/geracional de forma interseccional com raça/etnia e outros marcadores da diferença social. De maneira geral, e nas três capitais, observou-se que não existem protocolos compartilhados para o atendimento, a investigação e o encaminhamento dos casos para a rede de atendimento.
Claro que existem experiências que se mostraram interessantes. Neste sentido, é possível destacar o trabalho realizado pela Patrulha Maria da Penha, desenvolvida pela Brigada Militar no Rio Grande do Sul e depois disseminada em diferentes estados brasileiros. Ainda assim, devemos considerar que a expressiva maioria destas experiências ou programas desenvolvidos pelas instituições de segurança pública apresentam contornos distintos no decorrer de sua atividade, uma vez que mudanças de gestões redefinem prioridades institucionais e percepções sobre como o trabalho deve ser organizado. Logo, é possível que as dinâmicas desenvolvidas pelas instituições pesquisadas na época apresentem algumas características distintas daquelas observadas, dadas mudanças de governos, restrições orçamentárias etc.
IHU On-Line – Os debates e abordagens acerca das questões de gênero podem impactar os casos de violência contra a mulher? De que forma?
Fernanda de Vasconcellos – Debates sobre gênero são fundamentais para a existência de uma política de prevenção de violências contra a mulher. Não existe a possibilidade de enfrentamento do problema por qualquer via que desconsidere a importância destas discussões no contexto da educação: se o debate for evitado no espaço escolar ou for apresentado de modo a manter uma estrutura social com papéis de gênero tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres (dentro da lógica “menino veste azul e menina veste rosa”), possivelmente seguiremos observando índices crescentes de violência não só contra a mulher, mas também contra grupos que desrespeitam critérios de heteronormatividade.
Sem trabalharmos no contexto educacional tais questões, estamos fadados a seguir “enxugando gelo”. Digo isso, porque são exatamente as expectativas sociais acerca do cumprimento de papéis tradicionais de gênero que motivam, na maioria esmagadora dos casos, os casos de violência contra a mulher. E essas expectativas também são responsáveis pelo tipo de atendimento que uma mulher vítima de violência irá receber no sistema de justiça criminal. A observação sistemática destes atendimentos mostra que mulheres em situação de violência são tratadas de modo distinto: estes processos de classificação são organizados por uma moral tradicional (bastante próxima daquela que torna socialmente legítima a violência doméstica contra a mulher) que percebe como merecedoras de atenção mulheres que atendem ao socialmente esperado (que sejam mães de família, demonstrem uma sexualidade passiva e sejam heterossexuais, que cuidem dos filhos e mantenham a casa organizada etc.). A imagem da mulher como sujeito passivo e como vítima é reforçada pelo sistema de justiça penal, e aquelas que não correspondem a este ideal moralizador são percebidas como sujeitos que não necessitam da proteção da Lei.
Neste sentido, para além do espaço escolar, é necessária a contínua formação de profissionais que atuam nos diversos âmbitos do sistema de justiça e demais instituições que façam parte da rede de atendimento a mulheres em situação de violência. Sem estas ações de capacitação e aperfeiçoamento, a possibilidade de revitimização é enorme.
IHU On-Line – Quais os caminhos para superar essa chaga da violência contra a mulher? Qual o papel do Estado, do Direito e da sociedade civil na busca pela superação desse drama?
Fernanda de Vasconcellos – Não existe nenhum caminho fácil, rápido ou mágico e, possivelmente, a forma de administração dos conflitos priorizada pelo Estado não tem se mostrado capaz de dar conta do problema. Relegar ao direito penal (ou mais especificamente ao sistema de justiça criminal e instituições de segurança pública) a responsabilidade de prevenir a violência contra a mulher é algo bastante perigoso e vem se mostrando uma prática ineficiente.
Possivelmente, a resposta para este problema esteja no incentivo ao debate sobre papéis de gênero no espaço escolar (mediado por profissionais preparados para esta atividade, sob o risco de reprodução de preconceitos e/ou expectativas que são eles mesmos motes para a violência doméstica e familiar contra a mulher) e em outros âmbitos do espaço público também. Se a sociedade foge deste debate, não há questionamento. É lógico que não se trata de um debate simples. Questionar ou discutir os papéis tradicionais de gênero significa disputar poderes que estão historicamente atrelados ao masculino em nossa sociedade. É um questionamento que implica criticar estruturas sociais que colocam a mulher no polo da passividade, da domesticidade, da sexualidade controlada.
O Estado tem um papel muito importante no enfrentamento da violência contra a mulher. E esta atuação está vinculada à consecução de uma agenda de políticas públicas interseccionais para atenção a mulheres em situação de violência ou vulnerabilidade social. Infelizmente, esta não é uma atuação a ser vislumbrada se os próprios representantes do Estado pautam políticas de governo em torno da retirada da discussão de gênero no espaço escolar, da crítica à existência de um Estado laico, do reconhecimento de que existem muito mais cores do que o “rosa” e o “azul”.
IHU On-Line – É possível presumir algum impacto na violência doméstica com a publicação do Decreto 9.685/2019, que regulariza e amplia a posse de armas? Quais?
Fernanda de Vasconcellos – O decreto lançado pelo presidente Jair Bolsonaro possivelmente seja um elemento de aumento de morte de mulheres no seu ambiente doméstico familiar sim. Se pararmos para pensar friamente no decreto, verificaremos que ele tem um efeito muito mais simbólico do que prático no que tange à possibilidade de obtenção de armamento pelas pessoas. Na prática, o decreto não vai modificar o Estatuto do Desarmamento, porque isso de fato não pode ser feito por decreto. Por isso acredito que, na prática, se tem um efeito muito mais simbólico no que diz respeito ao atendimento de uma demanda das pessoas que votaram no Bolsonaro, que tinha todo esse discurso armamentista.
Esse decreto parece dar conta, também, de uma demanda de uma indústria armamentista. Basta observar que o decreto vai possibilitar que pessoas tenham até quatro armas dentro de casa – o que parece uma coisa totalmente sem sentido. Veja: a pessoa tem duas mãos, como isso vai funcionar? Nesse decreto, se fala também na necessidade de pessoas que terão a posse da arma de fogo, e que se na sua residência existam crianças, ou pessoas com algum tipo de problema mental, que seria necessário a existência de um cofre, onde seria possível se manter o armamento. É uma coisa totalmente maluca, porque, ao mesmo tempo que se diz isso, o próprio presidente diz que não vai haver uma fiscalização para ver se essa regra está sendo cumprida. Com isso, vemos que o discurso simbólico que está por trás é de que se pode ter a posse de arma e que não haverá uma grande fiscalização a respeito disso. Por isso considero um efeito simbólico muito grande, muito mais do que modificar as exigências para poder se ter a posse da arma de fogo.
Em relação à situação das mulheres, se pensarmos um pouco mais, olhando os dados veremos que a grande parte das mulheres que foram mortas no âmbito doméstico e familiar foram mortas por arma de fogo. Os casos que foram tentativa de homicídio, em que o agressor não consegue matar a vítima, observamos que não foram perpetrados por arma de fogo. Ou seja, se pegou a arma de fogo, infelizmente a mulher será vítima de homicídio.
Então, a possibilidade é que haja um aumento dessas mortes se de fato for facilitada a posse da arma de fogo. Porque a arma não tem um outro sentido. O ministro Onyx Lorenzoni fez uma comparação absurda falando que arma seria como um liquidificador. É um absurdo esse tipo de comparação, porque a arma tem um único sentido de existir, que é matar. Não precisamos entrar nisso, mas o liquidificar obviamente não foi feito para matar. Ainda que a sociologia não se preste a fazer futurologia, a hipótese de que haja um grande aumento de mortes de mulheres dentro do espaço doméstico e familiar a partir da facilitação da posse de arma de fogo é real, é algo que precisa ser pensado.