Para professora, trabalhadores que atuam por meio de aplicativos ficaram ainda mais vulneráveis, tanto economicamente como em relação à Covid-19
Há um ditado popular que diz que diante do calor de um deserto escaldante, qualquer poça de água pode ser a salvação e pouco se está preocupado com a qualidade dessa água e os riscos à saúde. A analogia pode ser didática para compreender a relação que se estabelece entre milhões de desempregados no Brasil que se oferecem como “trabalhadores de aplicativos” e as empresas chamadas de capitalismo de plataforma que recrutam diversas formas de forças de trabalho. “Em situação de desespero, cada um de nós colocará sua força de trabalho ao dispor dessas empresas digitais que oferecem soluções rápidas e aparentemente fáceis de gerar renda. Mas a que custo?”, questiona a professora Juliette Robichez, doutora em Direito, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Juliette chama atenção para o efeito predatório dessas empresas que usam as forças de trabalho e não fornecem assistência e apoio ao trabalhador como os antigos empregos “de carteira assinada”. “Um dos efeitos mais perversos da relação entre a plataforma e o "parceiro", por exemplo, é o de qualificá-lo de trabalhador autônomo: o motorista participa assim ativamente da sua exploração, situação extrema do lumpen proletariado. Ao negar os direitos básicos do trabalhador, este perde até sua dignidade, o que pode ter repercussões diretas na sua família”, analisa.
E se essas condições já são por si só extremamente desfavoráveis ao trabalhador, imagine em situação de pandemia, confinamento e isolamento social em que nas ruas o fluxo que se vê é apenas de entregadores e motoristas de aplicativos. “Em época de crise, são sempre os mais vulneráveis que serão as primeiras vítimas de um sistema desumano”, pontua Juliette. E, no caso dos trabalhadores do capitalismo de plataforma, como observa a professora, “serão obrigados a trabalhar para sustentar a família, geralmente sem possibilidade de comprar os objetos de proteção, como máscaras ou álcool em gel, pois a escassez generalizada destes aumentou os preços. E, ainda, serão contaminados e infectarão os membros da sua família”.
Por isso, é preciso, nessa época de crise – ou crises, levando em conta ainda o que há por vir –, estar atento a essas mudanças e olhar além, ver as consequências de simples mudanças de hábitos, como a adoção pelo consumo via capitalismo de plataforma. “Não posso ignorar o sucesso dos serviços oferecidos pelas plataformas digitais. Graças a esses novos serviços, cada um de nós pode doravante se oferecer o ‘luxo’ de viver como princesas”, reconhece Juliette. Mas também alerta: “o problema é que o cidadão tem uma visão a curto prazo: algumas profissões regulamentadas (e por consequência oferecendo serviços mais onerosos) vão desaparecer, haverá menos arrecadamento de impostos, aumentarão as situações precárias de uma grande parte da população, proliferarão os acidentes e doenças”. Como diz, “consequências que o Estado não poderá mais assumir”.
Juliette Robichez (Foto: Arquivo Pessoal)
Juliette Robichez é francesa e residente permanente no Brasil desde 2000. Fez toda sua formação acadêmica na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, na França. Possui graduação em Direito, mestrado em Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Internacional, mestrado em Direito Privado e doutorado em Direito. No Brasil, vem atuando como professora de Direito Internacional e Direitos Humanos em diversas instituições de ensino e da área jurídica.
IHU On-Line – Quais são as principais ameaças do chamado capitalismo de plataforma, ao estilo de empresas como Uber e iFood?
Juliette Robichez – Gostaria de ser uma grande filósofa (do tipo dos iluministas do século XVIII) para poder responder, pois dá para entender – com a crise sanitária mundial provocada por um vírus desconhecido, com o aquecimento do planeta, com o surgimento de um movimento internacional de negação dos direitos humanos e da ciência, com o próximo colapso da economia, com a proliferação de conflitos armados em regiões instáveis provocadas por potências rivais, com o perigo do terrorismo, com o obscurantismo pregado por pretendidos religiosos fundamentalistas etc. – que é o nosso sistema político-econômico como um todo que está em questionamento. As ameaças do chamado capitalismo de plataforma seriam uma das manifestações dos limites do sistema neoliberal que foi adotado, de maneira acentuada, a partir dos anos Reagan-Thatcher.
Mas, de maneira um pouco mais precisa, podemos perceber que a uberização da sociedade ameaça muitos aspectos da nossa vida:
- Esse capitalismo de plataforma nega radicalmente, em primeiro lugar, os direitos trabalhistas desses novos “parceiros” (usando a terminologia empregada pelo Uber) que, como falei no artigo do jornal Outras Palavras, assumem todos os riscos do ofício sem se beneficiar dos eventuais lucros gerados pela atividade de entrega, de motorista. Um dos efeitos mais perversos da relação entre a plataforma e o “parceiro”, por exemplo, é o de qualificá-lo de trabalhador autônomo: o motorista participa assim ativamente da sua exploração, situação extrema do lumpen proletariado. Ao negar os direitos básicos do trabalhador, este perde até sua dignidade, o que pode ter repercussões diretas na sua família, por exemplo, como o último filme de Ken Loach (Sorry, we missed you) ilustra perfeitamente. Isolado, sem representação coletiva para defender seus direitos, ele está à mercê dessas multinacionais digitais, desses empregadores invisíveis, inacessíveis, intocáveis (novos deuses?) que impõem as condições contratuais de maneira unilateral.
Trailer do filme "Você não estava aqui"
- Esse capitalismo de plataforma permite burlar, também, a conivência dos Estados que não têm coragem de tomar medidas eficazes no patamar internacional, as leis tributaristas dos países. Usam os serviços públicos como as ruas e sua iluminação, os correios, a educação e a formação dos seus trabalhadores, os hospitais etc. sem participar do esforço coletivo. Negam o princípio básico de convivência em sociedade: a solidariedade.
- Enfim, porém a lista das ameaças continua incompleta, ignora a soberania dos Estados que não conseguem mais regular as profissões (dos taxistas ou dos profissionais de turismo, por exemplo), limitar a poluição nas ruas (com a existência de centenas de milhares de VTC circulando o tempo todo à procura do cliente), oferecer alojamentos próximos ao trabalho com preços razoáveis aos seus habitantes (Airbnb participa da inflação do preço dos imóveis e da crise do setor da hotelaria).
IHU On-Line – Como a senhora observa as reações sociais a esses modos de “produção” e consumo?
Juliette Robichez – Para ser sincera, não fiz pesquisa sociológica das reações sociais a esses modos de “produção” e consumo. De maneira empírica, não posso ignorar o sucesso dos serviços oferecidos pelas plataformas digitais. Graças a esses novos serviços, cada um de nós pode doravante se oferecer o “luxo” de viver como princesas (plagiando o jornalista britânico que citei no artigo precitado): entrega a domicílio, andar de táxi, entre outras comodidades.
O problema é que o cidadão tem uma visão a curto prazo: algumas profissões regulamentadas (e por consequência oferecendo serviços mais onerosos) vão desaparecer, haverá menos arrecadamento de impostos, aumentarão as situações precárias de uma grande parte da população, proliferarão os acidentes e doenças. Ou seja, consequências que o Estado não poderá mais assumir.
IHU On-Line – De que forma a situação de pandemia que vivemos no mundo todo tem contribuído para que percebamos os efeitos predatórios e nocivos desse capitalismo de plataforma?
Juliette Robichez – Lembro que li uma reportagem sobre o sucesso dessas plataformas digitais durante o confinamento generalizado na China e nos outros países afetados pela contaminação do novo coronavírus. Os comerciantes, diante da proibição à população de sair de casa e andar na rua, optaram pelo delivery para tentar sobreviver à crise sanitária e econômica. Diante do desespero das pessoas que perderam seu emprego, o capitalismo de plataforma parece a maneira mais fácil e rápida de conseguir uma renda.
Porém, como o filme Sorry, we missed you demonstra, o motorista, que investiu na compra de uma van, precisa trabalhar inúmeras horas para conseguir tirar da sua atividade exaustiva um salário que normalmente não é suficiente para manter a família.
IHU On-Line – O capitalismo de plataforma deve, em alguma medida, ser impactado pela experiência da pandemia de Covid-19 que atravessa o mundo? Como o capitalismo de plataforma deve sair dessa experiência?
Juliette Robichez – As medidas necessárias para conter a disseminação do vírus têm obviamente um impacto na economia, inclusive na economia de plataforma. O confinamento eficaz prega, por exemplo, o fechamento ou a limitação das atividades dos correios, a proibição de entrega de objetos não essenciais, a proteção dos trabalhadores, de modo geral a cessação de quase todas as atividades. O consumo de produtos, de serviços está em processo de desaceleramento brutal, o que vai impactar todas as empresas.
O problema é: quem vai ter que assumir? Como sempre, me refiro por exemplo à crise do subprime de 2008 ou aos efeitos perversos dos paraísos fiscais, haverá uma privatização total dos benefícios otimizados (exploração pelas multinacionais da atividade dos seus “parceiros”) e uma socialização das perdas, dos déficits e falências (os Estados, na sua grande maioria, estão injetando recursos públicos bilionários, até trilionários para os Estados Unidos da América, para sustentar a economia e oferecer uma renda mínima aos trabalhadores demitidos).
Imagino que haverá, como sempre, uma anulação quase completa de toda a tributação sobre as empresas mais ricas e uma imposição das classes sociais pobres e médias, para salvar as empresas, as bolsas. Sou leiga em economia, mas este esquema sempre se repete, infelizmente.
IHU On-Line – Numa realidade como a brasileira, onde um mar de desempregados busca formas de gerar renda, o capitalismo de plataforma encontrou terreno fértil. Como avalia a disseminação desse capitalismo em países como o Brasil? E como imagina ser o impacto da pandemia de Covid-19 na realidade dessas pessoas que aderiram a essa forma de gerar renda?
Juliette Robichez – A realidade brasileira, sobretudo desde o golpe de Estado em 2016, é muito preocupante. A destruição do sistema de solidariedade (previdência, direitos trabalhistas, SUS, pesquisa científica, educação...) vai ampliar os efeitos predatórios e nocivos deste capitalismo de plataforma. Concordo com você, a gig economy (a economia de bicos) encontra um terreno fértil em um país onde existe um desemprego em massa, uma quantidade absurda (40 milhões segundo o IBGE, se minha memória não falhar) de trabalhadores informais. Em situação de desespero, cada um de nós colocará sua força de trabalho ao dispor dessas empresas digitais que oferecem soluções rápidas e aparentemente fáceis de gerar renda. Mas a que custo? Me refiro de novo ao filme de Ken Loach.
IHU On-Line – Ainda que os trabalhadores do capitalismo de plataforma sejam os mais vulneráveis nessa situação de pandemia, de outro lado, eles continuam trabalhando e ganhando sustento para suas famílias apesar dos riscos. Qual a sua leitura sobre essa realidade?
Juliette Robichez – Em época de crise, são sempre os mais vulneráveis, hipossuficientes, usando o vocabulário do Código do Consumidor, que serão as primeiras vítimas de um sistema desumano. Nesta pandemia, serão obrigados a trabalhar para sustentar a família, geralmente sem possibilidade de comprar os objetos de proteção, como máscaras ou álcool em gel, pois a escassez generalizada destes aumentou os preços. E, ainda, serão contaminados e infectarão os membros da sua família.
Gostaria de deixar a palavra a um pequeno vídeo que assisti no WhatsApp (sem nome de autor infelizmente) que sintetiza de maneira muito pertinente, melhor que eu com certeza, na forma cômica, a situação catastrófica que enfrentam os moradores de favelas. Tentando não distorcer o caráter genial do vídeo, lembro de um homem vestido de mulher, com um rosto voluntariamente desfigurado e uma voz estridente e gestos exagerados que fala no telefone com uma amiga que não aguenta mais ficar “em isolamento”. O protagonista, obviamente sem paciência com a situação, retorque: “Que isolamento? Pare de falar como uma blogueira! Pobre não se isola, se amontoa em cômodos minúsculos”.
Em dois minutos, esse artista (que povo criativo!!!) consegue resumir a situação patética na qual o Brasil se encontra: grande parte da população não tem água encanada, não pode comprar sabonetes, sem espaço para acolher de maneira serena os membros da família por 24 horas, sem renda e economia para poder ficar em casa, conforme as orientações das autoridades sanitárias. A situação no Brasil é ainda mais problemática com a ausência de uma política clara e única dos seus dirigentes e, sobretudo, com as diretrizes do seu presidente da República, contradizendo todos os resultados das pesquisas reveladas pelo mundo científico, negando as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS e dos próprios membros do seu governo. Sem nenhum fundamento científico, prega o isolamento vertical para salvar a economia.
IHU On-Line – O Brasil, como alguns países, tentou legislar sobre esse capitalismo de plataforma, especialmente da Uber. Como avalia essa experiência e a proposta feita pelo Estado brasileiro?
Juliette Robichez – Como falei no meu artigo, houve no Brasil muitas tentativas de regulamentar o capitalismo de plataforma. Mas essas iniciativas não foram seguidas pelas autoridades federais, em particular o Supremo Tribunal Federal - STF.
IHU On-Line – Como analisa a forma como países como França, EUA, Espanha, Colômbia têm lidado com essa realidade de capitalismo de plataforma? E como imagina que a pandemia possa impactar essa relação?
Juliette Robichez – As reações dos Estados se manifestaram de várias maneiras. Além dos exemplos citados no artigo do Outras Palavras, posso citar: em alguns países, são os parlamentos que tomaram a dianteira ao legislar sobre as atividades ligadas às plataformas (limitação do número de dias de aluguel do apartamento em Paris por plataforma como Airbnb, para proteger o setor de hotelaria e lutar contra a escassez de apartamentos e o aumento absurdo do aluguel na capital, por exemplo); outros privilegiaram a ação jurisdicional, como a França, o Brasil ou a Califórnia nos EUA.
O ideal seria, pelo menos na Europa, uma reação comum para evitar discrepâncias na regulamentação dessas multinacionais da Silicon Valley. Porém, sabemos que alguns membros da União Europeia, paraísos fiscais como Luxemburgo, Irlanda, City de Londres, vetaram e vetarão qualquer iniciativa, pois são beneficiários dos esquemas de evasão fiscal.
Assim, à primeira vista, os impactos entre a pandemia atual e a realidade de capitalismo de plataforma não são óbvios para mim de imediato. O que posso avançar é que esta crise da pandemia vai permitir, espero, uma reflexão séria sobre a globalização desenfreada da economia que torna os Estados interdependentes uns dos outros. A falta de remédios ou outros produtos exclusivamente fabricados na China, levou dirigentes como Emmanuel Macron, por exemplo, a repensar em repatriar algumas fábricas de produtos essenciais no solo francês. Será que essa reflexão terá um impacto também sobre questões como a incapacidade dos Estados de controlar as atividades econômicas dominadas por multinacionais como as GAFAs [Google, Amazon, Facebook e Apple] no seu próprio território e da necessidade de controlá-las de maneira mais eficaz?