06 Dezembro 2007
Baseado no relatório realizado em 1944 por um cônsul inglês sobre o Brasil e suas leis de trabalho, Samuel Fernando de Souza deu o nome “Coagidos ou subornados: trabalhadores, sindicatos, Estado e as leis do trabalho nos anos 1930...” à sua tese de doutorado. Nela, Samuel compreende a “articulação das idéias de ‘suborno’ e ‘coação’, relacionadas às iniciativas do Estado para apaziguar a ação de trabalhadores (muitas vezes representados por seus sindicatos) nos anos 1930 e 1940”, diz.
Por e-mail, a IHU On-Line entrevistou Samuel, que falou sobre a relação que o Estado, os trabalhadores e os sindicatos tinham até a década de 1930 e sobre como as leis relacionadas ao mundo do trabalho contribuíram para a construção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Samuel Fernando de Souza é graduado em História, pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita, onde também obteve o título de mestre na mesma área. É também doutor em História, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual era a relação que o Estado, os trabalhadores e os sindicatos tinham até 1930?
Samuel Souza - Durante muito tempo, os historiadores pensavam que a elaboração da legislação social foi iniciada após a entrada de Getúlio Vargas no poder em 1930. Alguns estudos mostraram que, durante a primeira República, em vista da atuação de sindicatos, da luta de trabalhadores por direitos e melhores condições de trabalho, foram dados os primeiros passos no sentido de constituir uma legislação que protegesse o trabalhador. A lei de acidentes de trabalho, de 1919, e a lei de férias, de 1925, são exemplos destas iniciativas do Estado para responder à pressão dos trabalhadores.
Percebi em minha pesquisa que, além de medidas legislativas isoladas, aprovadas contra fortíssima pressão patronal, o período que precedeu 1930 foi palco da construção de outras leis que configuraram o ambiente de disputa legal e estabeleceu critérios para a série de leis que foram estabelecidas na década de 1930. Um exemplo marcante deste momento foi a lei que criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões aos ferroviários (a lei Elói Chaves de 1923). Ao lado da lei Elói Chaves, foi criado o Conselho Nacional do Trabalho (CNT), cuja atribuição seria aconselhar o Estado em assuntos relacionados às questões oriundas da relação entre patrão e empregado. Um dos aspectos mais interessantes deste conselho é que ele passou a figurar como uma instância julgadora dos litígios em torno das Caixas de Aposentadoria e Pensões. Formado por uma comissão mista, de patrões e trabalhadores, o CNT, no meu entender, foi a primeira instituição formada nos moldes da Justiça do Trabalho, que ganharia relevo no Estado brasileiro após 1930.
Durante os anos 1920, o CNT, sob pressão dos trabalhadores organizados em sindicatos, foi obrigado a contemplar demandas de trabalhadores e a zelar pelo funcionamento das leis, ao contrário das vontades dos patrões. O uso do aparato do Estado na defesa de direitos conformou uma forma específica de atuação dos trabalhadores, pela via legal, que seria ampliada durante os anos de Vargas.
IHU On-Line - Quais foram as principais mudanças nessa relação após a criação das CLT, em 1943?
Samuel Souza - Após a criação do Ministério do Trabalho, o Estado varguista ampliou grandemente a constituição do aparato legal de proteção ao trabalhador. Há uma grande quantidade de leis decretadas ao longo dos anos 1930. A experiência acumulada com funcionamento e aplicação destas leis foi utilizada para elaboração da CLT no início dos anos 1940.
Basicamente, as mudanças entre as duas décadas ocorreram em várias frentes. Houve uma grande ampliação das instituições responsáveis para o tratamento da legislação. No âmbito administrativo, são criadas as Inspetorias Regionais do Trabalho, em todos os estados do país. Cada inspetoria conta com um serviço de fiscalização, responsável pela observação do cumprimento dos dispositivos legais. Além disso, órgãos de "justiça" como as Juntas de Conciliação e Julgamento (para disputas individuais) e Comissões Mistas de Conciliação (responsáveis pelas disputas coletivas) passam a receber inúmeras queixas de não cumprimento da legislação e a conciliar e julgar estas reclamações.
IHU On-Line - Afinal, em sua tese, quem são os coagidos e os subornados: o Estado, os trabalhadores ou os sindicatos?
Samuel Souza - O título da tese foi uma brincadeira feita a partir de um relatório do cônsul inglês no Brasil em 1944. Até bem pouco tempo era comum historiados argumentarem que Getúlio Vargas havia assumido o controle sobre os trabalhadores a partir da "doação" da legislação trabalhista. A montagem da legislação que protegeu os trabalhadores contra os patrões teria criado uma legião de adeptos e defensores do regime. Embora a partir de 1945 haja muitas mudanças em torno do mito Vargas, eu questiono o apoio irrestrito ao regime e a crença no funcionamento das leis até o final do primeiro período da era varguista (1930 a 1945).
Voltando ao título da tese. O cônsul Robert Smallbones foi convidado para assistir a comemoração do primeiro de maio de 1944 no estádio do Pacaembu em São Paulo. Ele disse em seu relatório que, apesar da garantia de inúmeros incentivos como distribuição de alimentos, disponibilização de caminhões para levar os trabalhadores ao estádio, pagamento de um dia de trabalho, com o intuito de convencer aos trabalhadores que participassem da solenidade de primeiro de maio, a adesão do público não foi suficiente para agradar aos organizadores da festa. Como último recurso, os organizadores marcaram uma partida de futebol entre os principais times de São Paulo e Rio de Janeiro, que começaria logo após os discursos dos políticos. Desta maneira, conseguiram lotar o Pacaembu de trabalhadores.
De acordo com Smallbones, a platéia teria permanecido apática durante todo o evento. A real excitação nas arquibancadas começou após a saída das personalidades, quando entraram em campo os jogadores dos dois times de futebol. O cônsul concluiu o seu relato com a seguinte frase: "a menos que coagidos ou subornados, os trabalhadores não moveriam um passo para defender ou aplaudir o regime de Vargas".
A minha brincadeira estava na articulação das idéias de "suborno" e "coação", relacionadas às iniciativas do Estado para apaziguar a ação de trabalhadores (muitas vezes representados por seus sindicatos) nos anos 1930 e 1940. Vargas, ao elaborar as leis do trabalho, justificava que era necessário proteger o trabalhador para evitar o uso de medidas "violentas" na solução dos dissídios no trabalho. Assim, articulei a noção de "legitimidade" no âmbito da relação entre Estado e trabalhadores. O Estado estabelecia leis que, supostamente, "protegiam" os trabalhadores. Estas leis deveriam funcionar minimamente para que trabalhadores e sindicatos aceitassem a "legitimidade" reguladora do Estado, mantendo-o como interlocutor válido em suas demandas. A garantia de um funcionamento mínimo das leis seria o âmbito do "suborno".
Ao mesmo tempo, o Estado sustentava um aparato repressivo pronto para agir "legitimamente" contra as "ações violentas" dos trabalhadores. Uma vez que havia leis para proteção dos trabalhadores, os movimentos grevistas não seriam justificáveis. Esta seria a esfera da "coação" feita, particularmente, a partir da ação de um órgão policial, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
IHU On-Line - As leis que antecederam o conjunto feito em 1943, como o Código Civil e a primeira lei de acidentes do trabalho, contribuíram para a criação de leis mais importantes como a Lei do trabalhador rural e da empregada doméstica?
Samuel Souza - Acho que todo o processo legislativo para o trabalho, que envolve a criação das Leis de Acidentes, até leis muito mais recentes, tem motivações semelhantes. As propostas de criação de um aparato legal de proteção aos trabalhadores eram muito ousadas em no final dos anos 1910. Alguns deputados mais progressistas defendiam a criação de um código do trabalho, de justiça do trabalho, de regulamentação da jornada de trabalho e etc. As correntes mais conservadoras evitaram que se legislasse de maneira mais incisiva e aprovaram apenas a lei de acidentes de trabalho em 1919. Toda a série de leis aprovadas ao longo do século XX está relacionada às pressões efetuadas por trabalhadores e patrões em torno de seus interesses e a disposição de representantes no Congresso para aprovar ou não determinadas medidas. A conclusão é que cenários de maior mobilização garantem uma maior sensibilidade dos representantes do Estado para as necessidades dos trabalhadores.
IHU On-Line - No interior da CLT brasileira, você vê presente os ideais marxistas e socialistas?
Samuel Souza - A CLT é muito ampla e diversificada. Ainda hoje existem críticos que acusam a Consolidação de ser resultado da ideologia "fascista" do regime Vargas. As discussões ligadas às perspectivas marxistas e os ideais socialistas é bem complexa. Embora dentre os membros do Ministério do Trabalho, no início dos anos 1930, estivessem homens como Joaquim Pimenta e Agripino Nazareth, ambos socialistas reconhecidos, as disposições defendidas e aprovadas pelo ministério estão mais ligadas a um amplo debate internacional de regulamentação das relações de trabalho que, propriamente, a elaboração de dispositivos vinculados a esta ou aquela corrente de pensamento. Uma pesquisa das origens ideológicas da legislação ainda precisa ser feita. Por meu turno, afirmo que a CLT não é fascista nem socialista, e está longe de ser claramente definida.
IHU On-Line – Para você, estamos saindo, hoje, do capitalismo industrial?
Samuel Souza - Qualquer afirmação minha neste sentido seria leviana, eu não sou a melhor pessoa para lhe dizer.
IHU On-Line – E, em relação às condições e leis de trabalho atuais, você acha que estamos caminhando para o socialismo ou um novo capitalismo?
Samuel Souza – Definitivamente, não estamos caminhando para o socialismo. Há muito debate hoje em dia a respeito do papel da legislação do trabalho. O setor empresarial alega que a legislação onera as empresas e impede o crescimento das empresas e do país. Esta afirmação sempre vem acompanhada da defesa veemente de destruição da CLT. Neste sentido, como disse anteriormente, alguns críticos alegam que a nossa legislação seria resultante da ideologia "fascista" e, conseqüentemente, inadequada ao regime democrático em que vivemos atualmente. Na verdade, vejo que estes críticos fazem muita confusão entre a democracia e os seus anseios pelo estabelecimento de um regime liberal tacanho, bem ao gosto de nossos empresários.
A crítica à CLT, a meu ver, é resultante de uma aspiração de muitos setores empresariais de eliminar não somente as restrições que a lei estabelece sobre determinados contratos precários de trabalho, mas, sim, de legitimar as precárias relações de trabalho existentes. Percebi na minha pesquisa que se há um comportamento característico que marca a ação de empresários em torno da legislação trabalhista, durante os últimos 87 anos, é a freqüente mobilização de seus advogados para burlar as leis.
Para citar um exemplo: eu tenho observado a perversidade das contratações de professores em universidades e colégios privados, especialmente no Estado de São Paulo. Há uma grande quantidade de professores no mercado de trabalho. Logo, as instituições de ensino contratam seus funcionários sem registro em carteira, com salários humilhantes e utilizam a ameaça constante de desemprego como fator de pressão para que estes profissionais não procurem seus direitos. Em casos gritantes de burla da lei, as empresas de ensino forjam contratos fictícios de cooperativas com seus empregados, exatamente como era feito em 1932 em inúmeros estabelecimentos.
Todavia, não adianta reclamar apenas da ação unilateral dos empresários, interessados tão-somente em aumentar seus lucros a despeito das condições de vida e trabalho dos empregados. Durante os últimos 87 anos, as leis foram cumpridas tão somente com a ação vigilante dos trabalhadores e sindicatos.
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A evolução da Consolidação das Leis do Trabalho. Entrevista especial com Samuel Fernando de Souza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU