Além da precarização de entregadores via trabalho por plataformas de aplicativos, a greve do início de julho também revela que a tecnologia tem transformado o mundo do trabalho como um todo
A paralisação de entregadores que trabalham via aplicativos de plataforma, no início de julho, o chamado ‘Breque dos Apps’, trouxe à luz as incidências da uberização via novas tecnologias no mundo do trabalho. No caso em específico, veio à luz o quanto os entregadores são expostos a longas jornadas, sem assistência e com remunerações baixíssimas. Mas se engana quem considera que somente esses profissionais são impactados por essa nova realidade, que recrudesce em tempos de pandemia. “As mudanças tecnológicas afetam o trabalho da imensa maioria das pessoas, variando desde modificações profundas até alterações pontuais”, alerta o procurador do trabalho Renan Kalil. Segundo ele, a automação da produtividade de trabalhadores já é realidade. “A partir da automação da análise do desempenho de seus empregados, que têm metas elevadas para cumprir as suas funções, os softwares da empresa tomam decisões gerenciais, incluindo as relacionadas à dispensa dos trabalhadores”, detalha.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Kalil mergulha na dura realidade dos entregadores que gerou o ‘Breque dos Apps’ e avalia como este também é um movimento que se difere das mobilizações de trabalhadores do passado. “Apesar de algumas lideranças terem se destacado no processo, não houve a centralização da organização em uma figura”, exemplifica. Mas o procurador propõe ir além, pois, segundo ele, “o momento de pandemia que estamos vivendo potencializa o movimento de aumentar a vigilância dos trabalhadores”. “Uma reportagem da Eletronic Frontier Foundation - EFF apontou que há empresas oferecendo software para empregadores que desejam monitorar os seus trabalhadores que estão em teletrabalho”, acrescenta.
E as mudanças não param apenas no que diz respeito à gestão e economia, avançam também sobre aspectos políticos, legislativos e jurídicos, tentando impor uma espécie de desregulação e desassistência do trabalhador sob o argumento da nova realidade que se impõe. “O trabalho em plataformas apresenta características que poderiam ser melhor reguladas pelo Direito do Trabalho. Por exemplo, a questão dos bloqueios e desligamentos dos trabalhadores ocorre de forma completamente arbitrária pelas empresas. Ainda que exista regramento na legislação trabalhista sobre a forma e o modo de aplicar sanções aos trabalhadores, as demandas que eles apresentam vão além”, exemplifica.
Renan Bernardi Kalil (Foto: Arquivo pessoal)
Renan Bernardi Kalil é procurador do trabalho em São Bernardo do Campo, São Paulo, e integra o Grupo de Trabalho "Plataformas Digitais" da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho - Conafret. É doutor em Direito pela Universidade de São Paulo - USP. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School. Atualmente, integra o Grupo de Trabalho Digital da Rede de Monitoramento da Reforma Trabalhista - Remir e o Grupo de Estudos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida dos Trabalhadores, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo - IEA-USP.
IHU On-Line – Que avaliação faz da greve dos entregadores? Que balanço faz desta paralisação?
Renan Kalil – A greve de 01/07 foi uma ação coletiva dos entregadores capaz de mobilizar um número significativo de trabalhadores em torno de uma pauta conjunta de melhoria das condições de trabalho, como o aumento da remuneração, fim dos bloqueios unilaterais, garantia de seguro e fornecimento de equipamentos de proteção relacionados ao novo coronavírus. O movimento ocorreu em diversas cidades do Brasil e contou com apoio de consumidores e restaurantes que utilizam as plataformas, o que demonstra a legitimidade social da pauta dos entregadores e o reconhecimento público sobre a precariedade das suas condições de trabalho.
Um dos principais méritos da greve foi o de desvelar a invisibilidade das condições de trabalho dos entregadores para o grande público. Durante muito tempo, apesar das empresas proprietárias de plataformas de entrega estarem cada vez mais presentes na vida da classe média brasileira, os debates sobre o trabalho em plataformas digitais se restringiam à universidade, espaços de militância da área trabalhista e Poder Judiciário. As primeiras matérias jornalísticas em grandes meios de comunicação sobre as condições de trabalho dos entregadores foram publicadas somente em 2019.
Contudo, o fato de o governo classificar a atividade de entrega como essencial para permitir que a maior parte da população adotasse medidas de quarentena e de distanciamento social atraiu maior atenção para os entregadores. Nesse contexto, reportagens apontando as más condições de trabalho e pesquisas, como a da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista - Remir, indicando que durante a pandemia os trabalhadores mantiveram longas jornadas de trabalho, tiveram a remuneração reduzida e não receberam medidas de proteção para prevenção do novo coronavírus, mostraram uma realidade cruel: os entregadores são essenciais e precários. A realização da greve e o seu êxito em mobilizar diversos trabalhadores permitiu expor de forma incisiva esse cenário.
Outro mérito da greve foi o de tensionar o discurso sustentado pelas plataformas, fundado em uma suposta autonomia dos entregadores e de suas atividades serem caracterizadas como empreendedoras. Isso vai se mostrando cada vez mais sem respaldo na realidade para o grande público. A realização da greve, a partir da saturação das condições precárias dos entregadores durante a pandemia, permitiu avançar na formação de um entendimento pela sociedade de que esses trabalhadores merecem proteção social e que a atual situação é insustentável.
Nesse sentido, já se notam algumas movimentações jurídicas e políticas em decorrência da paralisação dos trabalhadores. Na última quarta-feira, o presidente da Câmara dos Deputados se reuniu com um grupo de entregadores e se comprometeu a pautar projetos de lei com suas demandas. O Sindimoto de São Paulo apresentou um pedido de mediação no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) para negociar com todas as plataformas de entrega as pautas de reivindicação da greve. Ainda, foi marcada uma nova greve para o dia 25 de julho. Evidentemente que a concretização da melhoria das condições de trabalho dos entregadores ainda está em disputa, mas é inegável que o balanço da greve do dia 01/07 é positivo para esse grupo de trabalhadores.
IHU On-Line – O que a paralisação destes trabalhadores significa neste momento, especialmente em meio à pandemia?
Renan Kalil – A paralisação dos entregadores neste momento é uma resposta à piora contínua das suas condições de trabalho e que, durante a pandemia, atingiu uma situação-limite. Apesar do discurso das plataformas de que todas as medidas de prevenção ao novo coronavírus estavam sendo adotadas, os trabalhadores viveram concretamente o descaso com que foram tratados, considerando que ações básicas como o fornecimento de máscaras, álcool em gel, higienização das bags e auxílio financeiro em caso de adoecimento não foram assegurados ou, na melhor das hipóteses, ocorreram de forma insuficiente.
Segundo a pesquisa da Remir, 57,7% dos entrevistados disseram não ter recebido qualquer apoio das empresas para diminuir os riscos de contaminação e, entre aqueles que receberam (42,3%), a maior parte disse que obteve orientações sobre como trabalhar de forma segura. Embora as plataformas tenham anunciado a criação de fundos com milhões de reais para ajudar os trabalhadores, diversos entregadores relataram a dificuldade em receber os valores prometidos.
Ainda, a paralisação expôs a contradição que é a sociedade depender do trabalho dos entregadores para que seja possível a adoção de medidas de prevenção à contaminação do novo coronavírus, mas não lhes garantir nenhum direito. Pior: no momento em que o seu trabalho deveria ser valorizado, as plataformas reduzem os seus ganhos. De acordo com a pesquisa da Remir, entre os trabalhadores que mantiveram a carga horária durante a pandemia em comparação com o período anterior, mais da metade disse que houve queda na remuneração.
Além disso, a greve dos entregadores os coloca em evidência no debate sobre as suas condições de trabalho. Até um passado muito recente, as discussões sobre as relações entre os trabalhadores e as plataformas digitais no Brasil eram protagonizadas por pesquisadores, juízes do trabalho, procuradores do trabalho e advogados. Todos têm grandes contribuições a dar no debate e é importante que estejam envolvidos com o tema. Contudo, é fundamental que os trabalhadores estejam no centro dessa discussão, tenham voz e pautem os termos do debate, para que os seus interesses sejam levados em consideração neste processo.
Finalmente, a greve de 01/07 pode significar uma mobilização coletiva mais permanente dos trabalhadores. Como mencionamos, foi a primeira vez que os entregadores conseguiram colocar as suas demandas e chamar a atenção para as suas condições de trabalho de forma mais incisiva. O movimento que culminou na paralisação do dia 01/07 foi organizado de forma horizontal e por meio do Facebook, WhatsApp, Twitter e Instagram. Apesar de algumas lideranças terem se destacado no processo, não houve a centralização da organização em uma figura. Ainda, apesar de sindicatos terem convocado e participado da greve, parte considerável do movimento foi organizada em rede e por coletivos sem forma jurídica. Portanto, será interessante acompanhar os próximos passos da organização desses trabalhadores e como farão para manter as suas demandas em evidência.
IHU On-Line – De um lado, assistimos ao crescimento do desemprego no país e, de outro, apesar da precarização, os entregadores estão trabalhando mais do que nunca. Como avalia essa situação?
Renan Kalil – O aumento do desemprego no país e a intensificação da jornada de trabalho dos entregadores estão diretamente relacionadas. Primeiramente, é importante destacar o método que as plataformas de entrega adotaram quando começaram a operar no Brasil. Com o objetivo de atrair uma grande quantidade de trabalhadores e oferecer serviços rápidos para os seus clientes, elas estabeleceram tarifas elevadas para remunerar os entregadores. Desta forma, muitos trabalhadores que eram empregados de empresas de entrega – que apesar de terem carteira de trabalho assinada, eram mal remunerados – saíram desses trabalhos e foram para as plataformas.
Com o crescimento do número de entregadores cadastrados nas plataformas, as empresas passaram a reduzir o valor da tarifa paga aos trabalhadores, sendo que esse movimento de diminuição da remuneração ainda está em curso, mesmo em meio à pandemia. Para ilustrar esse movimento, há relatos de trabalhadores apontando que assim que as plataformas entraram no mercado, pagavam R$ 4 (quatro reais) por quilômetro rodado. Esse valor foi caindo, sendo que imediatamente antes da pandemia, a tarifa era de R$ 1 (um real) e, atualmente, varia entre R$ 0,60 (sessenta centavos) e R$ 0,70 (setenta centavos).
Para se ter uma ideia do efeito que isso produziu no mercado de trabalho, segundo dirigente do Sindimoto-SP, em 2018 existiam 38.000 motofretistas com carteira assinada e 2.000 empresas do setor de motofrete na cidade de São Paulo. Atualmente, existem somente 5.000 trabalhadores com registro em carteira e aproximadamente 200 empresas no setor. Por outro lado, a iFood, que em 2017 tinha 63.000 entregadores registrados, atualmente conta com 170.000.
Ou seja, as plataformas fizeram um movimento simultâneo para se tornarem as principais jogadoras nesse mercado: reuniram parcela expressiva da mão de obra trabalhando para elas, atraindo-a inicialmente com remuneração elevada, e praticaram dumping social, não pagando os direitos trabalhistas que as empresas tradicionais, ainda que precariamente, observavam. A consequência foi a saída de diversas empresas tradicionais desse setor, o que possibilitou a concentração do mercado.
Esse cenário, que possibilita a contínua redução do valor da remuneração dos trabalhadores, somado ao aumento do desemprego no país, o que faz das plataformas uma das poucas opções de trabalho para uma grande quantidade de pessoas, tem como resultado os entregadores terem que trabalhar cada vez mais para obter o mínimo para sua subsistência.
IHU On-Line – Hoje se chama bastante atenção para a situação trabalhista dos entregadores de aplicativos e motoristas de aplicativos. Além deles, que outros setores também têm suas jornadas modificadas e precarizadas por conta das mudanças tecnológicas? Pode dar alguns exemplos?
Renan Kalil – As mudanças tecnológicas afetam o trabalho da imensa maioria das pessoas, variando desde modificações profundas até alterações pontuais. Há notícias que a Amazon automatizou o processo de aferimento da produtividade dos trabalhadores que desenvolvem atividades em seus armazéns. A partir da automação da análise do desempenho de seus empregados, que têm metas elevadas para cumprir as suas funções, os softwares da empresa tomam decisões gerenciais, incluindo as relacionadas à dispensa dos trabalhadores. Esse movimento tende a intensificar a jornada dos trabalhadores.
O momento de pandemia que estamos vivendo potencializa o movimento de aumentar a vigilância dos trabalhadores. Recentemente, uma reportagem da Eletronic Frontier Foundation - EFF apontou que há empresas oferecendo software para empregadores que desejam monitorar os seus trabalhadores que estão em teletrabalho. Para que não pareça nada muito invasivo, formalmente as empresas vendem esse produto como se fosse um software de “monitoramento automático de tempo” ou de “análise de trabalho”, enquanto outras apontam que se trata de prevenção de roubo de dados ou de propriedade intelectual. Contudo, o que esses softwares realmente fazem é registrar cada clique e ato de digitação feitos pelos trabalhadores, colocando em risco a privacidade e a segurança de seus empregados, em uma atitude claramente desnecessária e desproporcional para o gerenciamento da mão de obra.
Ainda, há empresas adotando sistema que envia avisos em tempo real aos seus trabalhadores, caso estejam se aproximando uns dos outros, com o objetivo de manter certos graus de distanciamento social para prevenir a disseminação do novo coronavírus. Essas ferramentas de monitoramento digital podem ter um efeito benéfico em um primeiro momento, olhando-se apenas para essa questão de saúde pública. Contudo, há receio que as empresas usem esses instrumentos para vigiar toda e qualquer movimentação de seus empregados no local de trabalho.
Finalmente, destaco recente modificação legislativa que favorece a intensificação da jornada de trabalho sem que ocorra qualquer contraprestação aos trabalhadores. A Medida Provisória n. 927, que trata das regras do contrato de trabalho durante a pandemia da covid-19, estabelece no art. 4º, parágrafo 5º, que “o tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo”. Tal disposição permite que trabalhadores não sejam remunerados por horas extras que eventualmente realizem em regime de teletrabalho.
IHU On-Line – Como tem refletido sobre o trabalho dos entregadores de aplicativos do ponto de vista do Direito do Trabalho?
Renan Kalil – O trabalho dos entregadores é motivo de grandes embates no Direito do Trabalho. O grande debate colocado ocorre em torno da existência de vínculo de emprego entre o trabalhador e a plataforma. Há um grupo que identifica a presença de trabalho autônomo, em grande parte pelo fato de os entregadores terem flexibilidade de horários, podendo escolher quando trabalhar sem interferência das plataformas. Aqui, há pessoas que defendem que não deve haver regulação do trabalho dos entregadores, enquanto outros apontam para a necessidade de dispor de condições específicas das atividades desenvolvidas por esses trabalhadores.
Por outro lado, há um grupo que entende que existe vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas, uma vez que estas controlam o trabalho realizado pelos entregadores, uma vez que são elas que determinam o valor da remuneração, as regras de entrada e permanência na atividade, a necessidade de aceitar trabalho para continuar recebendo pedidos e as regras de suspensão e desligamento, dentre outros, sendo que o gerenciamento desses elementos ocorre por meio dos algoritmos.
Contudo, entre os defensores da existência do vínculo, não existe uma posição unívoca: há aqueles que entendem que a CLT, com as regulações que dispõe atualmente, é plenamente capaz de dar todas as respostas para as relações entre entregadores e plataformas, enquanto há outros que apontam que, ainda que a legislação trabalhista atual seja importante e tenha condições de proteger parcialmente esses trabalhadores, outros aspectos ainda estão descobertos e mereceriam atenção do legislador.
No Poder Judiciário, a questão é igualmente dividida. Existem diversas ações individuais em que trabalhadores pedem o reconhecimento de vínculo trabalhista com as plataformas. Há decisões que acolhem os pedidos dos entregadores e outras que entendem haver trabalho autônomo. O Ministério Público do Trabalho possui investigações e ações civis públicas em face das plataformas de entrega. Existem dois casos com decisões do Judiciário: em um, contra a Loggi, foi reconhecido o vínculo de emprego; em outro, contra a iFood, não houve identificação da relação de emprego. Ambos os casos estão pendentes de análise de recurso pelo TRT-2.
No Poder Legislativo, existem dezenas de projetos de lei que tratam da matéria e que, de alguma forma, refletem a diversidade de posicionamentos sobre a forma pela qual o tema deve ser regulado. Há desde iniciativas que introduzem seção específica na CLT para dispor sobre o trabalho dos entregadores via plataforma, como o PL 5069/2019, até outras que tratam de aspectos específicos da relação, como o PL 3515/2020, que trata da forma de desligamento dos trabalhadores e que em sua justificativa não reconhece o vínculo empregatício.
IHU On-Line – Muitos pesquisadores mencionam a necessidade desses trabalhadores de terem direitos trabalhistas. De outro lado, a renda advinda deste tipo de trabalho está diretamente relacionada ao tempo de trabalho, ou seja, quanto mais horas eles trabalham, mais eles ganham. Como pensar as questões trabalhistas neste contexto e nesta nova forma de trabalho? Que questões precisam ser pensadas nesse novo contexto?
Renan Kalil – Em primeiro lugar, é importante destacar que a ausência de um valor mínimo para o trabalho e de falta de limitação da jornada de trabalho, que é o que impera atualmente, beneficia somente as plataformas. Em um cenário no qual somente um dos atores determina unilateralmente o preço do trabalho, sem a necessidade de observar qualquer regramento, abre-se um espaço para fazer os entregadores trabalharem mais sem que necessariamente o valor da sua remuneração aumente.
Aqui, recordo o resultado da pesquisa realizada pela Remir: durante a pandemia, os entregadores viram o valor da tarifa cair e tiveram que aumentar a sua jornada para obter o mesmo que ganhavam antes da disseminação do coronavírus. Nesse sentido, é fundamental a aplicação das regras básicas do Direito do Trabalho, como o salário mínimo e a limitação da jornada.
Acredito que o trabalho em plataformas apresenta características que poderiam ser melhor reguladas pelo Direito do Trabalho. Por exemplo, a questão dos bloqueios e desligamentos dos trabalhadores ocorre de forma completamente arbitrária pelas empresas. Ainda que exista regramento na legislação trabalhista sobre a forma e o modo de aplicar sanções aos trabalhadores, as demandas que eles apresentam vão além. Na minha tese de doutorado, em que realizei estudo de caso sobre os motoristas da Uber em São Paulo, uma das principais reclamações dos trabalhadores era o fato deles não serem ouvidos pela plataforma antes de receberem uma suspensão ou de terem a conta encerrada. No mesmo sentido, essa era uma das pautas colocadas pelos entregadores na greve de 01/07.
Outro aspecto que merece maior atenção é a regulação dos dados pertencentes aos trabalhadores. As plataformas monitoram todas as atividades que os motoristas e entregadores desenvolvem enquanto estão conectados ao aplicativo, coletando os seus dados e aprimorando o algoritmo que gerencia a mão de obra. Ainda, a avaliação que os trabalhadores recebem dos clientes, em muitos casos, é central para receberem mais pedidos de corridas ou de entregas.
Contudo, o histórico de atividades de cada plataforma não é intercambiável com as outras para as quais o trabalhador eventualmente realize atividades. Para que a situação de motoristas e entregadores melhorasse e eles não ficassem dependentes de somente uma plataforma, seria importante a portabilidade das avaliações entre os aplicativos.
Finalmente, ressalto que as regras gerais do Direito do Trabalho devem ser aplicadas às atividades realizadas pelos trabalhadores em plataformas digitais. Reconhecer as mudanças na organização da produção para que esse ramo jurídico desempenhe o papel para o qual foi criado, que é a proteção jurídica do trabalhador que está em uma relação marcada pela desigualdade econômica, não é um sinal de desprestígio ou enfraquecimento do Direito do Trabalho. Pelo contrário, a atualização de sua interpretação e a criação de novos regramentos é fundamental para que as alterações que ocorrem no mundo do trabalho sejam rapidamente captadas e, assim, os trabalhadores não fiquem sem proteção.
IHU On-Line – Como as grandes empresas de aplicativos têm reagido à discussão sobre a regulamentação trabalhista?
Renan Kalil – As empresas de aplicativos rejeitam qualquer regulamentação trabalhista, sob o argumento de que os entregadores desenvolvem trabalho autônomo. Em todos os processos trabalhistas em curso no Brasil, tanto os individuais, como os coletivos, as empresas negam qualquer responsabilidade trabalhista. Contudo, essa postura não ocorre apenas no Brasil: as plataformas que atuam no âmbito global, como a Uber, têm essa conduta em todos os países em que operam.
É verdade que em alguns países, como nos Estados Unidos, existem propostas das plataformas para regular, ainda que fora do Direito do Trabalho, as atividades de motoristas e entregadores. No entanto, é importante entender o contexto em que essas movimentações ocorrem. Por exemplo, no segundo semestre de 2019, a Uber e a Lyft apresentaram proposta para aumentar a remuneração dos motoristas e reconhecer o direito de negociação coletiva desses trabalhadores no estado da Califórnia. Essa iniciativa ocorreu em um cenário em que o Legislativo Estadual estava debatendo a aprovação de uma lei para facilitar a classificação dos trabalhadores como empregados, levando em consideração uma decisão da Suprema Corte da Califórnia de 2018. Ou seja, a proposta da Uber e da Lyft somente foi colocada no debate público em um contexto do avanço da regulação do trabalho dos motoristas.
O projeto de lei que facilita o reconhecimento do vínculo empregatício foi aprovado e entrou em vigor em janeiro deste ano. Contudo, as plataformas continuam contestando a regulação do trabalho, sendo que até o momento não classificaram os seus motoristas como empregados e são alvos de medidas judiciais das autoridades estaduais. Ainda, Uber e Lyft conseguiram articular a realização de uma espécie de plebiscito, que ocorrerá em conjunto com as eleições presidenciais de novembro deste ano, para que as plataformas não sejam obrigadas a cumprir os termos desta nova lei. Portanto, percebe-se que as empresas adotam todos os instrumentos que têm à sua disposição, jurídicos e políticos, para não aplicar o Direito do Trabalho aos seus motoristas e entregadores.
Por fim, entendo que é fundamental que o Poder Judiciário entenda o seu papel nesta disputa. Recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho julgou improcedente o pedido de reconhecimento de vínculo empregatício apresentado por um motorista da Uber. Apesar de os ministros dizerem que a relação não se enquadra nos requisitos da CLT, um deles afirmou que os trabalhadores devem ter algum tipo de proteção social.
Nesse cenário, é importante dimensionar o efeito que a decisão do TST produz nesse debate. Qual o estímulo da Uber em propor e apoiar qualquer proposta que reconheça direitos aos seus trabalhadores quando o órgão de cúpula da Justiça do Trabalho diz que eles não têm qualquer responsabilidade trabalhista? É provável que uma decisão em sentido contrário do TST estimulasse o debate sobre a regulação do trabalho nas plataformas digitais. Portanto, é fundamental que se tenha em vista que a definição de quem é empregado e quem não é vai além do debate jurídico, mas também é político e as decisões judiciais têm reflexo nessa esfera.
IHU On-Line – Que transformações as tecnologias estão gerando no mundo do trabalho?
Renan Kalil – As inovações tecnológicas não são forças isoladas produzidas por valores neutros e interesses sem vinculação com as relações de poder instituídas, mas fazem parte de um sistema socioeconômico, sendo geradas e utilizadas de acordo com os seus ditames. A noção de tecnologia como força condutora de uma marcha inexorável a caminho de uma direção unívoca despreza as possibilidades de intervenção na realidade para se moldar o presente e o futuro a partir de formas alternativas e coloca-nos na única posição de moldar marginalmente o que está por vir, cujos resultados mais substanciais já estão dados. Não há precedente histórico no qual a tecnologia atue como um elemento independente das demais dimensões econômicas, políticas e sociais. É fundamental termos isso como ponto de partida para analisar como as tecnologias promovem transformações no mundo do trabalho.
O impacto das novas tecnologias na organização da produção atrai grande atenção dos debates realizados na opinião pública, em especial quando se discute o futuro do trabalho. Do ponto de vista qualitativo, há razoável consenso quanto ao fato de que mudanças estão em curso. Não há o mesmo consenso em sua análise. Alguns estudos priorizam o viés da fragmentação e fissuração do trabalho, ao passo que outros enfatizam as novas qualificações necessárias para encontrar ocupações no mercado de trabalho. Da perspectiva quantitativa, existem trabalhos indicando uma queda expressiva do número de empregos, enquanto outros apresentam dados que apontam poucas mudanças substantivas, além de uma terceira vertente sugerir que ocorre um movimento de abertura de postos de trabalho que exigem novas qualificações e de fechamento daqueles não especializados, repetitivos e que não demandam quaisquer aptidões – nela, o saldo final é favorável à geração de empregos.
As diferenças nas projeções sobre o futuro do trabalho mencionadas acima, especialmente sob a ótica quantitativa, decorrem de recortes setoriais e espaciais distintos, entendimentos a respeito do comportamento dos atores sociais e compreensões opostas sobre a repetição de padrões históricos ou a inauguração de novos tempos. Independentemente da perspectiva que se adote, as formas de trabalho no capitalismo de plataforma já apontam para efeitos bem concretos do impacto da tecnologia na organização do trabalho: identificou-se a criação de empregos sem qualquer proteção aos trabalhadores, em que as relações de trabalho operam em dinâmica distinta da tradicionalmente concebida e nas quais dependência e precariedade caminham lado a lado.
Ou seja, para além das discussões sobre a necessidade de preparar a força de trabalho para um cenário em que as empresas demandarão novas capacidades ou de uma conjuntura na qual não haverá postos de trabalho suficientes para todas as pessoas, entendo que os efeitos imediatos da tecnologia da informação e comunicação no mercado de trabalho são tangíveis o suficiente para que se coloque o debate sobre a importância de regulação trabalhista nas plataformas digitais. Nesse sentido, fica patente como a tecnologia não é neutra, uma vez que são visíveis os seus impactos nas dinâmicas de trabalho correntes: as condições de trabalho daqueles que dependem da plataforma são precárias e a forma pela qual os algoritmos e plataformas operam criam uma acentuada assimetria de poderes entre as empresas e os trabalhadores.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios do Brasil em termos de avançar na direção de conquistas trabalhistas tendo em vista as transformações do mundo do trabalho?
Renan Kalil – Primeiramente, é preciso entender como essas transformações do mundo do trabalho estão ocorrendo, para que o Direito do Trabalho seja devidamente aplicado a essas novas dinâmicas. Parte das decisões do Poder Judiciário não vislumbra o vínculo empregatício de motoristas e entregadores com as plataformas porque adotam premissas equivocadas, buscando a figura do preposto, gerente, encarregado ou qualquer pessoa que seja responsável por dar ordens aos trabalhadores para identificar a subordinação.
Procurar pela pessoa que fica na empresa coordenando pessoal e diretamente a atividade dos trabalhadores para, a partir daí, reconhecer o vínculo empregatício, é condenar o Direito do Trabalho a tutelar somente o trabalhador fabril dos séculos XIX e XX. As técnicas de gestão de mão de obra evoluíram nas últimas décadas e, sem levar em consideração o papel da programação e do algoritmo nas plataformas, não é possível entender as dinâmicas das relações de trabalho nesse modelo.
Em segundo lugar, entendo que é necessário fortalecer as organizações coletivas de trabalhadores, como os sindicatos, para que os principais atores das relações de trabalho tenham protagonismo nesses debates. A legislação sindical brasileira desestimula a formação de entidades representativas dos trabalhadores. O país fez uma transição incompleta na Constituição Federal de 1988 e, na reforma trabalhista de 2017 (Lei n. 13.467/17), abordou somente um dos aspectos corporativistas remanescentes – a contribuição sindical - de forma desequilibrada, dado que não previu um modelo de transição, não regulamentou um modo democrático de financiamento e tratou de forma desproporcional a fonte de sustentação das entidades representantes dos trabalhadores e dos empregadores. Além disso, o país ainda carece de uma legislação que sancione de forma efetiva condutas antissindicais, o que é fundamental para permitir a expressão adequada dos interesses dos trabalhadores.
Finalmente, entendo que se deve garantir maior espaço aos trabalhadores para que sejam ouvidos na formulação de políticas públicas no país. O governo federal, por exemplo, criou no fim do ano passado o Grupo de Altos Estudos do Trabalho, com o objetivo de realizar uma nova reforma trabalhista. Entre os participantes não há nenhum representante sindical ou de pessoas próximas aos movimentos dos trabalhadores. Ora, não é possível que novas regulações do trabalho sejam construídas sem que as trabalhadoras e os trabalhadores sejam ouvidos.
Para que os desafios colocados pelas novas dinâmicas de trabalho sejam devidamente enfrentados, é fundamental a revisão da recente trajetória de exclusão dos trabalhadores na elaboração de medidas para regular o mundo do trabalho. Incluir os trabalhadores nesse debate permitirá rever o falso dogma “menos direitos, mais empregos” que orienta toda política pública do atual governo em matéria trabalhista. É urgente que os representantes dos trabalhadores sejam ouvidos pelo governo e os seus interesses sejam levados em consideração. Somente assim teremos a oportunidade de fortalecer a democracia no Brasil, de não construir soluções que sejam enviesadas e de manter e avançar as conquistas trabalhistas.
IHU On-Line – Além da precarização de alguns setores, observa-se também um aumento em relação aos trabalhos informais e também um aumento do desemprego neste momento. Como enfrentar essa situação no futuro? Que programas poderiam ajudar nesse sentido?
Renan Kalil – O tratamento da condição dos desempregados e dos trabalhadores informais passa necessariamente pela criação de um programa de renda básica universal que lhes permita sobreviver com um mínimo de dignidade, não os faça aceitar qualquer tipo de trabalho e não os leve a uma situação permanente de pobreza. O grande desafio para isso é que essa discussão está atrelada ao rearranjo da tributação no Brasil, que tradicionalmente favorece os mais ricos e há anos está interditado, ainda que eventualmente surjam propostas no debate público. Ainda, é importante que a criação de um programa nesses moldes não coloque em segundo plano a relevância da regulação do trabalho.
A reversão do quadro de aumento da informalidade demanda uma série de ações por parte de diversos atores sociais: o Poder Executivo, na elaboração de políticas públicas que viabilizem a inserção dos informais no mercado formal, bem como o desenvolvimento da oferta de capacitação profissional; o Poder Legislativo, na criação de normas protetivas aos informais, como as que estendam a aplicação dos direitos sociais a todos os cidadãos; e dos próprios trabalhadores, na formulação de propostas para melhorar sua situação socioeconômica, como a apresentação de projetos que contemplem as suas necessidades aos Poderes Públicos. A atuação coletiva dos trabalhadores pode ocorrer por meio de entidades sindicais, quando o objetivo imediato é promover interesses do ponto de vista de uma dinâmica baseada na desigualdade econômica que caracteriza a relação de trabalho, e de cooperativas, que oferecem a possibilidade de os trabalhadores constituírem uma entidade para se auxiliarem mutuamente com fins econômicos.
Além disso, é central o fortalecimento dos atores públicos do sistema trabalhista no Brasil. A Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a Auditoria-Fiscal do Trabalho prestam um serviço de grande valia para fazer com que a legislação trabalhista seja aplicada e para estimular a formalidade do mercado de trabalho, por meio do combate às fraudes contratuais. Em relação a esse aspecto, o maior desafio que se identifica é a ofensiva para o desmonte deste sistema: em mais de uma ocasião, figuras centrais do atual governo federal verbalizaram o desejo de acabar com a Justiça do Trabalho e Ministério Público do Trabalho; além disso, uma das primeiras medidas do governo federal foi a extinção do Ministério do Trabalho, o que desarticula as políticas públicas voltadas ao mundo do trabalho.