24 Março 2010
O professor Nelson Pretto disseca alguns conceitos relacionados ao uso da Internet, como a ideia da gratuidade, a chamada crise da propriedade e, ainda, a ética hacker. Segundo ele, falta à sociedade “um jeito hacker de ser”. “O hacker age a partir de uma ética que não seja da sobrevivência, mas que tenha no direito à vida o seu princípio fundamental, onde a preocupação com o outro tenha uma presença intensa”, afirmou ele durante a entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
Quando trata da questão da pirataria, Pretto deixa claro que é preciso tomar mais cuidado ao se usar esse termo, uma vez que ele dá uma ideia de que se deseja “saquear” algo. “O papel dos hackers é superimportante exatamente nesta perspectiva de fazer com que esse conhecimento circule de forma mais generalizada”, afirmou.
Nelson Pretto é graduado em Física e mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Na Universidade de São Paulo, realizou o doutorado em Comunicação. É pós-doutor pela University of London e pela Nottingham Trent University (Inglaterra). Atua como membro do Conselho Estadual de Cultura do Governo do Estado da Bahia e como Consultor Ad Hoc da Universidade de São Paulo. É professor da UFBA. É autor de obras como Do Meb à Web: o rádio na educação (Belo Horizonte: Autentica, 2010), Uma escola sem/com futuro: educação e multimídia (Campinas/SP: Papirus, 2009) e Escritos sobre Educação, comunicação e cultura (Campinas: Papirus, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma o conceito de “free” se relaciona com a atual “crise da propriedade” nesta era pós Internet?
Nelson Pretto – Acho que não há uma crise de propriedade. O que temos é uma movimentação ativista dos cidadãos, querendo mais liberdade, não aceitando a pressão das empresas que, no fundo, não produzem e ficam com os direitos daqueles que produzem, dos criadores de cultura e conhecimento. Não existe crise, existe uma discussão para que retomemos o direito sobre a produção daquele que tem a propriedade, e que este possa fazer tudo que bem quiser com ela e dela.
A ideia do “free” é a de conseguir novos mecanismos para fazer com que a produção de cultura e de conhecimento, em diversos campos do saber, se dê com algum tipo de remuneração, que não seja associado diretamente ao produto que está sendo produzido e circulado. Compreendo que o que está em jogo, na verdade, é um princípio do compartilhamento, da generosidade, que precisa ser ressaltado no lugar de uma lógica de impedir que esses recursos possam circular mais facilmente por conta do digital.
O avanço das pesquisas em torno da digitalização de todos esses processos fez com que consigamos fazer circular esse material mais facilmente e, com isso, trabalhar com eles de forma mais intensa na busca de uma melhoria do conhecimento e da informação de todo o planeta. Infelizmente o que estamos vendo, e vimos se intensificar ao longo dos últimos anos, é um verdadeiro cerco a todas as possibilidades de liberdade que a Internet trouxe, e traz, para a população.
IHU On-Line – A gratuidade também contribuiu no aumento das produções caseiras. O marketing viral pode contribuir para a banalização da informação?
Nelson Pretto – Para a banalização, não. Claro que contribuiu de forma muito intensa para um espalhamento das fontes produtoras. E diferente do que alguns autores acham, acredito que esse poder a nós amadores é algo absolutamente importante. O que é mais importante ainda é que ele não tira, em hipótese alguma, um valor fundamental dos profissionais especializados em cada uma das áreas, da música, do cinema, do teatro, do jornalismo etc. Pelo contrário, coloca-os no devido lugar, de serem profissionais, que vamos buscar pela qualidade do que produzem, mas, ao mesmo tempo, vamos buscar o produto em outras fontes, que são exclusivamente aquelas desses tradicionais meios geradores desses produtos.
Isso tem gerado, no ponto de vista da produção, há um aumento ainda em potencial, porque depende de condições concretas e infraestruturais. Há um aumento e uma proliferação dessa produção. O exemplo dos pontos de cultura, essa adequada e correta política pública do governo Lula, através do Ministério da Cultura, tem demonstrado isso. Termina sendo uma amostra da diversidade de produções que são feitas pelo Brasil a fora, e que a grande mídia acaba nunca mostrando.
Por outro lado, há uma outra frente que se abre: o poder do consumidor, do cidadão ativista, de reclamar seus direitos. Agora eu mesmo estava usando sites como Reclame Aqui e Defesa do Consumidor justamente por conta de problemas com duas grandes empresas, como a Asus [1] e a Consul [2], que desrespeitam o consumidor e, um tempo atrás, não havia onde reclamar. O espalhamento de possibilidades de nos expressarmos é um avanço para a democracia, e esse avanço se dá pelo aumento dos espaços de direitos e da nossa capacidade de deixarmos de ser meros atores, muitas vezes apenas coadjuvantes, e passarmos a ser autores de todos esses processos produtivos de cultura e conhecimento.
IHU On-Line – Como as redes virais podem contribuir para a descentralização do poder comunicacional?
Nelson Pretto – A partir do momento que a moçada “meter a mão na massa” e se apropriar das redes. Devemos ficar atentos para quando essas redes, que são suportadas por grandes empresas de grandes conglomerados, facilitam a montagem dessas redes e nos possibilitam ter esse comportamento viral. Ao mesmo tempo, devemos também estar atentos para não ficarmos dependentes de uma rede ou suporte, especificamente, porque, como eles estão sendo suportados por empresas, muitas vezes, estas empresas podem querer modificar lógicas ou princípios da própria rede, que não interessam a nós consumidores e cidadãos ativistas.
Temos que ter capacidade e agilidade para percebemos qualquer tipo de manobra para nos aprisionarmos nestas redes. Temos que ter a capacidade para dar um sinal na rede, e imediatamente migrarmos para outras que tenham princípios abertos e livres explicitados, até que um dia venham a se fechar. O que aconteceu com o Twiki [3] é um exemplo disso. Ele vinha num movimento aberto muito grande, e, há dois anos, um grupo que estava à frente dele resolveu dar uma guinada de direção. A turma se rebelou, não aceitou e abriu uma segunda vertente, o Foxwiki [4], uma nova plataforma, a partir dos mesmos princípios daqueles que quiseram aprisionar o que foi criado livre. Acho que é essa nossa capacidade e habilidade ativista que precisa estar sempre atenta e presente.
IHU On-Line – A pirataria tem se mostrado efetiva na disputa contra a privatização do conhecimento?
Nelson Pretto – É importante clarificarmos o que está sendo chamado de pirataria. Gosto muito de usar uma expressão de Alexandre Oliva, da Fundação Software Livre América Latina (FSFLA), que diz: “Querem fazer crer que trocar arquivos na Internet é o mesmo que saquear um navio”. Temos que ter muito cuidado com essas expressões de pirataria, rádio pirata e coisas do gênero. Na verdade, o que estamos vendo é um ‘pegar nas mãos’ daqueles conhecimentos que estão aprisionados pelas grandes empresas e produtores, que não querem possibilitar esse tipo de circulação de material.
Estamos quebrando esses cadeados, e o papel dos hackers é superimportante exatamente nesta perspectiva de fazer com que esse conhecimento circule de forma mais generalizada. Isso enquanto as iniciativas menos forçadas não vão se implantando, como os movimentos de música livre, o Jamendo [5] e o Technobrega [6]. Isso, também, enquanto não implantam de forma mais intensa os projetos de arquivos abertos, como o das revistas que estão capitaneadas pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBCT) que traduziu o software desenvolvido pelo Publicnologic e que tem tido um crescimento muito grande, o serviço de editoração eletrônica de revista.
Temos que atuar neste momento intermediário nas diversas frentes, simultaneamente. É, mais ou menos, como no campo acadêmico. Não podemos deixar de apoiar a CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, em seu investimento no portal de periódicos. Porém, a CAPES também deve fazer um investimento muito forte na defesa dos sistemas abertos, de tal forma que, quando tivermos as principais revistas do mundo migrando para os sistemas abertos de revista, não precisemos pagar, como o governo brasileiro paga, para as grandes editoras de revistas acadêmicas. Isso possibilita a nós, professores universitários, termos acesso às pesquisas de ponta que são publicadas nestas revistas.
IHU On-Line – A respeito do crescimento das práticas colaborativas, que mecanismos poderíamos apontar como destaques nesta área?
Nelson Pretto – Acho que o movimento que o Ministério da Cultura vem fazendo em torno do “Cultura Viva”, é algo que tem contribuído muito com todos esses movimentos como Música para Baixar, Cultura Digital.br, o Creative Commons, e tantos outros que vão surgindo. Um movimento interessante, específico no campo da educação, é o que aconteceu, no ponto de vista do software livre, com as plataformas de educação à distância.
Num primeiro momento, vimos uma intensificação do uso de plataformas proprietárias para a educação. Hoje, o que estamos observando é um crescimento assustador, do ponto de vista positivo, no número de usuários do sistema Moodle [7], um software aberto mundialmente conhecido. Para termos uma ideia, na Universidade Federal da Bahia, que não é o melhor exemplo de educação à distância, o Moodle tem 24 mil usuários cadastrados. É fácil ver o crescimento do Moodle no mundo, mostrando o uso mais intenso dessas plataformas.
Por outro lado, o que temos visto, e aí o papel da educação é muito forte, é um grande uso dessas plataformas colaborativas na educação, crescendo de forma bastante grande, mas ainda tímida para aquilo que precisaríamos para a educação, exatamente porque, do meu ponto de vista, pensar em educação e não pensar em colaboração é uma absoluta contradição. A lógica da educação tem que ser sempre da partilha e, por isso, usar software livre, pensar em licenças livres e abertas é absolutamente fundamental.
IHU On-Line – Como o uso de software livre, atrelado à inclusão digital, pode auxiliar no processo de globalização contra-hegemônica?
Nelson Pretto – O software livre é um movimento importante porque é necessário que se tenha acesso aos códigos fontes. Isso permite que aqueles que sabem trabalhar com esses códigos e melhorem nossos acessos, e possam ter acesso ao coração dos softwares sem ter que pedir licença a alguém. Por isso, defendo que temos que ter um uso de software de código aberto de tal forma que a rede seja ampliada, garantindo a criação de novos produtos com autonomia. O software livre é, portanto, importante do ponto de vista de sistemas operacionais e ainda mais porque está associado a uma ética conhecida como hacker. Essa ética tem como principio a ideia de colaboração e generosidade.
Estes princípios são fundamentais. Por isso, todos os educadores deveriam trabalhar com software livre. A Internet é um patrimônio da humanidade, e não um serviço que tem que ser comprado. Por isso, defendo de forma intransigente a ideia de um plano nacional de banda larga democrática que possibilite a todos o acesso igual a essas tecnologias. Atualmente, esse acesso se dá de uma forma muito cruel. Para o filho dos ricos, se dá efetivamente com uma imersão na cibercultura. Essa meninada fica trancada dentro do seu quarto com computadores de última geração conectados em banda larga que custa uma fortuna com acesso gratuito, 24 horas por dia, podendo baixar diferentes tipos de arquivos, acessando sites de relacionamento, serem efetivamente a geração “ALT+TAB”, ou seja, aquela geração do multiprocessamento que a gente defende. Enquanto que, para os filhos dos pobres, o que encontramos, geralmente, é o acesso na escola ou no telecentro onde tudo é proibido.
IHU On-Line – A quantas anda o uso de softwares no Brasil?
Nelson Pretto – Está acontecendo um crescimento absurdo. O exemplo do moodle é muito bom, embora muitas pessoas não saibam, o que não é um problema, que este é um software de código aberto. O crescimento do Firefox [8] e do BROffice [9] e outros tantos softwares dá a sensação que temos políticas públicas corretas, do ponto de vista do governo federal, mas são políticas muito desarticuladas. Ainda assim, são políticas concretas que têm apoiado o uso do software livre. Considero o portal do Software Público Brasileiro um projeto com importância fenomenal, nesse sentido, porque é um projeto de qualificação do Estado brasileiro para que não dependa de empresas proprietárias de softwares. Creio que estamos avançando, mas temos que avançar muito mais na educação e na ciência e tecnologia, mas estamos num bom caminho. Espero que os leitores também sejam mais ativistas nessa luta por uma educação, ciência e cultura com um jeito mais hacker de ser.
IHU On-Line – O que seria “um jeito mais hacker de ser”?
Nelson Pretto – Um jeito mais hacker de ser é agir a partir da colaboração, da generosidade e dos princípios do compartilhamento, como ideias lógicas fundamentais. Ou seja, o hacker age a partir de uma ética que não seja da sobrevivência, mas que tenha, no direito à vida, o seu princípio fundamental, onde a preocupação com o outro tenha uma presença intensa. O que os hackers querem é tomar as máquinas nas mãos para melhorá-las. Isso é um jeito hacker de ser. Aqui, na universidade, temos uma disciplina, ministrada junto com o professor Sergio Amaral, da Unicamp, chamada Ética Hacker e Educação, em que discutimos os princípios da ética hacker e as necessidades de articulação dela com a educação.
Notas:
[1] ASUS é uma empresa de Taiwan especializada na fabricação de hardware.
[2] A Consul é uma empresa de Santa Catarina que fabrica eletrodomésticos. Atualmente, a Consul pertence ao grupo americano Whirpool, maior fabricante de eletrodomésticos do mundo e com vendas anuais de mais de US$ 19 bilhões. No Brasil, o grupo é também dono da marca Brastemp.
[3] O TWiki é uma ferramenta de escrita colaborativa na web que consiste em possibilitar várias pessoas, separadas geograficamente, de interagir criando conteúdo, utilizando apenas um navegador. Através do TWiki, é possível desenvolver documentação em formato de hipertexto através da Web, de uma forma dinâmica e sem a necessidade de software especializado.
[4] O FoxWiki é uma tentativa de integrar XWiki comum em ações do navegador Firefox.
[5] Jamendo é um site para a distribuição de músicas livres, licenciadas sob Creative Commons ou Licença da Arte Livre. Lá, artistas podem disponibilizar material gratuitamente, e usuários podem obter acesso legal à obra, também sem custo.
[6] O Technobrega é um gênero musical popular do estado do Pará que surgiu em 2002. Tem como característica festas das aparelhagens com DJs, produtores caseiros e vendas alternativas de CDs através de camelôs, para uma difusão mais rápida das músicas e de acordo com o artista.
[7] O Moodle é um software livre de apoio à aprendizagem, executado num ambiente virtual. O conceito foi criado, em 2001, pelo educador e cientista computacional Martin Dougiamas. Voltado para programadores e acadêmicos da educação, constitui-se em um sistema de administração de atividades educacionais destinado à criação de comunidades on-line, em ambientes virtuais voltados para a aprendizagem colaborativa.
[8] Mozilla Firefox é um navegador livre e multiplataforma, desenvolvido pela Mozilla Foundation com ajuda de centenas de colaboradores.
[9] BrOffice.org é o nome adotado no Brasil da suíte para escritório OpenOffice.org. A mudança do nome surgiu em função de um processo movido pela BWS Informática, uma microempresa de comércio de equipamentos e prestação de serviços de informática do Rio de Janeiro que anteriormente já havia registrado a marca Open Office, sob a alegação de que o nome OpenOffice.org, mesmo não sendo exatamente igual, poderia causar confusão aos usuários.
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Um jeito mais hacker de ser. Entrevista especial com Nelson Pretto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU