Uberismo e gamificação: transformações do mundo do trabalho reveladas na greve dos entregadores. Entrevista especial com Ana Claudia Moreira Cardoso

Para pesquisadora, paralisação do início de julho trouxe à luz uma lógica que vinha sendo imprimida no mercado de trabalho, mas que a pandemia acelerou nos últimos tempos

Foto: Unitralog

Por: João Vitor Santos | 21 Julho 2020

Depois do Toyotismo, do Fordismo e do Taylorismo, uma das formas de apreender as transformações do mundo do trabalho é o que a socióloga Ana Claudia Moreira Cardoso chama de Uberismo. “O ‘Uberismo’ é o modelo predominante, assim como, em outros momentos históricos, foi o Toyotismo, o Fordismo e o Taylorismo”, observa em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “A lógica comum a todos esses modelos é a busca pelo lucro com a destruição (ou tentativa) de todas as instituições, regras e valores que possam atrapalhar. O que é diferente é a forma como cada um desses modelos se realiza, pois depende do contexto tecnológico, político, econômico e social e, evidentemente, da correlação de forças entre trabalho e capital”, detalha.

Assim, nesse contexto em que o mundo não mais se limita à fábrica, o capital também se reinventa e busca outras formas de se sustentar e extrair cada vez mais o lucro em cima da velha exploração das forças de trabalho. Segundo Ana Claudia, são movimentos que vêm se constituindo ao longo dessa era pós-industrial do século XXI, mas que, no contexto de pandemia, deu um salto. Por isso, aponta o movimento dos entregadores das empresas de plataforma como um dos casos para se melhor compreender esse complexo processo. “Por isso a necessidade urgente de regulação dessas empresas-plataforma, para que os trabalhadores que hoje já laboram e os que venham a fazê-lo não sejam considerados de ‘segunda classe’, ou excepcionais, ou específicos. Já temos uma legislação do trabalho e esta deve incluir todos os trabalhadores”, acrescenta.

E uma regulação eficaz só pode vir do entendimento do complexo modo de operar dessas empresas, uma curiosa mistura entre passado e presente, por exemplo, no que diz respeito às formas como gerem as forças produtivas. “No que se refere à gestão, esta é realizada a partir de lógicas muito antigas, que nos remetem ao início da revolução industrial – como o pagamento por trabalho feito. Ao mesmo tempo, ela inclui o que há de mais desenvolvido do ponto de vista tecnológico, que são os algoritmos, assim como a gamificação do trabalho”, analisa.

Nessa gamificação, o trabalhador é posto como dentro de um jogo em que precisa cumprir etapas para receber prêmios. Mesmo construídas como metas quase inatingíveis, o trabalhor segue conectado e ligado no seu game/labor. “A gestão gamificada não se reduz às tarifas dinâmicas, mas inclui bônus, prêmios etc.”, incluindo ainda as formas de punição e sanção, sempre impostas de forma unilateral. “As plataformas não informam o motivo das represálias, e muitas vezes nem a duração, impedindo que os profissionais possam se defender e questionar a decisão tomada “pelos algoritmos’”, pontua.

Por fim, a pesquisadora ainda chama atenção para como essa lógica se alastra por outras áreas e o papel de organizações como sindicatos e mesmo consumidores na resistência para assegurar direitos ao trabalhador. “Os sindicatos enfrentam novos desafios – mas isso é constante em sua História, porque o capitalismo está sempre se renovando e intensificando a exploração”, aponta. E sobre os consumidores, completa: a questão é saber até onde eles conseguirão sair do papel de consumidores, para se colocarem no papel de trabalhadores e cidadãos. Sabemos que isto não é fácil”.

Ana Claudia Moreira Cardoso (Foto: Arquivo pessoal)

Ana Claudia Moreira Cardoso é professora convidada no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Possui doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP e pela Universidade Paris 8 e mestrado em Ciência Política pela USP. Realizou pós-doutorado em Sociologia na Universidade de Brasília - UnB e no Centre de recherches sociologiques et politiques de Paris. Entre suas publicações, destacamos Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: disputas em torno na jornada do trabalhador (São Paulo: Annablume, 2009).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a sua análise em relação à paralisação dos trabalhadores em empresas-plataforma de entregas ocorrida no Brasil?

Ana Claudia Moreira CardosoO capital se reinventa a todo momento: novas formas de organizar e gerir o trabalho, novas tecnologias, novos discursos, novos mercados. Os trabalhadores, por sua vez, também reinventam suas lutas a partir de novas reivindicações, novos discursos e inovadoras formas de organização. E foi o que vimos nesta paralisação. Se num primeiro momento poderia se pensar que a própria forma de organização laboral seria um impeditivo para a organização desses trabalhadores – com a ausência de um local de trabalho fixo onde os trabalhadores se encontrem todos os dias e assim possam falar sobre a vivência comum do trabalho –, vimos que não foi o caso.

A vivência de humilhações e de um trabalho intenso, precário e incerto, que nada tem a ver com a liberdade e o ganho fácil propalados pelas empresas-plataforma, têm levado esses trabalhadores a, progressivamente, se mobilizarem (Abdelnour e Bernard, 2019). De acordo com Alessandro Sorriso, liderança sindical no Distrito Federal, “a solidariedade foi estrutural na organização coletiva e nacional do movimento, mas o sofrimento comum foi sua força motriz”.

Já em 2016 vimos movimentos em Londres, na Bélgica, na Espanha, na França e na Alemanha. Em novembro do ano seguinte, uma mobilização foi realizada em diversos países ao mesmo tempo. O mesmo ocorreu no ano seguinte e segue até o momento atual. Em várias dessas greves, os entregadores receberam apoio do movimento sindical, de movimentos independentes e de membros de partidos políticos. Desde o início deste ano, presenciamos diversos movimentos nos países da América Central e Latina contra ausências de protocolos de proteção, redução de taxas e do bônus.

 

Horizontalidade

 

No que se refere ao movimento no Brasil ocorrido no dia 01/07, e como já foi dito por Sidnei Machado, este foi pensado e organizado de forma horizontal, a partir de conversas nos encontros nas ruas, nas esperas das encomendas, nas manifestações que antecederam a greve, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp.

Entretanto, cabe um parêntese e algumas indagações. Esta paralisação seria menos relevante se os entregadores tivessem associações, sindicatos ou federação? Se estas instituições, juntamente com os trabalhadores, tivessem convocado o movimento? Ou, ainda, como vimos em outros países, se ela tivesse sido pensada e organizada juntamente com entidades representativas de outros trabalhadores, de associações do movimento social ou mesmo de partidos políticos? Será que no momento em que esses trabalhadores decidirem pela necessidade de terem representantes (o que já aconteceu no dia 08 de julho para a conversa com Rodrigo Maia) será dito que o movimento não é mais horizontal e que ele é menos relevante?

São indagações que me fazem lembrar, por exemplo, dos movimentos de 2013 e o que veio a seguir. Mas, também, me remetem ao discurso neoliberal a respeito de os indivíduos (trabalhadores) terem força suficiente para se defenderem diante do mercado de trabalho e das corporações empresariais sem precisarem constituir instituições.

 

Greve?

 

Questões que, de alguma forma, reaparecem nas falas dos trabalhadores. Em um dos grupos de WhatsApp de entregadores que participo, criado para ser um espaço de discussão sobre o movimento, uma das primeiras questões foi em torno do nome a ser dado ao evento. Inicialmente o cartaz apresentado continha o título de “Greve” e, num segundo momento, após alguns identificarem que “Greve” se referia à forma como trabalhadores tradicionais, representados por sindicatos, se organizavam, decidiram mudar o nome para paralisação.

Me parece que essa mesma lógica está presente quando muitos falam que não querem ter a CLT, mas apenas direitos; que não querem fazer política, mas apenas defender seus direitos; e que não querem a presença de representantes de partidos políticos em seu movimento.

 

Precariedade e superexploração em evidência

 

Voltando à análise do Breque dos Apps no dia 01/07, sem dúvida ele foi um sucesso. Possibilitou que as precárias condições e relações laborais desses trabalhadores saíssem da invisibilidade social. Mesmo que muitas destas condições já estejam sendo relatadas nos processos judiciais que os trabalhadores têm realizado contra as plataformas, nesses espaços elas ainda podem ser vistas como experiências individuais e pontuais. A greve, por sua vez, mostrou que a precariedade do trabalho e a superexploração nesta relação laboral é um problema coletivo e generalizado.

Finalmente, vale ressaltar que diante dessas novas formas de resistência da classe trabalhadora, somos tentados a idealizá-las. Entretanto, o movimento dos entregadores, como toda ação de massas, tem contradições internas, limites que se impõem de fora, desafios organizativos e ideológicos. Aponta alguns caminhos e revela novos obstáculos.

Majoritariamente solidária ao movimento e encantada, com razão, a sociedade não deve depositar todas as suas esperanças e frustações na emergência dos precarizados como atores políticos isolados. Por seu lado, os trabalhadores terão que persistir mesmo que a primeira greve, apesar da imensa adesão, não tenha tido um retorno positivo às suas reivindicações. A História mostra que toda luta trabalhista é longa, sempre custosa, cheia de avanços e retrocessos parciais.

IHU On-Line – Se os aplicativos mudaram o mundo do trabalho, podemos afirmar que também estão transformando a ideia de sindicalismo? Por quê?

Ana Claudia Moreira Cardoso – Uma parte desta resposta já foi dada na pergunta anterior. Mas podemos ir ainda mais longe e dizer que a tecnologia digital está alterando muitas das formas de interação social e abrangendo os mais diversos espaços – não apenas o do trabalho. Mudam as relações de amizade, amorosas, de compras, políticas, de pesquisa, dentre tantas outras. No contexto da pandemia, muitas das resistências ou mesmo desconhecimentos em relação às tecnologias foram reduzidas. Por outro lado, vale ressaltar, há uma desigualdade sociodigital muito acentuada no Brasil, que também se explicitou neste momento de isolamento social.

Por sua vez, modificar as formas de interação social não significa que todas serão radicalmente transformadas. Na maioria dos casos significa incluir uma nova possibilidade, misturar o novo e o velho.

No mundo do trabalho, as novas tecnologias trazem diversas mudanças na forma de organizar e gerir o trabalho, inclusive sendo adotadas pelas empresas tradicionais. Os diversos modelos (Fordismo, Taylorismo e Uberismo) se superpõem e interagem entre si. Por sua vez, o movimento sindical e os trabalhadores buscam dar conta de todas essas formas de organização do trabalho e das consequências para o cotidiano dos indivíduos.

Neste contexto, é bem provável que o sindicalismo continue a reivindicar o direito à organização por local de trabalho, ao mesmo tempo que tem o desafio de pensar outras formas de organização, que não dependam da concentração de trabalhadores no mesmo espaço. Isto vale não somente para os trabalhadores em empresas-plataforma, mas também para os terceirizados, os intermitentes e aqueles que estão no teletrabalho e no home office (número que tende a crescer após o isolamento social).

Da mesma forma, as entidades sindicais continuarão a fazer assembleias presenciais, mas também remotamente. Continuarão a conversar com os trabalhadores em seus locais de trabalho, mas terão que ir às ruas e, também, usar as tecnologias para ampliar as formas de contato e interação. A comunicação não poderá ser apenas de cima para baixo, mas também de baixo para cima e horizontal. Isso vale para o pessoal que trabalha com empresas-plataforma, mas também para a classe trabalhadora em geral, que está mais dispersa, menos unificada, mais volátil.

 

Precarização laboral e desconstrução da regulação

 

Em todo o mundo, o novo ciclo de acumulação capitalista tem imposto a precarização laboral e a desconstrução da relação de trabalho regulada, permanente ou pelo menos duradoura, contratada coletivamente a partir de um arcabouço legislativo garantidor de direitos básicos. O movimento sindical luta para combater essa tendência – seja garantindo que os associados permaneçam na formalidade e tenham seus direitos históricos garantidos, seja apoiando a luta do chamado “precariado”.

 

Novos desafios

 

Os sindicatos enfrentam novos desafios – mas isso é constante em sua História, porque o capitalismo está sempre se renovando e intensificando a exploração. A luta coletiva dos entregadores se insere nesse contexto de mudanças, num momento em que a correlação de forças entre capital e trabalho favorece fortemente o primeiro. As condições de trabalho desumanas a que eles são submetidos são mais uma evidência disso. Mas o movimento pode se esgotar facilmente se não criar e nem se apoiar em algum arcabouço institucional, que garanta continuidade, negociação com as empresas-plataforma e com o governo, estratégia jurídica unificada etc. Da mesma forma, a instituição sindical se torna estéril, quando se distancia da realidade sempre variável e fluida que é vivenciada pelas bases. Nesse fio de navalha se equilibra a resistência dos trabalhadores.

Podemos dizer, então, que o mundo do trabalho está em constante mutação – e que a ideia de sindicalismo se transforma desde que os sindicatos existem.

IHU On-Line – O trabalho uberizado, ou via plataformas de aplicativo, é o futuro do trabalho? Por quê? E como, diante da realidade desse tipo de trabalho, assegurar o mínimo de proteção e assistência ao trabalhador?

Ana Claudia Moreira Cardoso – O capitalismo de plataforma com sua nova lógica veio para ficar. Desde o final dos anos 1990, uma grande quantidade de plataformas digitais está sendo criada e abrangendo amplas dimensões da vida cotidiana, como dito anteriormente. No momento atual, e com mais ênfase nesse contexto do novo coronavírus, tais plataformas seguem crescendo e ocupando cada vez mais setores da economia, alterando a organização social e colocando novos desafios para a regulação desse novo modelo, seja no que se refere ao direito e qualidade no trabalho, às questões sobre vigilância e privacidade, dentre tantos outros.

No capitalismo de plataforma, a rede tem sido o principal organizador da economia, com o novo modelo de negócios baseado nas plataformas digitais. As possibilidades de conexão quase infinitas e que colocam em relação uma quantidade cada vez maior de pessoas viabiliza ao capital a captação de valores produzidos pelos seus usuários – que depositam dados pessoais, avaliações, comentários, preferências, caminhos, indicam amigos, dentre outras informações. No caso das plataformas de trabalho, a produção de valor também ocorre a partir da superexploração dos trabalhadores.

Por outro lado, do ponto de vista dos indivíduos, a enorme e rápida expansão dos aparelhos móveis possibilitou que cada um, munido de um telefone móvel, pudesse se tornar produtor, criador de serviços ou mesmo oferecer serviços, contribuindo para uma mistura de identidade – se trata de consumidores, produtores de serviço, de conteúdo/dados ou de trabalhadores. Essa “mistura” de papéis, em meio ao discurso neoliberal enganoso sobre o empreendedorismo, facilita às plataformas de trabalho se colocarem não como empregadoras, mas apenas como intermediadoras entre vendedores de serviço e clientes.

 

Uberismo

 

Neste contexto, o “Uberismo” é o modelo predominante, assim como, em outros momentos históricos, foi o Toyotismo, o Fordismo e o Taylorismo. A lógica comum a todos esses modelos é a busca pelo lucro com a destruição (ou tentativa) de todas as instituições, regras e valores que possam atrapalhar. O que é diferente é a forma como cada um desses modelos se realiza, pois depende do contexto tecnológico, político, econômico e social e, evidentemente, da correlação de forças entre trabalho e capital.

Esse modelo de trabalho – onde os trabalhadores não têm nenhum direito, previsibilidade de jornada e rendimento ou autonomia, além de serem responsáveis pelos riscos e custos do negócio – já abrange diversos setores de economia e tende a se expandir. A área de educação, dos profissionais liberais (programadores, tradutores, redatores, conselheiros jurídicos, arquitetos, artistas), de hotelaria, comércio, cuidado, consertos, de cozinha em domicílio, limpeza, arte, dentre tantas outras. Sem contar a já enorme quantidade de trabalhadores em plataformas de crowdworker como a Amazon Mechanical Turk - AMT, a Clickworker, a CrowdFlower e a Microworkers.

Não apenas as plataformas de trabalho estão impactando de forma negativa o mercado laboral. Em estudo que realizei com Marcela Bifano [a ser publicado no próximo número da revista Anais Brasileiros de Estudos Turísticos] sobre o setor de turismo, vimos que mesmo as verdadeiras plataformas de intermediação (como Expedia, Tripadviso, Kayak, Booking, Orbitz, Skyscanner, Decolar, Trivago e Hoteis.com) estão destruindo os empregos formais nas agências de turismo. O mesmo é observado com as plataformas de compartilhamento, como a Airbnb, dado que esta abre uma concorrência desleal com os médios e pequenos estabelecimentos, gerando a redução dos ingressos do setor e demissão de trabalhadores.

E sabemos que as plataformas vão continuar a se expandir. A Uber Technologies pretende lançar a Uber Works no setor de hotelaria mas, mantendo esse movimento, também pode expandir para outros setores da economia. Há também o grande risco de que muitas funções no setor de serviço e mesmo no comércio, que no contexto da pandemia estão sendo desenvolvidas via home office, amanhã sejam realizadas a partir de uma plataforma de trabalho, possibilitando às empresas seguirem sua estratégia de externalização.

 

Emergência de regulação

 

Por isso a necessidade urgente de regulação dessas empresas-plataforma, para que os trabalhadores que hoje já laboram e os que venham a fazê-lo não sejam considerados de “segunda classe”, ou excepcionais, ou específicos. Já temos uma legislação do trabalho e esta deve incluir todos os trabalhadores. Se a CLT ou a Constituição precisam ser modificadas para poder proteger mais os trabalhadores, ótimo, mas isso não pode ser a justificativa para a não inclusão desses trabalhadores.

IHU On-Line – O que, no contexto brasileiro, levou essa legião de trabalhadores para os aplicativos de plataforma? Qual o peso da “Reforma Trabalhista” nesse contexto?

Ana Claudia Moreira Cardoso – No Brasil, assim como em diversas sociedades ditas semiperiféricas, o mercado de trabalho sempre conteve um percentual muito grande de pessoas fora do mercado formal de trabalho. Para estes trabalhadores, a única possibilidade de sobrevivência é a realização de bicos. Em sua grande maioria, estamos falando de trabalhadores pobres, que não tiveram condição de estudar muitos anos, mulheres, negros, jovens, moradores de regiões periféricas que, na ausência de um Estado de bem-estar social e de garantias mínimas, precisam, de alguma forma, vender sua força de trabalho.

Se observamos um período de melhora em diversas dimensões do mercado de trabalho brasileiro entre os anos de 2003 e 2014, com aumento no rendimento, da formalização, da redução do tempo de procura de emprego, essa curva positiva muda de direção a partir do final de 2015, atingindo sua pior performance no ano de 2017. Assim, se houve um período no qual essa população entrou ou teve a perspectiva de entrar no mercado formal de trabalho, no contexto atual essa possibilidade ou projeto desaparecem. Nesta inversão do movimento, há a expansão da informalidade e da subocupação, ampliando a precariedade do mercado de trabalho.

 

Reforma Trabalhista

 

Com a Reforma Trabalhista de 2017, o governo investiu em duas frentes. Primeiro, precarizando o trabalho daqueles que já estavam no mercado formal. Em paralelo, a Reforma leva parte dos que antes estavam na informalidade a se integrarem ao mercado formal precariamente – em função da liberação da terceirização, da criação do contrato de trabalho intermitente e da figura do trabalhador autônomo para apenas uma empresa.

Como resultado, no primeiro trimestre de 2020, de acordo com os dados do IBGE eram mais de 28 milhões de indivíduos na situação de desocupados, subocupados por insuficiência de horas e aqueles com força de trabalho potencial. A taxa de subutilização da força de trabalho, inclusive, já é a maior da série histórica.

É este contexto que nos ajuda a entender a proliferação das estratégias de sobrevivência por parte da classe trabalhadora. Manzano e Krein (2020), a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad Contínua, nos mostram que entre os anos de 2012 e 2016 houve certa estabilidade na quantidade de trabalhadores nos grupos de motoristas (que inclui os motoristas de aplicativos mas também de táxi e de ônibus) e entre os motoboys.

Tal estabilidade, entretanto, é rompida a partir de 2016, quando há um aumento expressivo da quantidade de trabalhadores nesses grupos. O grupo de motoristas passa de 1,39 milhão, em 2016, para 2,02 milhões em 2020, representando um aumento de quase 42%. No caso dos motoboys, o aumento foi de 39,2%, passando de 522,1 mil para 729,7 mil.

E, pensando no futuro próximo, a situação tende a piorar muito, demandando da sociedade algumas pautas sociais urgentes: o fim das leis que buscam precarizar o mercado de trabalho (como a carteira verde e amarela, a reforma da previdência), a inclusão de todos os trabalhadores na legislação existente e a implantação de uma renda básica universal.

IHU On-Line – O que diferencia o chamado trabalho informal, o bico e o trabalho através das plataformas? E por que muitas pessoas, entre o bico e o trabalho por plataformas, ainda preferem o segundo?

Ana Claudia Moreira Cardoso – Em essência, não há diferença entre essas três formas. Em todas elas, os trabalhadores recebem baixos salários, realizam horas insuficientes ou jornadas extensas, não têm previsibilidade de quando terão um trabalho e, assim, um rendimento. Isso tudo por estarem totalmente desprotegidos do ponto de vista legal, tanto no presente como no futuro, dado que as normas de proteção ao trabalho são aplicadas apenas aos que têm vínculo empregatício. Considerando a ausência de um Estado de bem-estar social, no Brasil, esses trabalhadores “se viram” da forma como conseguem.

Há um conjunto de fatores que podem estar levando parte desses trabalhadores a “optar” por trabalhar numa empresa-plataforma. Um deles é a dificuldade para entrar no mercado formal de trabalho. Outro, o fato de que parte deste mercado formal também apresenta péssimas condições de trabalho.

Assim, os trabalhadores que não encontram um trabalho formal e com direitos têm que buscar outras formas de sobrevivência. Uma delas tem sido o trabalho via plataforma, como vimos na questão anterior a partir dos dados apresentados por Manzano e Krein (2020).

Vale lembrar que, quando as plataformas de trabalho iniciaram suas atividades, muitos entraram neste trabalho informal como um bico e não como algo regular, mantendo outras atividades. Entretanto, com a redução constante de outras possibilidades no mercado de trabalho, acabaram dedicando cada vez mais horas às plataformas, mesmo que as condições deste labor fossem se degradando.

 

Deterioração

 

No início, essas empresas ofereciam taxas melhores que as atuais. Para termos uma ideia, a empresa Loggi, em 2017, pagava R$ 4,58 por quilômetro rodado e a taxa mínima era de R$ 22,90. Hoje, o quilômetro rodado vale apenas R$ 0,70. O mesmo é relatado por Eliesel: em 2014, para se conseguir um rendimento bruto de 200 reais/dia era necessária uma jornada de entre 6 e 7 horas. Em 2016, para se atingir esse mesmo valor, a jornada teria que ser de 8 a 9 horas e, em 2020, teria que ser de 12 horas por dia.

Assim, vemos que, ao mesmo tempo que a situação econômica e política no Brasil foi piorando e que as instituições que defendem os trabalhadores foram sendo destruídas (como o Ministério do Trabalho) ou fortemente abaladas (como os sindicatos e a Justiça do Trabalho), foi aumentando a ênfase no discurso da parceria e do empreendedorismo e as plataformas foram reduzindo as taxas, bloqueando mais trabalhadores, impondo regras cada vez mais obscuras e duras e, assim, as relações foram se tornando ainda mais desiguais. Mais uma vez, a atuação do Estado é fundamental para incluir esses trabalhadores na regulação do trabalho já existente.

IHU On-Line – Como compreender a lógica que engendra o trabalho via plataforma digital? Por que muitos trabalhadores parecem capturados por essas lógicas que cada vez imprimem jornadas maiores e mais extenuantes?

Ana Claudia Moreira Cardoso – A lógica principal que captura esses trabalhadores é a da sobrevivência. Afinal, estes não laboram horas e horas por puro prazer ou por não desejarem vivenciar outros tempos sociais (como descansar, ficar com suas famílias, estudar, namorar...). Eles vivem do trabalho. As extensas jornadas, diárias e semanais, são consequência de baixos, insuficientes e incertos salários. Eles precisam compor uma renda digna para uma vida decente. Por exemplo, quando analisamos os trabalhadores que mais realizam horas extras, no setor formal, encontramos aqueles que laboram no setor do comércio, justamente onde os salários são mais baixos.

E, quanto mais precário for o mercado de trabalho – com mais desempregados, mais subutilizados e mais pessoas com baixos rendimentos e com menos perspectivas –, mais os trabalhadores serão obrigados a laborarem longas jornadas e, principalmente, num contexto em que o Estado não exerce o seu papel de proteção dos trabalhadores.

Na pesquisa nacional com os entregadores, que eu e outros pesquisadores vinculados à Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista - Remir realizamos, o que nos chamou mais atenção é que mesmo antes da pandemia a remuneração era muito baixa. Entre os que responderam ao questionário, 48% afirmaram receber até R$ 520,00 por semana e, dessa renda bruta, eles têm de arcar com todos os custeios diretos e indiretos desse trabalho: deslocamento de trajeto casa-trabalho, manutenção dos veículos, combustível, refeição, internet, vestimenta e todos os itens de segurança. Por sua vez, este valor pode ser ainda mais reduzido se o trabalhador, por exemplo, tiver problemas de saúde, sofrer acidentes ou ter problemas com seu veículo de trabalho.

 

Pandemia e achatamentos dos rendimentos

 

E com certeza foi frustrante e desmotivador para esses trabalhadores verem seus rendimentos reduzidos justamente no contexto da pandemia da covid-19, quando as plataformas de entrega tiveram aumento da demanda. Sobretudo considerando estarem arriscando suas vidas e exercendo um trabalho essencial. A pesquisa traz essas evidências: 58,9% relataram queda na remuneração; houve aumento no número de entregadores nas faixas de rendimento mais baixas (até R$ 520,00 semanais) e redução no rendimento para as faixas acima deste valor. No que se refere à jornada, 60% relataram laborar mais do que 9 horas por dia (destes, 24% trabalham entre 9 e 10 horas, 21% entre 11 e 12 horas, 9% entre 13 e 14 horas e 8% mais do que 15 horas), sendo que essas longas jornadas se estendem por vários dias da semana.

A realidade dos condutores via plataformas digitais não é diferente, como vem mostrando a pesquisa que realizo com outros professores da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Antes do período da pandemia, 45% relataram trabalhar 7 dias por semana. Situação que se confirma quando olhamos a duração da jornada de trabalho, quando praticamente 70% disseram trabalhar mais de 8 horas por dia e, ainda, em torno de 41% mais do que 10 horas.

Mais uma vez, se explicita a necessidade de que esses trabalhadores tenham seus direitos assegurados como limite máximo de jornada, intervalos de descanso e intrajornadas, rendimento mínimo, garantias legais e negociação coletiva.

IHU On-Line – Muitos trabalhadores relatam represálias das empresas às manifestações, os chamados bloqueios ou bloqueios brancos. Como essas empresas realizam a gestão do trabalho, que inclui os bloqueios, sanções, avaliações e também os prêmios?

Ana Claudia Moreira Cardoso – As represálias por parte das empresas-plataforma, que já estavam presentes antes da mobilização e que parecem ter se aprofundado no período posterior, são exemplos da relação de extrema subordinação que estas estabelecem com os trabalhadores. Nos grupos de WhatsApp e também nas falas na imprensa, fica claro que não apenas as empresas-plataforma definem de forma unilateral todas as regras, como estas são mudadas a todo momento para evitar que os trabalhadores possam compreendê-las e, assim, se contrapor a elas.

Tudo isso em meio à manutenção do discurso de que não são empregadoras mas apenas empresas de tecnologia. No entanto, sabemos que são elas que controlam, gerenciam e definem todo o modo de funcionamento. Desta forma, são negados direitos a esses trabalhadores: qualidade da mobilidade interprofissional, nível de rendimento, segurança social, treinamento, proteção social, segurança e saúde ocupacional, acesso à informação, liberdade de associação e negociação coletiva. A ausência dessas garantias, evidentemente, contribui de forma negativa para a saúde desses profissionais e de toda a sociedade, ao gerar insegurança, medo, ansiedade, baixos rendimentos e longas jornadas.

No que se refere à gestão, esta é realizada a partir de lógicas muito antigas, que nos remetem ao início da revolução industrial – como o pagamento por trabalho feito. Ao mesmo tempo, ela inclui o que há de mais desenvolvido do ponto de vista tecnológico, que são os algoritmos, assim como a gamificação do trabalho.

 

Gamificação

 

Nesse game todas as regras são definidas de forma unilateral pelas plataformas tendo como objetivo forçar seus empregados a ficarem disponíveis o máximo de tempo. Logo, se queremos melhor compreender as extensas jornadas de trabalho, devemos considerar a gamificação, pela qual as empresas buscam manter os entregadores conectados o máximo de tempo possível, sobretudo nos locais, dias e horários que elas têm mais interesse e os trabalhadores nem tanto: finais de semana, dias chuvosos, horários noturnos. Esse interesse em ter os trabalhadores à disposição vem sendo realizado pelas empresas tradicionais há muito tempo e a partir de várias ações – banco de horas, metas e, sobretudo, utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação - TDICs.

A gestão gamificada não se reduz às tarifas dinâmicas, mas inclui bônus, prêmios etc. Os relatos dos trabalhadores nos mostram, por exemplo, que se o prêmio define a necessidade de realização de 10 corridas num determinado período de tempo, quando o trabalhador se aproxima da meta há uma redução do número de chamadas. Essa tática das empresas impede o recebimento do prêmio, apesar do esforço a mais empreendido. O “mesmo” já era (e continua sendo) realizado pelas empresas tradicionais, que definiam metas impossíveis de serem atingidas que forçavam a intensificação do trabalho e o aumento da produção.

Entretanto, o esforço não possibilitava atingir a meta e, assim, receber o prêmio definido. A diferença, mais uma vez, é que a tecnologia atual permite que as plataformas não se responsabilizem pelas decisões, culpando os algoritmos pelos acontecimentos.

De acordo com a fala do Galo [um desses trabalhadores], “para trabalhar em Moema, por exemplo, você precisa de 600 pontos, que você tem que fazer no dia anterior. Se tiver 1.200 pontos, pode ir para a Paulista”. Só que os trabalhadores quase nunca têm a possibilidade de fazer a pontuação definida pelas plataformas: “Você fez 400 pontos num dia, aí sua moto quebrou, você vai para casa, gasta dinheiro. No outro dia, não acessa o lugar onde trabalhava porque não tem pontuação suficiente”.

 

Sanções e suspensões

 

A mesma obscuridade pode ser observada em relação às sanções ou suspensões. As plataformas não informam o motivo das represálias, e muitas vezes nem a duração, impedindo que os profissionais possam se defender e questionar a decisão tomada “pelos algoritmos”. Ainda conforme o relato do Galo, “quando você recusa pedido, entra no chamado bloqueio por 30 minutos. (...) quando fazemos paralisação, os aplicativos bloqueiam por um tempo. Você fica online, não aparece bloqueado, mas não recebe pedido”.

A reclamação também é forte no que se refere à extrema dificuldade de se comunicar com as plataformas e aos longos tempos utilizados para esta tarefa, que, evidentemente, não são remunerados.

 

Avaliações

 

As avaliações funcionam da mesma forma, dado que os trabalhadores não sabem os motivos de uma avaliação negativa. Além disso, se as empresas tradicionais há muito tempo externalizam aos clientes as avaliações, buscando tirar a responsabilidade de si, no caso das plataformas essa lógica se mostra muito mais perversa. No que se refere à nota, há a exigência para que, cotidianamente, seja atingida a melhor avaliação: de um total de 5 estrelas, muitas empresas, como a Uber, exigem 4,6. E os resultados dessas avaliações impactam o cotidiano laboral como, por exemplo, no local liberado para a entrega, ou mesmo nos dias da semana. Não por um acaso, todas essas questões estão presentes na pauta de reivindicação do #BrequedosApps.

IHU On-Line – Qual o papel do consumidor na impressão dessas lógicas do trabalho via plataforma digital? E como o consumidor pode romper com tais lógicas?

Ana Claudia Moreira Cardoso – Sem dúvida uma parte dos consumidores atendeu aos chamados dos entregadores: Não peça nada pelos aplicativos nesse dia: aproveite para fazer uma comida em casa e postar nas redes com as hashtags de apoio; Avalie os apps negativamente nas lojas de aplicativo e poste comentários em apoio à paralisação; e Apoie e divulgue a paralisação nas redes sociais, usando as hashtags #BrequedosApps e #ApoieoBrequedosApps.

De acordo com o site Bites, no final da tarde do dia da greve, “as hashtags #BrequeDosApps e #ApoioBrequeDosApps tinham somado 166 mil tweets com 303 milhões de impressões em potencial, mantendo o assunto o dia todo nos Trending Topics do Twitter. No Instagram, o número das hashtags alcançou 8,2 mil publicações”. Por sua vez, dados do SensorTower apontavam que foram feitas 43 mil avaliações com 1 estrela nos aplicativos iFood, Rappi e Uber Eats, o que representa 19% do total registrado. O site ainda nos mostra que após a greve, essas empresas-plataforma estavam sendo criticadas na App Store, recebendo muitas reclamações.

Sem dúvida o contexto da pandemia contribuiu para dar visibilidade a esses trabalhadores que sempre foram importantes para o funcionamento e a mobilidade das cidades. Assim, se para os consumidores antes se tratava de um serviço de conveniência, na pandemia ele passou a ser essencial para que pudessem manter o isolamento social. Talvez por isso uma série de consumidores se dispuseram a aumentar suas gorjetas – uma ajuda que pode ser significativa, dados os níveis de rendimento dos trabalhadores, mas que está longe de ser uma solução estrutural ou sustentável.

 

De consumidores a cidadãos

 

Por isso mesmo, a questão é saber até onde eles conseguirão sair do papel de consumidores – se preocupando apenas com o valor a ser pago e a facilidade de um serviço –, para se colocarem no papel de trabalhadores e cidadãos. Sabemos que isto não é fácil. Vimos a pressão de muitos consumidores para abertura do comércio aos domingos, na campanha feita pelas empresas do setor no final da década de 1990, mesmo sabendo que isso seria prejudicial ao equilíbrio entre tempo de trabalho e não trabalho dos comerciários.

Vimos, também, a resistência da parte de muitos em aceitar o fato de os domésticos terem os mesmos direitos que quaisquer trabalhadores. Ou, ainda, pode haver muitos professores reclamando do fato de as plataformas de trabalho estarem entrando na área educacional, e assim destruindo empregos formais, mas que, ao mesmo tempo, ficam felizes em pagar preços baixos por suas corridas numa plataforma Uber ou num pedido da iFood.

Assim, mesmo que tenhamos visto um forte apoio à greve, isto não significa, necessariamente, que estão dispostos a abrir mão de suas facilidades para que os trabalhadores tenham acesso aos direitos do trabalho. A situação é sempre muito complexa e são muitos os interesses que estão em jogo.

Vale ressaltar, ainda, que a atitude dos consumidores é essencial frente aos estabelecimentos que se utilizam das entregas. Nesta greve, muitos desligaram os aplicativos das plataformas de entrega como forma de apoio ao movimento, mas, igualmente, para explicitar seus descontentamentos com essas empresas.

Se antes da pandemia os estabelecimentos de alimentação já estavam nas mãos da plataforma, o contexto de isolamento social apenas acentuou esta situação. Há tempos as plataformas de entrega estão prejudicando a operação dos pequenos restaurantes em função de concorrência desleal e dumping, levando muitos a demitirem trabalhadores e entrarem em falência.

 

Parceria unilateral

 

Mais uma vez, a parceria tão propalada pelas plataformas fica apenas no discurso, pois, na realidade, sua relação com os estabelecimentos é totalmente autoritária: o atraso do restaurante na preparação de um pedido gera uma nota baixa e sua visibilidade na plataforma é afetada; se o restaurante não adere às promoções da plataforma, que normalmente não são boas para o restaurante, o número de vendas reduz. Além disso, são as plataformas que definem o tempo entre o pedido e a entrega.

Por isso pudemos observar relatos de donos de estabelecimentos que estão se reorganizando para contratar entregadores diretamente. Mas isso não garante, é importante frisar, que tais contratações serão formais e de qualidade. Assim, mais uma vez, a atuação do Estado é essencial no sentido de reduzir as desigualdades da relação entre empregadores e trabalhadores, garantindo condições dignas de trabalho para estes.

Leia mais