22 Janeiro 2019
A “economia de plataformas”, “gig economy”, “economia de bicos” ou “uberização da economia” são alguns dos nomes de um fenômeno que veio para transformar o cenário de trabalho na Argentina. María Fierro é fundadora da Associação de Pessoal de Plataformas (APP) na qual trabalha como secretária adjunta de seu conselho provisório de administração. Ela protagonizou, junto com outros trabalhadores da Rappi, a primeira greve do setor na região.
Juan Manuel Ottaviano é advogado trabalhista, colaborador do CETyD (Centro de Capacitação e Estudos sobre Trabalho e Desenvolvimento, da Universidade Nacional San Martín) e da Ueplas (Usina de Estudos Políticos Laborais e Sociais), membro da equipe de profissionais que assessora a APP. Fierro e Ottaviano relatam o surgimento, o trabalho conjunto e as vicissitudes do novo sindicato de plataformas. María, de vez em quando cumprimenta um companheiro que passa de bicicleta, iluminado pelo laranja flúor do uniforme. Todos a conhecem. A empresa está tentando bloquear o usuário que ela usa para trabalhar.
A entrevista é de Julia Goldenberg, publicada por Página/12, 21-01-2019. A tradução é de André Langer.
O problema é a sua atividade sindical?
María Fierro – Seguramente. Depois da greve, eles me bloquearam e agora estou usando outro ID para poder continuar trabalhando. Sofremos a demissão de metade da comissão provisória da Associação de Pessoal de Plataformas. É uma decapitação por perseguição sindical e queremos discuti-la na justiça.
Em uma economia de plataforma, como se organizam os e as trabalhadores(as) que se encontram dispersos em várias partes da cidade?
María Fierro – Primeiro fomos formando pequenos grupos de WhatsApp com os trabalhadores que se reuniam nas esquinas ou nas portas dos estabelecimentos para esperar os pedidos. Eram grupos menores até que atualizaram o aplicativo. Aí começou a se ver mais pessoas sem atividade, porque a empresa começou a atribuir os pedidos. Então começamos a conversar. Perguntamo-nos sobre as mudanças no aplicativo, nos circuitos, nos pedidos atribuídos, etc. Assim, em questão de dias, organizamos a greve, que consistiu em nos conectar todos juntos durante o horário de pico de um domingo de julho, sem que ninguém pegasse os pedidos.
Isso fez com que começassem a nos ligar da Colômbia. Os estabelecimentos começaram a se encher de pedidos que ninguém retirava. Eles nos viam reunidos, porque sabem da nossa localização pelo GPS. Então nos chamaram para uma reunião. Nessa reunião, um companheiro advogado mostrou-lhes que os termos e as condições que estávamos assinando todos os dias para usar o aplicativo, nossa principal ferramenta de trabalho, não eram consistentes com as nossas tarefas e eram modificados diariamente. Evidentemente, eles insistiram na ideia de que ninguém nos obrigava a trabalhar. No dia seguinte, mudaram todos os termos e condições e os adaptaram ao novo aplicativo.
Pontualmente, o que vocês reivindicavam?
María Fierro – O motivo principal para o desacordo tinha a ver com a mudança no aplicativo, porque a proposta inicial dizia “você pode ser seu próprio patrão”, gerenciar seus horários e, além disso, poderíamos também escolher os pedidos mais convenientes, de acordo com a região, o lugar, etc. Quando foi atualizado, os pedidos eram atribuídos e não tínhamos a opção de escolher quais pegar e quais rejeitar.
Assim, todos se viam pedalando mais quilômetros pelo mesmo dinheiro. O aplicativo começou a atribuir pedidos que ninguém escolhia porque são distâncias muito longas ou percursos impossíveis. Então, aqueles que rejeitavam os pedidos, começaram a sofrer uma diminuição de porcentagem de aceitação. O problema é que, com uma aceitação baixa, você recebe as viagens mais longas ou remotas, aquelas que ninguém quer fazer.
Essa porcentagem é definida pelo algoritmo?
Juan Manuel Ottaviano – Sim. Isso acontece em todas as plataformas: em algum momento eles têm que criar algum sistema de atribuição de viagens, pedidos ou tarefas e um sistema de sanções para aqueles que não os cumprem. Então, em poucos dias os trabalhadores perceberam que não havia nenhum tipo de liberdade, que eles não eram seus próprios patrões, que não podiam gerenciar seus horários, nem suas tarefas, mas que eram atribuídas pelo próprio algoritmo.
Quando uma tarefa é rejeitada, esse tipo de sanção é uma característica típica de qualquer vínculo empregatício. O problema é que isso acontece sem direitos fundamentais: sem salário fixo, jornada mínima de trabalho, seguro contra riscos, etc. Existe uma avaliação que é determinada pelo aplicativo com base nas tarefas aceitas e há outra qualificação do cliente para a pessoa que faz a entrega. Às vezes, as falhas são de responsabilidade dos estabelecimentos que entregam o pedido com atraso, ou do próprio aplicativo, ou vicissitudes da rua (engarrafamento, acidente, etc.), mas quem recebe a qualificação são os entregadores. O problema é que isso implica, no final do dia, em menos trabalho.
Outra característica marcante é a despersonalização destas relações de trabalho: o bloqueio, a porcentagem de aceitação, as qualificações, a atribuição de pedidos, etc.
María Fierro – Recentemente eles bloquearam um companheiro que aceitou fazer seu percurso habitual na companhia de Gonzalito Rodríguez, que cobriu um dia típico de um trabalhador da Rappi. A única coisa que ele fez foi mostrar em que consiste este trabalho. Aqui se bloqueia muito facilmente quem incomoda a empresa. Aqueles de nós que nos organizamos, fomos, obviamente, bloqueados imediatamente.
Como surgiu a ideia da criação de um novo sindicato?
María Fierro – A partir dos protestos, tivemos a reunião com os diretores da Rappi. Depois disso, a Asimm (Associação Sindical de Motociclistas, Mensageiros e Serviços) nos visitou. Eles nos disseram que não iriam permitir o que estava acontecendo e nos convidaram para a sede do sindicato. Tivemos outra reunião com a empresa e com eles, na qual chegaram a um acordo que não nos representava: negociaram a lavagem de várias motos que não conhecíamos. Nessa época, éramos a maioria de bicicletas. O que eles fizeram foi incorporar 22 filiados seus (de um total de sete mil ID naquele momento). Então, isso levou a um conflito porque não aceitamos esta negociação.
Juan Manuel Ottaviano – Investigando tudo isso, percebemos que a Câmara de Empresas de Entrega tem uma plataforma. As pessoas que trabalham para eles também o faziam na Rappi. Ou seja, elas estavam registradas em uma dessas empresas de entrega, mas trabalhando para a plataforma Rappi sem registro. Então, o sindicato abandonou a greve e tentou atrair mais pessoas para essa empresa de entrega. Está claro que existe um acordo entre esta Câmara e os aplicativos para distribuir entre si o mercado.
A Rappi, a Glovo e outros aplicativos têm uma rotação perfeita. Ou seja, contratam trabalhadores sem qualquer custo – o que implica uma concorrência desleal – e ao mesmo tempo podem demitir sem custo. Aplicam algoritmos para que os entregadores que estão há um determinado tempo no aplicativo recebam os piores pedidos, ou não recebam nenhum, e saiam. Então, no espaço de 3 ou 4 meses, o plantel destes aplicativos muda quase completamente.
Aí, os que se organizaram tomaram consciência de que provavelmente perderiam o emprego, porque o aplicativo tem o poder absoluto de demitir como quiser. Portanto, com este nível de conflito com a empresa e com a estratégia do sindicato com os trabalhadores que se organizavam, praticamente não havia alternativa senão formar um novo sindicato.
Como este novo tipo de trabalhadores e de organização se encaixa no panorama existente?
Juan Manuel Ottaviano – Uma concepção própria de alguns sindicatos que enfrentam esses aplicativos é que eles não deveriam existir e, portanto, este trabalho não deveria existir. Então, quando os trabalhadores da plataforma se organizam, eles recebem uma rejeição total de outros sindicatos. O que eu vejo é que existe um interesse legítimo dos sindicatos tradicionais que não podem desenvolver uma estratégia inteligente diante do avanço destes aplicativos.
Um fenômeno semelhante ocorre entre a atividade dos táxis e do Uber. Ou seja, câmaras de empresários e sindicatos que se aliam contra a plataforma e os motoristas de plataformas. Parece-me uma estratégia legítima, mas não eficiente para lidar com uma nova economia, com uma nova forma de fazer comércio, de marketing e de organização do trabalho, etc. Eu acho que é uma estratégia errada que os trabalhadores se adéquem aos interesses dos empregadores contra novos padrões tecnológicos.
Vocês se assessoraram, conversaram e trocaram experiências com os demais sindicatos para construir seu espaço?
María Fierro – Os outros sindicatos nos ouviram, ofereceram seu apoio, nos aconselharam e nos convidaram para participar de conversas. Eles colocaram o problema na mesa. Na apresentação do livro de Tali Goldman, La Marea Sindical, encontrei-me com Virginia Bouvet, dos trabalhadores do metrô. Também tivemos conversas com o Foetra [Sindicato das Telecomunicações]; tivemos reuniões com a CTA, com Hugo Yasky e com a CGT. Na verdade, recebemos muito apoio.
A emergência desse tipo de economia parece inevitável. Vocês consideram que a chegada destas plataformas à Argentina foi favorecida pelo contexto sociopolítico?
Juan Manuel Ottaviano – A expansão da economia de plataforma é um fato. Evidentemente, há um novo mercado. Existe uma nova maneira de gerar mercados e oportunidades de emprego. O problema é que a economia de plataformas, como é definida hoje, está gerando empregos precários em todas as cidades do mundo. Especialmente nas grandes cidades. Mas também é verdade que se expandem muito mais rapidamente em economias em queda ou em períodos de crise. Além de ressaltar como causa a existência de uma crise de emprego na Argentina, deve-se dizer que a maioria dos empregos criados na Argentina é precária, por tempo determinado, monotributista [de maneira literal, é uma forma de pagar impostos simplificada e de baixo custo para favorecer os trabalhadores independentes. Expediente similar ao microempreendedor individual, no Brasil], monotributista social, etc.
A APP monitora a expansão da Rappi, mas também de outras plataformas. O crescimento que tiveram em um ano é exponencial: desde fevereiro, mais de 20 mil trabalhadores em todo o país passaram pela Rappi. Isso não significa que esse seja o número de trabalhadores permanentes na empresa; significa que fizeram o treinamento e prestaram serviço, ao longo do ano, mais de 20 mil trabalhadores. Tudo isso é mostrado nas estatísticas como emprego precário.
Claramente, a expansão da economia de plataforma, nestas condições, guarda uma relação com as estatísticas que são mostradas sobre a expansão do emprego precário. Penso que há uma expansão generalizada deste tipo de economia, mas é verdade que na Argentina ocorre nesse contexto de relações de trabalho e isso aprofunda o grau de precariedade da expansão. A verdade é que a economia de plataformas gera oportunidades de emprego; a questão é em que condições isso se dá. A precariedade acontece porque no século XXI as relações de trabalho estão ocorrendo como se estivéssemos no século XIX.
Como os Estados se posicionam em relação a esta expansão da economia de plataformas e o consequente crescimento do emprego precário?
Juan Manuel Ottaviano – Há um receio dos Estados que desestimulam este tipo de modelos e, portanto, interrompem a criação deste tipo de emprego. A questão é: por que criar esta quantidade de emprego nestas condições? Especialmente porque a maioria dos trabalhadores nessas plataformas é migrante.
Mas também é preciso ter em mente que as pessoas contratadas por essas plataformas trabalham poucos meses e estão sujeitas a esforços físicos muito extenuantes. Quando finalmente ficam sem trabalho, isso tem consequências sociais muito sérias. À medida que essas consequências sociais vão sendo percebidas, não apenas de trabalho, os Estados terão que prestar mais atenção a esta situação.
A solução pode ser regulatória ou com alguma política de contenção. Pode-se inclusive considerar soluções mistas, para garantir rendas mínimas, para que haja algum seguro contra riscos, para que haja uma limitação das horas de trabalho. Atualmente, a plataforma incentiva você a trabalhar mais e mais horas e gera uma competição que faz com que as jornadas se estendam para 15 ou 17 horas.
Na Europa já se discute como organizar a jornada para este tipo de plataformas, e o mesmo terá que acontecer na América Latina. Independentemente da linha política de cada governo. O sindicalismo entendeu que este modelo, como é proposto, mais que um perigo para os padrões de trabalho decente, representa um perigo para o próprio trabalho. Ninguém acredita que esse modelo seja parte do sonho empreendedor.
Sobre a solução regulatória, considera que a normativa precisa ser adaptada ou é necessário construir um novo marco?
Juan Manuel Ottaviano – Eu penso que qualquer tipo de regulação tem que ir nesse sentido que mencionei: renda básica, liberdade sindical, seguro contra riscos, jornada de trabalho, etc. Eu acho que esse processo vai acontecer. Através do reconhecimento deste tipo de relações de trabalho tradicionais ou com regulamentos específicos. Devemos estar muito atentos. Na Argentina, há um projeto de reforma trabalhista que está latente. Eu penso que já está enterrado. No entanto, é alarmante porque contém uma proposta que visa criar um estatuto para os trabalhadores independentes. Essa seria a desregulamentação desse tipo de relação.
Às vezes, diante da urgência de regular, pode-se cair no fortalecimento de uma reforma flexível. Uma reforma deste tipo seria catastrófica para os trabalhadores da economia de plataformas. Porque se se cria este tipo de emprego, com este nível de precariedade e, além disso, se agrega leis flexibilizadoras, então é muito difícil rediscutir como incorporar uma chave de direitos. Então, penso que é preciso ser sensível em relação à urgência de uma regulamentação sobre o assunto.
Atualmente, centros de estudo, juristas, pesquisadores, estão tentando entender o fenômeno. Se houver uma reforma regulatória antes do entendimento do fenômeno pode ser contraproducente. Esse debate também está ocorrendo dentro do governo. Neste contexto, penso que devemos enfatizar o reconhecimento da organização dos trabalhadores de plataforma. Isso também está sendo discutido pelo movimento sindical argentino, que tem uma tradição de grande dinamismo. Todos os atores sociais estão enfrentando um dilema, que eu acho que é o dilema mais atual: como incorporar tudo isso em um esquema de direitos.
A economia de plataformas trouxe um ar novo e desconcertante para o campo do trabalho. Especificamente na Argentina, os documentos existentes, os centros de estudo, os pesquisadores(as) e especialistas estão de acordo em que as informações sobre a economia de plataformas estão em processo de sistematização.
De tudo o que circula sobre isso, Página/12 teve acesso à pesquisa que está sendo realizada pela equipe de Javier Madariaga do CIPPEC (Centro de Implementação de Políticas Públicas para a Igualdade e o Crescimento) com o Fomin-BID (Fundo Multilateral de Investimentos do Grupo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que deverá ser publicada em março de 2019.
Ele estuda o impacto da economia de plataforma no mercado de trabalho argentino. Ali indica que as estatísticas que existem não levam em conta a particularidade deste tipo de inserção laboral e ficam invisibilizados no conjunto dos trabalhadores informais não-assalariados, trabalhadores por conta própria ou trabalhadores informais. O CIPPEC conseguiu destacar 15 plataformas, 12 das quais oferecem “trabalho físico de baixa qualificação (também conhecido como gig economy ou economia de bicos: Rappi, Glovo, IguanaFix, HomeSolutions, Uber, etc.)”.
Neste grupo, o estudo indica que existem mais de 120 mil usuários-provedores cadastrados. Quanto à população que compõe essa massa de trabalhadores, “observou-se uma importante disparidade de gênero”: quase quatro em cada cinco trabalhadores de plataforma são homens, jovens e imigrantes. Para aqueles que usam as plataformas como complemento, o estudo constatou que, do número total de entrevistados, “61,3% disseram que seu trabalho na plataforma era sua principal fonte de renda”. Por último, identificou-se que as plataformas onde os trabalhadores têm maior carga horária semanal são a Rappi e a Cabify: em média, na primeira trabalham 58,13 horas e na segunda 52,72 horas por semana.
Todos concordam com a ideia de que a expansão da economia de plataformas e suas novas formas de trabalho são inevitáveis. A questão toda reside em forjar um marco regulatório ou alguma política de Estado para que esse fenômeno não se transforme numa fábrica de trabalho precário. Neste contexto, surgiu uma greve inédita do setor e nasceu a Associação de Pessoal de Plataforma (APP), o primeiro sindicato de aplicativos da região.
Uma das fundadoras, María Fierro, trabalha para a Rappi enquanto se encontra em meio a uma luta pela conquista de direitos trabalhistas. Com 25 anos, é mãe solteira e trabalha como secretária adjunta da comissão provisória diretiva da APP. Acompanha-a Juan Manuel Ottaviano, advogado trabalhista (UBA), colaborador do CETyD (Unsam) e Ueplas (Usina de Estudos Políticos Laborais e Sociais), e membro da equipe de profissionais que assessora esta nova organização.
A experiência do sindicato dos trabalhadores de plataformas ilustra uma possível saída, sob um esquema de direitos, em um cenário inexorável que veio transformar o panorama trabalhista.
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“Os Apps do século XXI criam relações de trabalho do século XIX”. Entrevista com María Fierro e Juan Manuel Ottaviano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU