24 Julho 2018
Crescem os aplicativos de entrega, que facilitam o acesso a dinheiro em tempos de crise, mas que não proporcionam seguranças legais, como Previdência. Rigidez da proteção trabalhista favorece expansão.
A reportagem é de Rodolfo Borges, publicada por El País, 23-07-2018.
Aos 24 anos, Tiago Vitoriano resolveu inovar: trocou a moto por um monociclo elétrico para fazer suas entregas pela Rappi, um aplicativo que ampliou no último ano o espectro de delivery em dez cidades do Brasil. Além de refeições, os rappitenderos — o serviço foi criado na Colômbia, daí o termo tendero, de comerciante— entregam compras de supermercado, produtos de farmácia e até dinheiro, pelo serviço de "caixa eletrônico em casa", a uma taxa de entrega mais barata do que a dos próprios estabelecimentos graças a parcerias com as lojas e à grande escala de entregas.
Ao deslizar com seu monociclo elétrico pelas ruas de São Paulo, Tiago só evitava os pedidos de supermercado, por conta do peso. Trabalhando das 18h às 23h por apenas três dias da semana (de sexta-feira a domingo), o entregador consegue de 1.500 a 1.600 reais mensais, mais do que os 1.400 reais que costumava ganhar como vendedor em uma loja no centro da capital paulista. A segurança de um emprego estável com carteira assinada só fez falta para ele quando teve seu veículo roubado perto de casa, em Suzano (SP), a 50 km de São Paulo, e ficou sem poder trabalhar por uma semana. O monociclo foi substituído por uma bicicleta graças à ajuda de amigos, e Tiago voltou às entregas.
"Vou entrar em outros aplicativos. Pagam melhor que emprego fixo e o horário é flexível", resume ele, um dos 10.000 entregadores que atuam pela Rappi no Brasil. Suas outras opções são empresas como Uber, Glovo e iFood, que apresentam agilidade na busca por dinheiro num momento em que 13 milhões de brasileiros (12% da força de trabalho) procuram emprego. O índice de medo do desemprego, medido pelo Ibope e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) desde 1996, chegou ao seu pico em junho, com 67,9 pontos. O indicador, que vai de 0 a 100, só havia alcançado esse patamar em junho de 2016, um ponto crítico da atual crise, e maio de 1999, outro momento duro para a economia brasileira sob Fernando Henrique Cardoso.
O país voltou a criar empregos — o saldo de novos postos entre janeiro e junho é de 392.461 vagas, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged)—, mas a velocidade ainda é muito menor do que a esperada. E a procura é grande. No último 16 de julho, por exemplo, um mutirão promovido em São Paulo reuniu no Vale do Anhangabaú 6.000 pessoas dispostas a trabalhar como vendedor, atendente ou recepcionista por um salário médio de 1.200 reais, um valor muitas vezes menos atrativo do que o recebido por um trabalhador autônomo, o que ajuda a impulsionar a procura pelo trabalho de entregas.
"Um motoboy que trabalha 10 horas por dia consegue tirar entre 130 e 140 reais por dia, de 3.500 a 4.000 por mês. Com CLT [carteira assinada], não passa de 100", diz Jefferson Santos, 30 anos, que começou como entregador na Rappi e hoje trabalha no setor de logística da empresa, com carteira assinada. "Agora eu recebo plano de saúde e vale refeição e tenho fundo de garantia, mas ganho metade do que fazia antes. Motoboy que trabalha por aplicativo consegue ter uma qualidade de vida melhor, se souber administrar o dinheiro", conta. Para compensar a redução no rendimento depois de ser formalmente contratado, Jefferson segue entregando pedidos por três outros aplicativos nos horários em que não está dando expediente ou assistindo a aulas na faculdade de logística em que se inscreveu após a contratação.
"Com o passar dos anos, a CLT, que era uma proteção, se transformou em um problema. Um dos que mais atrasa e emperra o Brasil. A globalização exigiu dos países uma flexibilização do mercado de trabalho", analisa ele o economista Ruy Quintans, professor do Ibmec, que cita que, nas origens, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pretendia proteger uma população campesina, com alto índice de analfabetismo, que migrava para as cidades. "Para um empregado de renda média brasileira, na faixa de 2.000 reais, a despesa com Previdência e os encargos trabalhistas vai a 68% disso, fora os penduricalhos como plano de saúde e vale transporte, que visam a substituir o Estado, que seria obrigado a proporcionar isso".
Quintans diz que, na prática, as pessoas querem ter um lugar para trabalhar, mostrar competência e eficiência e ganhar dinheiro, "daí o recorde mundial de abertura de micro e pequenas empresas no Brasil". Abril foi o mês com mais abertura de novas empresas desde 2010, quando a Serasa Experian começou a medir o índice. Das 222.392 empreitadas iniciadas naquele mês, 79,8% eram de microempreendedores individuais —entre os aplicativos de entrega, apenas a Rappi cobra a abertura de um MEI dos colaboradores. A Serasa Experian atribui o fenômeno à busca dos trabalhadores por fontes alternativas de renda em meio à lenta recuperação da crise. "Empreender se tornou uma forma de burlar a lei trabalhista, no sentido de se tornar mais produtivo", diz Quintans, que critica a resistência das corporações do país a reformas que acompanhem a revolução por que passa o mercado de trabalho. "Esses aplicativos vivem uma economia real: se não produz, não recebe".
O diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), Clemente Ganz Lúcio, chama atenção, por sua vez, para a insegurança dessa relação. "Como os salários são muito baixos no Brasil, essas pessoas [entregadores via aplicativos] conseguem ter uma renda real maior do que um assalariado, mas, sem pagar impostos ou a contribuição previdenciária, abrem mão da proteção futura", alerta, chamando atenção para o capital investido pelos entregadores no ofício. "A moto deve durar de dois a quatro anos, então ele precisa se preparar para o momento de trocar o veículo. O tamanho da jornada de trabalho [maior para os autônomos] também é relevante".
Para o diretor do Dieese, a reforma trabalhista criou um ambiente mais favorável ao trabalho autônomo, o que exige um esforço por informações sobre formas de como se proteger contra imprevistos, uma tarefa da qual os sindicatos e o Governo poderiam se encarregar. "Talvez as empresas devessem ser obrigadas a prestar uma assessoria que desenvolvesse essas responsabilidades nos autônomos", sugere. O último boletim Emprego em Pauta do Dieese indica que o "trabalho por conta própria" ou autônomo cresceu durante a última crise econômica e, em 2017, envolvia 23 milhões de pessoas no Brasil. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 32,9% da força de trabalho no Brasil é autônoma, como forma de empreendedorismo ou para obter renda extra.
As oportunidades de complementar a renda por meio de entregas acabaram gerando um efeito colateral no mercado de motociclistas brasileiros. Os sindicatos do setor em São Paulo estimam que um motoboy autônomo podia ganhar até 7.000 reais por mês antes de a concorrência proporcionada pelos aplicativos derrubar o valor para algo em torno de 3.000 reais. Quando ensaiaram uma greve na esteira da paralisação dos caminhoneiros, em maio, o SindimotoSP e a Febramoto protestaram contra a "concorrência desleal das empresas de motofrete com aplicativo". "Os aplicativos ganham rios de dinheiro e empobrecem o motoboy. As empresas retiram pelo menos um quarto da renda do prestador de serviço e acumulam uma riqueza fantástica", diz Clemente Ganz Lúcio.
A reportagem ouviu de entregadores reclamações sobre o baixo valor pago pelos aplicativos. Alguns deles se aglomeravam no estacionamento de um supermercado Pão de Açúcar na Vila Nova Conceição, bairro nobre de São Paulo, no início de uma noite de quinta-feira — eles costumam se concentrar nas regiões mais abastadas, onde são feitos mais pedidos. Daquele ponto, uma entrega para a Mooca, a 14 quilômetros dali, valeria expressivos 17 reais a quem estivesse disposto a carregar um pedido feito na lanchonete Wendy's, que fazia promoção no dia. O pedido foi dispensado — os três entregadores presentes concordaram que não valeria a pena percorrer um caminho tão longo, já que dificilmente receberiam outro pedido naquela região e teriam de arcar por conta própria com o retorno para o ponto melhor.
Os debates sobre o modelo de negócios dos aplicativos de entrega remontam à disputa entre a Uber e os taxistas, travada por dois anos até a sanção da lei que regulamentou os aplicativos de transporte, em março passado. Na Europa, os chamados "precários digitais", nos quais se incluem os entregadores autônomos que atuam via aplicativo, já se organizaram para reivindicar direitos de empresas como Amazon e Deliveroo. Em outubro do ano passado, um tribunal de Londres decidiu que a Uber deveria tratar os motoristas como trabalhadores, com direito a salário mínimo e pagamento de férias. O Comitê Central de Arbitragem do Reino Unido endossou, por outro lado, o modelo de entrega via autônomos da Deliveroo.
Diretor de operações da Rappi no Brasil, Ricardo Bechara reconhece que é difícil "agradar 100%" a todos, mas acredita que hoje é mais fácil lidar com esse modelo do que quando os primeiros aplicativos do gênero surgiram. "É importante enxergar todos os benefícios que esse tipo de economia colaborativa traz. Ao mesmo tempo, temos de ir ajustando expectativas e regulações à medida que formos evoluindo. Estamos abertos a entender como melhorar a plataforma e buscando o diálogo", diz Bechara. Segundo ele, a Rappi cresce a uma velocidade de 30% ao mês no mundo e planeja terminar o ano com a marca global de 11.000 pedidos por hora nos cinco países em que atua — além de Brasil e Colômbia, eles estão em Argentina, Chile e México.
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O rápido e inseguro caminho dos ‘precários digitais’ contra o desemprego - Instituto Humanitas Unisinos - IHU