17 Novembro 2023
O especialista francês em direito trabalhista Alain Supiot questionou o anarcocapitalismo que busca “romper as solidariedades do Estado social” representadas nos serviços públicos, na seguridade social e nos sindicatos, ressaltando que constituem um marco institucional sem o qual as crises e a violência se intensificam.
A reportagem é de Ignacio Ortiz, publicada originalmente por Télam e reproduzida por El Destape, 12-11-2023. A tradução é do Cepat.
Em uma entrevista à Télam por ocasião da apresentação de sua obra selecionada pela editora Siglo XXI, Supiot analisa as novas formas de trabalho à luz da revolução digital que, devido ao seu impacto social, equipara à segunda revolução industrial e que implica um novo imaginário de trabalho.
Em uma implícita visão do contexto local, o especialista alerta para os riscos de “fazer tábula rasa” e “romper as solidariedades do Estado social”, pois isto implica deixar de lado “o direito sindical, as greves e as negociações coletivas como instrumentos que nos permitem dizer que não concordamos com a distribuição do trabalho e a riqueza”.
O estudioso expõe em sua obra, parte da qual se reflete no livro de recente publicação local, El trabajo ya no es lo que fue, a necessidade de romper a lógica mercantilista que domina o emprego e colocar a pessoa no centro, em uma nova visão que integre realidades como o desemprego e a informalidade.
“A necessidade de reconsiderar a questão do trabalho está ligada à revolução digital, uma revolução técnica de uma dimensão ao menos tão grande como a da segunda revolução industrial e que traz um novo imaginário de trabalho, uma nova forma de se representar”, explica Supiot.
Para o especialista autor de uma dezena de livros sobre o tema do trabalho, aquela transformação “já tinha implicado formas de desumanização do trabalho, através do taylorismo, e um ponto central era a proibição de pensar para os operários”.
Naquele contexto, destacou, “as instituições de justiça social inventadas no século XX se esforçaram para resolver a questão da exploração econômica, estabelecendo mínimos salariais e limites máximos de tempo de trabalho, condições de segurança, mas não abordaram a questão da opressão no trabalho”.
“Com a revolução digital - continua - passamos para um novo imaginário, que é o do homem que já não obedece mecanicamente aos impulsos, a não ser como um ser que interage em função dos sinais que recebe para executar um programa e alcançar objetivos. Passamos de uma lógica de subordinação a uma lógica de programação em todos os âmbitos de atividade”.
Contudo, o professor emérito do Collège de France também ressalta que a outra razão da desumanização do trabalho é que “as políticas neoliberais, desde os anos 1980, viram-se forçadas a desmantelar, a desfazer todas as proteções do trabalho que tinham sido desenvolvidas no marco do Estado social”.
A partir desta análise da situação, Supiot afirma que “o conjunto destes três elementos - seguridade social, serviços públicos e direito trabalhista - é um marco institucional necessário para a ficção mercantilista do trabalho. No entanto, a desventura do neoliberalismo é que diz que não precisa desses suportes jurídicos e inclui do mesmo modo a visão da terra, do meio ambiente, como mercadoria”.
Em plena campanha eleitoral na Argentina, que volta a apresentar o dilema do neoliberalismo e a proteção das conquistas sociais, Supiot toma uma distância prudente dos candidatos, mas expõe a convicção de que “a lei tem que distribuir as riquezas conforme o comércio vai enriquecendo”.
“O comércio enriquece, mas a lei deve distribuir para que todos possam aproveitá-la”, adverte.
“Não há paz duradoura sem justiça social, e nenhuma ordem duradoura pode ser estabelecida apenas com base na força política e econômica”, afirma ao destacar que “o aspecto notável do Estado social foi renunciar a ideia de uma justiça que cai do céu”.
Bom conhecedor da história política, econômica e social da Argentina, Supiot faz um aceno local: “Não consigo entender o que é o peronismo, mas na ideia de existir certa representação da justiça que se impõe a todos, a parte mais original e duradoura do Estado social foram as suas formas de representação e ação coletiva que permitem contestar em determinado momento a justiça da ordem estabelecida”.
“Então, o direito sindical, as greves e as negociações coletivas são instrumentos que nos permitem dizer que não concordamos com o estado atual de distribuição do trabalho e da riqueza. E são mecanismos de não violência, de conversão das relações de força em relações jurídicas”, completa o especialista, doutor honoris causa de diversas universidades, entre elas, a Universidade de Buenos Aires.
Assim como considera que não existe uma visão definitiva do que é justiça social, mas que é algo “objeto de disputas sociais pacíficas, através da não violência, que é o cerne do direito social”. O especialista acrescenta ainda que “está claro que o modelo de desenvolvimento econômico dos países do norte industrializado é insustentável e não é universalizável”.
“As políticas neoliberais, e não apenas na Argentina em especial, fragilizaram consideravelmente setores inteiros da população. Isto em todos os países. O balanço social e ecológico da globalização é catastrófico: mergulhamos em crises ecológicas, surgem conflitos armados em todas as partes e a ideia de que, espontaneamente, haverá uma melhora geral nos níveis de vida se vê desmentida pela própria experiência”, salienta.
Quase como uma evidência assumida de que a ideia de justiça não está mais no horizonte internacional, o especialista chama a atenção para o fato de que “nem nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável aparece a palavra justiça, mas, ao contrário, a ideia de um mínimo. A ideia de “um mundo mais justo, solidário entre os países ricos e pobres e dentro de cada país, essa ideia desapareceu. E isto está relacionado à guinada neoliberal”.
Os flagelos do desemprego e do trabalho informal, que abarcam mais da metade dos trabalhadores em todo o mundo, devem ser incluídos nesse marco social.
“Há cerca de 30 anos, pensava-se que com o crescimento econômico, o trabalho informal desapareceria, seria integrado. Hoje, percebemos que não foi assim”, afirma, explicando a sua visão de que seria necessário partir de diferentes experiências entre uma cultura e outra, de diferentes regiões, para “pensar nas relações de trabalho ancoradas na diversidade de culturas e não querer sempre impor um modelo externo”.
No final da conversa, deixa um alerta sobre a perspectiva local: “A ideia da escavadeira da globalização faz reaparecer, por todos os lados, novas paixões identitárias. Quando as solidariedades do Estado social são destruídas, pensando-se em fazer tábula rasa, surge o que pode ser chamado de anarcocapitalismo, onde existem apenas sujeitos que buscam individualmente maximizar seus lucros”.
“Quando se tenta romper as solidariedades dos serviços públicos, da seguridade social e dos sindicatos, as solidariedades não desaparecem, mas, ao contrário, são recriadas em função de bases identitárias: a cor da pele, a religião, a orientação sexual. Tudo serve para reconstituir solidariedades que não são fundadas em uma base econômica, mas em um ser biológico, e isso me dá medo porque vemos o retorno de formas de solidariedade que têm a ver com a biologia que conhecemos nos piores momentos do século XX”, conclui.
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Alain Supiot: “O anarcocapitalismo vem para romper as solidariedades do Estado social” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU