07 Mai 2019
Em 16 de abril, na cidade russa de São Petersburgo, um jovem vestindo um casaco amarelo com o logotipo Yandex.Eda, um popular serviço local de distribuição de alimentos, pediu a um transeunte que lhe comprasse cigarros e depois caiu no chão fulminado. Artyk Orozaliev, 21 anos, morreu de ataque cardíaco, decretou a autópsia.
A reportagem é de Vladislav Fedyushin, publicada por RT, 26-04-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Antes de perder a consciência, o jovem havia trabalhado dez horas sem parar, informou a mídia local, citando o testemunho dos amigos do entregador. No dia seguinte, o falecido foi multado pela empresa por não comparecer ao trabalho.
O funeral realizado no domingo seguinte em Tort-Kul, sua cidade natal no Quirguistão, resultou em mais divulgações sobre as condições de trabalho da empresa.
"Para ganhar 1.000 ou 1.500 rublos [15,5-23 dólares] por dia, uma pessoa tem que trabalhar de 12 a 14 horas sem interrupção", disse um colega de Orozaliev a um jornal. "Você tem que viajar 40 a 60 quilômetros por dia, provavelmente este trabalho só pode ser comparado com os treinos dos atletas".
Posteriormente, uma série de publicações no Twitter revelou que, além de seus salários exigidos e da dureza do emprego, os trabalhadores de entrega sofrem com a falta de respeito de seus supervisores, restrições que regulam por quanto tempo devem trocar seus uniformes de verão e inverno, bem como multas por atrasos, apesar de que, por vezes, são causado por erros de algoritmo.
Yandex.Eda não é um caso isolado na Rússia, segundo se apura de dentro do seu principal rival no setor, Delivery Club. Além disso, esse tipo de más condições de trabalho não se limita a um país específico, mas é um fenômeno global.
A morte de Orozaliev é um exemplo de uma estratégia comercial ativamente promovida em todo o mundo e conhecida sob diferentes nomes, como economia 'gig', economia sob demanda ou economia compartilhada.
A ideia é simples. Numa altura em que a maioria da população tem acesso à Internet através dos seus 'smartphones', os prestadores de serviços podem ligar-se diretamente aos consumidores através de plataformas especializadas, reduzindo assim o preço dispensando certos fatores obsoletos - como, por exemplo, a antiga infraestrutura de negócios, mas também ao custo de renunciar à proteção de seus direitos trabalhistas.
Como resultado, essas plataformas ou aplicativos combinam o gerenciamento da forma mais simplificada possível por meio de algoritmos com uma tentativa de substituir os assalariados tradicionais por contratantes "autônomos".
Um exemplo disso é a empresa Uber, gigante que atua no setor de táxi e entrega de alimentos. A capitalização desta empresa, fundada em 2009, duplicou a cada quatro meses até 2013, e embora esse crescimento tenha desacelerado nos últimos anos, gerou 11.300 milhões de dólares de benefícios em 2018.
"Quando a economia compartilhada chegou à cidade pela primeira vez, não havia nada nela que fosse obviamente de direita. [...] A reutilização de veículos e apartamentos subutilizados prometia grandes benefícios ambientais. A própria expressão "economia compartilhada" prometia menos materialismo e mais 'Vila Sésamo'" —Dante Ramos, colunista do Boston Globe.
Esse rápido aumento pode ser explicado em parte pela modernização do gerenciamento de serviços. No entanto, seu sucesso foi em grande parte devido ao fato de que a empresa não empregava motoristas, mas trabalhou com eles como contratados independentes. Como tal, não possuíam direitos trabalhistas básicos, como férias pagas, indenização em caso de licença médica ou salário mínimo garantido.
Embora nos últimos anos o Uber tenha sido proibido parcial ou totalmente em vários países do mundo, muitos de seus concorrentes e plataformas análogas que trabalham em outros setores geralmente não sofreram restrições.
Assim, na lista das 500 empresas mais ricas do mundo, há cada vez mais empresas que exploram o trabalho de 'empregados independentes', de acordo com um estudo publicado pelo Morgan Stanley. Um em cada quatro trabalhadores dos EUA participam da economia 'gig', e para 10,1% deles, é sua principal fonte de renda, calcula o projeto científico colaborativo 'Gig Economy Data Hub'.
A esta categoria de trabalhadores, batizados como precariado – isto é, o proletariado precário – pertencia o falecido Orozaliev.
O conceito de precariado foi elaborado na década de 1980, simultaneamente ao avanço do neoliberalismo e ao surgimento de um grupo cada vez mais importante de trabalhadores privados da segurança trabalhista típica o tempo do estado de bem-estar.
"O neoliberalismo não é um tipo de economia que inclui a grande maioria das pessoas e que se dedica a melhorar a qualidade de vida. Ao contrário, parece mais uma fantasia de tecnolibertários que se torna realidade, onde somos todos forçados a competir uns com os outros por um trabalho cada vez mais atomizado que fornece poucos salários e nenhum benefício, enquanto enfrentamos uma falta de segurança no emprego quando uma grande parte desse trabalho se torna automatizada". — Paris Marx, escritor e colunista.
Em termos sociológicos, esse grupo pode ser caracterizado como uma nova classe, garante o economista britânico Guy Standing, autor de um estudo fundamental sobre o assunto.
Esta turma é constituída principalmente por migrantes, jovens escolarizados que não conseguem encontrar trabalho estável e pessoas demitidas devido à transformação tecnológica dos processos econômicos, explica o especialista. Essas massas não têm outra escolha senão aceitar trabalho desprotegido e sem garantias, contribuindo assim para o barateamento do trabalho em geral. Assim, não é de surpreender que eles constituam a camada mais pobre da sociedade.
Nenhuma dessas características distingue o precariado da classe trabalhadora que existia em tempos anteriores ao Estado de Bem-Estar Social, exceto por um elemento: a capacidade de se organizar.
No passado, os sindicatos foram, em última análise, o fator chave que fortaleceu as posições do proletariado. No entanto, agora o tópico da discussão é se, atomizados e isolados, trabalhadores de plataformas digitais serão capazes de criar sindicatos de trabalhadores capazes de proteger seus direitos.
Em 2016, ocorreram as primeiras greves de entregadores contratados pelos aplicativos de delivery de alimentos Deliveroo e Foodora no Reino Unido e na Itália, respectivamente. Desde então, mobilizações cada vez mais importantes ocorreram em outras partes do mundo.
Esses fatos reduziram o medo de que os trabalhadores não sejam capazes de se organizar efetivamente devido à falta de comunicação entre eles. "Os distribuidores não fizeram nada de novo, se houver um conflito, temos que nos encontrar", disse Valerio de Stefano, jurista da Universidade Bocconi, em Milão.
Dois anos depois, correios da Hermes e da Deliveroo no Reino Unido alcançaram uma vitória judicial depois de provar que eles eram trabalhadores assalariados e não "contratados independentes", então eles tinham os direitos trabalhistas que correspondiam a eles como funcionários.
"Algo mudou em relação ao poder dos trabalhadores na economia do trabalho, apesar dos enormes riscos; os trabalhadores começam a lutar e vencer", disse em agosto passado o ativista e jornalista Nithin Coca.
Apenas dois meses depois, a Federação Transnacional de Distribuidores (TFC) foi criada em Bruxelas, que inclui 31 sindicatos operando em doze países. Deste modo, a luta do proletariado precário alcançou nível internacional.
Como resultado da discussão gerada pela pressão sindical, o Parlamento Europeu aprovou em 18 de abril uma lei que estabelece o direito dos trabalhadores da economia 'gig' para predeterminar seu tempo de trabalho e receber uma compensação pelo seu trabalho fora do horário.
Tudo isso não significa que o proletariado precário da economia digital obtenha automaticamente todos os direitos trabalhistas dos trabalhadores industriais. No entanto, os novos sindicalistas demonstraram que podem se organizar de maneira eficaz, traçando uma nova etapa na luta dos trabalhadores.
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Multado por ter morrido trabalhando: Qual é a economia 'gig' e como ela explora os funcionários? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU