17 Dezembro 2014
“Está ocorrendo uma reforma trabalhista silenciosa sem a participação da sociedade, capaz de impactar mais de 50 milhões de trabalhadores e o Brasil inteiro, porque são 50 milhões de trabalhadores com suas famílias que podem estar perdendo seus direitos. Temos de avaliar por que isso acontece”, afirma o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho - TRT da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins).
Foto: Portal Cesed |
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho – TRT da 10ª Região diz que “é forçoso concluir que o Supremo fez uma opção interpretativa capaz de restringir a efetividade de direito fundamental dos empregados brasileiros”. Em contrapartida, ele argumenta que “o próprio texto constitucional pronuncia que são direitos sociais dos empregados todos aqueles previstos no elenco do artigo 7º, além de outros que visem à melhoria das condições sociais dos trabalhadores”.
Na avaliação de Coutinho, “os empregados são os grandes prejudicados” com a decisão do STF, “mas os projetos habitacionais do governo, com financiamento da Caixa Econômica Federal, também vão sofrer impacto, porque a redução do prazo prescricional para reclamar o FGTS, de algum modo, vai estimular parte do setor empresarial a ter menor cuidado com essa sua obrigação mensal. Ou seja, as empresas tendem a relaxar quanto ao recolhimento do FGTS daqueles contratos mais longos, porque uma coisa é o trabalhador dispor do prazo de 30 anos para reclamar, assim como a empresa ter ciência de que pode ser demandada durante o referido prazo, enquanto durar o contrato; outra muito diferente, no entanto, é quando ela percebe que esse prazo é bastante reduzido. Então, o efeito prático dessa mudança pode importar no estímulo à ausência do cumprimento patronal relativo aos depósitos mensais regulares do FGTS”.
Coutinho ressalta ainda que as decisões do Supremo devem ser respeitadas, contudo pontua que a decisão da Suprema Corte demonstra a falta de consenso entre as duas instâncias jurídicas, à medida que as pautas aprovadas pelo TST nem sempre são consideradas pelo STF. “Na prática, portanto, tem acontecido muito de o Supremo Tribunal Federal desconstituir decisões do Tribunal Superior do Trabalho e, normalmente, o tem feito por essa via flexível ou do enfraquecimento do direito do trabalho”, critica.
De acordo com o desembargador, atualmente o TST é mais criterioso em relação às pautas trabalhistas, assumindo uma postura mais progressista do que a dos anos 1990. Entretanto, os ministros que compõem o STF, escolhidos pelos governos Lula e Dilma, assumem uma postura mais conservadora. “Por que um governo de centro-esquerda tem um Supremo que olha de uma forma tão diferente para o Direito do Trabalho, quando se compara com a visão do TST?”, questiona. E acrescenta: “Temos mais de 50 milhões de trabalhadores regidos pela CLT, sem contar os informais. Ou seja, são mudanças trabalhistas as quais impactam a sociedade inteira. Não estamos tratando de uma questão menor. É o prazo da prescrição sensivelmente reduzido, é a redução de garantias dos trabalhadores com a nova lei de falências, é a terceirização que se encaminha para ser liberada de forma geral, sendo que tudo isso tem ficado muito restrito ao debate entre os operadores do mundo jurídico”.
Juiz do Trabalho desde 1992, Grijalbo Coutinho é mestre em Direito e Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e mestre em Teoria Crítica dos Direitos Humanos e Globalização pela Universidade Pablo de Olavide, de Sevilla, Espanha. Concluiu, ainda, curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília e de Direito e Processo do Trabalho pela PUC-Minas, além do curso de Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp. Foi presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 10ª Região nas gestões 1999/2001 e 2001/2003, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho na gestão 2003/2005 e da Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho no biênio 2006/2008.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que consiste a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, de que os trabalhadores só podem requerer na Justiça depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS dos últimos cinco anos e não mais dos últimos 30 anos?
Foto: Site BancáriosDF
Grijalbo Coutinho – O FGTS sempre teve um prazo prescricional diferente, bem mais amplo. Desde a sua criação, em 1966, esse prazo foi entendido pela jurisprudência trabalhista como sendo de 30 anos, pois se considerava que a referida parcela tinha uma natureza fiscal/previdenciária. Com a Lei 8036 de 1990, o legislador, de modo expresso, estabeleceu que a prescrição é de 30 anos, o que já vinha sendo proclamado pela jurisprudência pacificada do Tribunal Superior do Trabalho - TST e, evidentemente, há uma razão para isso: o empregado, durante o contrato de trabalho, tem enormes dificuldades para demandar contra a empresa, até mesmo pelo nível das relações de trabalho, que ainda são profundamente autocráticas. Deste modo, o empregado normalmente só demanda contra a empresa e reclama seus direitos após o final do contrato, o que é absolutamente lamentável, mas faz parte de uma triste realidade. Então, um empregado com 10, 15, 20 anos de trabalho poderia, até a decisão do Supremo, reclamar todo o FGTS não recolhido até o limite de 30 anos, embora relações de emprego com 30 anos no Brasil sejam cada vez mais raras.
De todo modo, o FGTS foi criado, inclusive, em substituição a uma garantia muito maior, que era a estabilidade no emprego, conferida aos trabalhadores regidos pela CLT. Todo empregado que contasse com dez ou mais anos de serviço na mesma empresa tinha garantida a sua estabilidade, ou seja, não poderia ser dispensado sem justa causa, mas o governo ditatorial-militar acabou com essa conquista social vigente desde os anos 1940, atendendo, assim, o desejo das empresas nacionais e multinacionais. Em contrapartida, veio o FGTS. Embora o regime do FGTS fosse opcional até a Constituição de 1988, na prática, porém, os empregadores, quando contratavam, exigiam que os empregados assinassem o tal termo de “opção” para liquidar com a hipótese de estabilidade.
O FGTS é um direito do empregado dotado de função social muito importante para além do contrato de trabalho. Hoje os empregados não dispõem do FGTS mês a mês, e como sabemos, o FGTS vai para uma conta administrada pelo governo federal, que passa a realizar financiamentos habitacionais, incluindo grandes obras públicas. O empregado só dispõe desse valor quando é dispensado sem justa causa ou pela ausência de movimentação da referida conta pelo prazo de três anos, bem como em outras hipóteses excepcionais previstas em lei. Então, concretamente, o prazo diferenciado para reclamar a realização ou o complemento dos depósitos do FGTS era uma garantia fundamental para preservar os direitos dos empregados, à medida que havia um prazo prescricional de 30 anos para ele exigir do seu empregador a comprovação dos respectivos depósitos mensais.
Implicações para os trabalhadores
Com a decisão do Supremo, a redução do prazo é drástica, considerando que, na prática, o trabalhador só vai poder reclamar o FGTS dos últimos cinco anos, sendo alcançado pela prescrição todo o restante (os créditos de FGTS dos anos anteriores aos últimos cinco demandados). Foi estabelecida, na decisão do STF, uma regra de transição, mas que não resolve muita coisa para os empregados. O prejuízo para os trabalhadores é imenso. E do ponto de vista jurídico, a decisão do Supremo, evidentemente, é muito questionável.
Adotou-se o entendimento de que a Constituição de 1988 não estabelece diferença para qualquer crédito de natureza trabalhista, no que se refere à prescrição, que é de cinco anos, nos termos do artigo 7ª, XXIX. No entanto, o próprio texto constitucional pronuncia que são direitos sociais dos empregados todos aqueles previstos no elenco do artigo 7º, além de outros que visem à melhoria das condições sociais dos trabalhadores. É forçoso concluir que o Supremo fez uma opção interpretativa capaz de restringir a efetividade de direito fundamental dos empregados brasileiros. Sem dúvida, os trabalhadores perdem muito com a decisão do Supremo, porque as empresas não recolhem com exatidão o FGTS. Inúmeras são as empresas que deixam de recolher o FGTS durante o contrato, assim como tantas outras providenciam os depósitos em valores não condizentes com a remuneração efetivamente paga. Esta é uma das parcelas mais reivindicadas pelos trabalhadores perante a Justiça do Trabalho.
Tudo que se observou antes diz respeito aos casos em que a empresa não recolhe o FGTS ou o faz em quantia menor do que aquela efetivamente devida mês a mês, na conta vinculada. Se a empregadora recolhe o FGTS de maneira correta, não haverá problema, ou seja, o empregado vai receber o seu crédito total no momento próprio. Trata-se de obrigação da empresa depositar mensalmente o FGTS na conta vinculada de cada empregado. Quando ela recolhe, não tem problema, o crédito é do empregado, e não da empresa. Independentemente do prazo que o trabalhador for reclamar, ele vai receber tudo que lhe é de direito. Quando há recolhimento regular, o trabalhador não depende da empresa para sacar o FGTS.
O que nós estamos discutindo, na verdade, em relação ao recolhimento do FGTS, é quando a empresa deixa de fazê-lo. Se ela fizer, perfeito. O empregado pode trabalhar 40 anos na empresa, que se estiver tudo recolhido, ele vai receber normalmente quando sair do emprego. O imbróglio surge quando o FGTS deixa de ser depositado ou é recolhido a menor, o que é muito frequente e ocorre com inúmeras empresas pequenas, médias e de porte elevado. No particular, temos duas questões: a primeira é aquela empresa que simplesmente deixa de recolher durante muitos meses, ou durante todo o contrato de trabalho; e a outra, em relação às que recolhem de forma insuficiente, por exemplo, recolhem só sobre o salário básico, sem tomar em conta as comissões e outras vantagens pagas ao empregado, e isso dá uma diferença significativa. Com a mudança promovida pelo STF, o empregado, na prática, somente vai ter direito a receber os créditos do FGTS dos últimos cinco anos, desde que presentes as irregularidades antes apontadas.
Implicações para projetos habitacionais
Sem nenhuma dúvida, os empregados são os grandes prejudicados, mas os projetos habitacionais do governo, com financiamento da Caixa Econômica Federal, também vão sofrer impacto, porque, a meu juízo, a redução do prazo prescricional para reclamar o FGTS, de algum modo, vai estimular parte do setor empresarial a ter menor cuidado com essa sua obrigação mensal. Ou seja, as empresas tendem a relaxar quanto ao recolhimento do FGTS daqueles contratos mais longos, porque uma coisa é o trabalhador dispor do prazo de 30 anos para reclamar, assim como a empresa ter ciência de que pode ser demandada durante o referido prazo, enquanto durar o contrato; outra muito diferente, no entanto, é quando ela percebe que esse prazo é bastante reduzido. Então, o efeito prático dessa mudança pode importar no estímulo à ausência do cumprimento patronal relativo aos depósitos mensais regulares do FGTS.
IHU On-Line – Mas o trabalhador tem como acompanhar se a empresa está recolhendo?
Grijalbo Coutinho – Sim. Na verdade, ele dispõe do extrato a ser retirado em qualquer terminal eletrônico bancário e pode acompanhar as movimentações (depósitos) e atualizações da conta FGTS como se fosse uma conta normal. Mas quantos trabalhadores não realizam essa tarefa de forma cotidiana? Devo dizer que o primeiro obstáculo surge com a própria interpretação dos dados constantes no extrato da conta FGTS. São números e dados ali presentes os quais demandam um olhar cuidadoso para se saber o que de fato ocorreu. Nesse sentido, o extrato precisa ser aperfeiçoado, porque atualmente ele mais confunde do que explica; muitas vezes não é possível saber facilmente se a empresa depositou ou não o valor na data efetiva, bem como o valor do principal e as importâncias devidas a títulos de juros e atualização monetária. Além do mais, o depósito pode ser a menor. E muitas vezes, reitere-se, o empregado não sabe qual é o valor que deve ser recolhido a tal título, especialmente quando parcelas variadas integram a sua remuneração.
O fornecimento facilitado do extrato é uma medida interessante, mas não resolve tudo, porque a sua leitura nem sempre é de fácil compreensão, pelos leigos e não leigos. Ademais, como citado anteriormente, mesmo tendo conhecimento da irregularidade no depósito do FGTS, bem sabemos que o empregado encontra sério obstáculo para demandar judicialmente contra a sua empregadora durante a vigência do contrato. Quando o faz, lamentavelmente, há represália consistente na dispensa sem justa causa. Muitas empresas não toleram o fato de o empregado ir ao Judiciário antes do término da relação. No mundo real, não é fácil para o empregado no Brasil exercer essa cidadania consagrada em todas as constituições democráticas. O empregado perde, portanto, parte significativa de direito seu, a partir da redução de 30 para cinco anos para reclamar os créditos do FGTS.
"Nós da Justiça do Trabalho, que analisamos de forma crítica o processo que ora se desenvolve, temos percebido que o Supremo Tribunal Federal, na prática, tem afastado do mundo jurídico decisões progressistas do TST em temas de grande relevância, conferindo ao direito do trabalho um caráter mais civilista ou de igualdade entre as partes da relação de emprego" |
IHU On-Line - Como o senhor interpreta essa decisão? Por que e em que contexto histórico e político se dá essa mudança? É possível fazer uma análise nesse sentido?
Grijalbo Coutinho – Para entender o contexto em que se dá essa medida, é preciso fazer uma análise do que vem ocorrendo nos últimos anos. O Tribunal Superior do Trabalho sempre foi tido como uma Corte razoavelmente conservadora em relação à proteção do direito do trabalho, especialmente nos anos 1990. A partir dos anos 1990, registre-se, com o processo de flexibilização do direito do trabalho no mundo inteiro, bem intenso no Brasil, por ações variadas, o TST flexibilizou, em alguma medida, o direito do trabalho, não de forma avassaladora, mas é certo que alguns temas mereceram olhar menos protetivo. Contudo, o TST mudou nos últimos anos: é um Tribunal muito mais progressista, mais protetivo do direito do trabalho, ao aplicar os princípios orientadores do juslaboralismo. Na verdade, houve uma mudança no perfil daquele tribunal. O TST foi recomposto, pois muitos ministros se aposentaram, assim como foram criados mais dez cargos com a reforma do Judiciário, em 2004, e a partir de 2005 esses cargos começaram a ser providos. Hoje o TST tem 27 ministros, cujo perfil médio dos seus integrantes é nitidamente progressista, tendo ocorrido uma significativa mudança de sua jurisprudência, como tem se revelado cada vez mais frequente em decisões importantes ali proferidas. Não é o caso específico da prescrição do FGTS, que tem na Lei o prazo de 30 anos para o empregado reclamar judicialmente contra eventuais irregularidades, aspecto esse declarado inconstitucional pelo Supremo, como vimos antes. De todo modo, o TST tem muitas decisões recentes apontando no sentido de proteger efetivamente os direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora.
Decisões do STF
O setor empresarial não está, evidentemente, satisfeito com algumas decisões do Tribunal Superior do Trabalho, dirigindo agora todas as suas insatisfações para o Supremo Tribunal Federal, com ações diretas de inconstitucionalidade e recursos extraordinários — é o que temos percebido, nos últimos cinco ou seis anos, e com maior velocidade nos últimos três ou quatro. Em boa medida, o Supremo Tribunal Federal tem acolhido esses recursos e julgado procedentes as ações do setor patronal. Na prática, portanto, tem acontecido muito de o Supremo Tribunal Federal desconstituir decisões do Tribunal Superior do Trabalho e, normalmente, o tem feito por essa via flexível ou do enfraquecimento do direito do trabalho.
Tais casos merecem um estudo sociológico, político e também jurídico, evidentemente. Mas nós da Justiça do Trabalho, que analisamos de forma crítica o processo que ora se desenvolve, temos percebido que o Supremo Tribunal Federal, na prática, tem afastado do mundo jurídico decisões progressistas do TST em temas de grande relevância, conferindo ao direito do trabalho um caráter mais civilista ou de igualdade entre as partes da relação de emprego. Esse é um dado preocupante, para o qual os trabalhadores devem olhar atentamente. Algumas entidades de trabalhadores, imagino, já devem ter percebido isso. A decisão do FGTS se inclui neste contexto. O STF é também a corte constitucional brasileira além da “última instância” do poder Judiciário, o tribunal que deve garantir os direitos fundamentais, não só os direitos civis e políticos, evidentemente. É necessário reafirmar que o STF deve garantir todos os direitos fundamentais.
Direitos fragilizados
"O debate que precisamos travar com a sociedade é de como, na prática, esses direitos sociais estão sendo reduzidos" |
Alguns direitos sociais têm sido bastante fragilizados por ações dos poderes constituídos. A decisão relativa ao menor tempo para reclamar contra as irregularidades nos depósitos do FGTS foi a de maior repercussão pública, mas há tantas outras, como uma que está se encaminhando para a liberação da terceirização geral, seja no âmbito do Parlamento ou do Poder Judiciário. É algo realmente preocupante.
O debate que precisamos travar com a sociedade é de como, na prática, esses direitos sociais estão sendo reduzidos. Não se discute a legitimidade das decisões tomadas pelos poderes constituídos, embora seja necessário, sempre, reafirmar o apreço pelo Direito do Trabalho protetivo, pelo Direito do Trabalho concebido para regular uma relação entre pessoas marcadas por notória diferença econômica, cuja desigualdade jurídica existe para tentar equilibrar a disputa entre o capital e o trabalho nos marcos definidos pelo Estado. Embora o mundo tenha mudado, as razões de ser do Direito do Trabalho, amparado em princípios, não se alteraram. Ao contrário, as desigualdades entre o capital e o trabalho são ainda enormes, elas continuam da mesma forma, senão muito mais intensas na época da globalização neoliberal, justificando, por isso mesmo, os direitos do trabalho fundados em princípios protetivos.
"Embora o mundo tenha mudado, as razões de ser do Direito do Trabalho, amparado em princípios, não se alteraram" |
IHU On-Line – Como entender essa falta de consenso em decisões importantes em relação ao trabalho, entre o STF e o TST, ainda mais considerando que tal falta de consenso se dá no governo do Partido dos Trabalhadores?
Grijalbo Coutinho – As indicações para o Tribunal Superior do Trabalho se constituem, a meu ver, em uma das razões das mudanças da jurisprudência. Os governos dos últimos 12 anos, ou seja, os governos dos presidentes Lula e Dilma, deram uma contribuição para essa mudança de perfil, a qual pode não ter sido enorme, mas é uma contribuição, até porque o presidente da República não escolhe livremente os ministros do TST; estes são escolhidos a partir de listas tríplices elaboradas pelo próprio TST. A presidência escolhe a partir de determinados limites impostos pelo TST. Mas, de qualquer modo, houve sim, nesses últimos 12 anos, escolhas de ministros com perfil mais alinhado ao Direito do Trabalho clássico e isso, sem nenhuma dúvida, tem repercutido na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. É apenas a minha impressão sobre o tema.
No âmbito do Supremo, a escolha é livre a partir de critérios de reputação ilibada e notório saber jurídico. O presidente da República escolhe livremente os ministros do Supremo, os quais passam depois pelo crivo do Senado Federal. E os governos Lula e Dilma escolheram quase todos os ministros do Supremo. Então, esse é um desafio: por que um governo de centro-esquerda indicou um Supremo que olha de uma forma tão diferente para o Direito do Trabalho, quando se compara com a visão do TST, por exemplo? Isso deve ser estudado. Acredito que os juristas ligados ao Direito do Trabalho são muito desprestigiados no momento das escolhas presidenciais. Só uma ex-ministra do TST é integrante do Supremo, que é a ministra Rosa Weber, de grande visão social, registre-se, além do ministro Marco Aurélio, que deixou o TST em 1990.
"Acredito que os juristas ligados ao Direito do Trabalho são muito desprestigiados no momento das escolhas presidenciais" |
Mas essa não é a questão mais importante, na minha compreensão. O eventual desprezo ao Direito do Trabalho tem a ver, até mesmo, com o preconceito mais antigo que começa nos bancos escolares das faculdades de Direito, que considera o Direito do Trabalho um direito menor. Há uma série de razões para isso; se diz que é um direito menor exatamente porque é um direito do empregado, então, no fundo, é um preconceito social que repercute para sempre, que vai se ampliando em diversos setores e órgãos do próprio Estado. Percebemos que os conceitos básicos do Direito do Trabalho, os princípios, fundamentos e normas, muitas vezes passam ao largo de um debate mais profundo. Uma análise mais cuidadosa demandaria investigação acadêmica. São compreensões jurídicas as quais respeito profundamente, mas com as quais não posso comungar.
IHU On-Line – Quais as implicações diretas dessa mudança para o trabalhador?
Grijalbo Coutinho - Os trabalhadores perdem um prazo que era largo para os contratos longos — estou me referindo aos contratos que têm mais de cinco anos de duração, porque os de até cinco anos não serão afetados. E isso faz uma diferença porque os créditos serão reduzidos sensivelmente e os trabalhadores não poderão reclamar de falta de depósito ou depósito irregular superior ao tempo de cinco anos e, ao mesmo tempo, isso também vai impactar na multa de 40% sobre o FGTS: quando o empregado é dispensado sem justa causa, no final do contrato, além do FGTS que está recolhido em conta própria, ele tem direito à multa de 40% sobre os depósitos, que dá um acréscimo, dependendo do tempo de contrato, significativo. Aliás, até poderão reclamar em relação a tempo superior aos cinco anos, mas os eventuais créditos de FGTS para além desse lapso temporal estarão alcançados pela prescrição quinquenal.
IHU On-Line – Qual foi a repercussão dessa mudança entre os sindicatos, centrais sindicais, e no Ministério do Trabalho? O senhor acompanhou se houve muita repercussão entre as instituições que representam os trabalhadores?
Grijalbo Coutinho – Li em páginas da internet algumas manifestações e preocupações. A decisão foi publicada no meio da campanha eleitoral para cargos diversos da República. Imagino que os sindicatos e outras organizações de trabalhadores estavam, de algum modo, envolvidos com a demanda eleitoral. Isso é natural, não é censurável de jeito nenhum, porque as pessoas têm que fazer opções políticas, escolher de forma altiva os seus representantes, e os sindicatos estão dentro desse contexto.
Sindicato apartidário não existe; os trabalhadores têm as suas preferências. Não sei quais foram as posições dos técnicos e dos ministros do Poder Executivo Federal. Não vi absolutamente nada, pelo menos, de forma pública não houve nenhuma manifestação das autoridades do Ministério do Trabalho e Emprego. Percebi manifestações entre juristas do Trabalho a partir de listas de debate que frequento: juízes, advogados, membros do Ministério Público do Trabalho ficaram preocupados, mas não houve manifestação.
Alguns colegas escreveram artigos sobre o assunto para ver como vão interpretar ou aplicar a decisão do Supremo. Mas acredito que no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho também tenha repercutido bastante. Esse papel de crítica mais contundente é do movimento sindical. Se os movimentos não o fizerem, os juízes irão manifestar nos autos suas impressões sobre a decisão do Supremo quando chegar um caso concreto para análise ou quando instados a se manifestar em debates públicos com a sociedade.
A leitura feita pelo Tribunal partiu da premissa de que a Constituição não estabelece qualquer distinção no tocante ao prazo prescricional a incidir sobre os créditos de natureza trabalhista, ou seja, aplica-se sempre o prazo de cinco anos. Essa interpretação pode ser discutida. A Constituição, no artigo 7º, diz que são direitos dos trabalhadores todos os ali previstos expressamente, além de outros que visem à melhoria da sua condição social.
O fato é que o texto constitucional não encerra o elenco de direitos concedidos aos empregados: todos aqueles que são mais benéficos, previstos em normas ordinárias legais e convencionais, devem ser respeitados pelos empregadores. Tal mandamento constitucional está em plena sintonia com o Direito do Trabalho clássico, que tem, entre outros princípios, o da norma mais benéfica e o da condição mais favorável, além do princípio da proibição do retrocesso social: tudo aquilo que foi incorporado ao patrimônio jurídico do trabalhador não pode ser dele retirado abruptamente, ainda mais sem qualquer contrapartida.
Existem várias normas internacionais no mesmo sentido do caput do artigo 7º da Constituição de 1988: direitos humanos fundamentais não podem ser retirados do mundo jurídico. Qualquer ato que possa reduzir os direitos sociais já conquistados e incorporados aos diplomas jurídicos nacionais e internacionais, em tal cenário, compromete a eficácia do próprio Direito do Trabalho. Essa é apenas uma vertente, mas há outras análises jurídicas as quais poderiam demonstrar que, por exemplo, a prescrição de que trata o artigo 7º não é um direito, pelo contrário, quando se trata de prescrição se fala em restrição do exercício de direito. Portanto, não se pode tratar essa restrição como se fosse um crédito trabalhista.
IHU On-Line – Durante a campanha eleitoral, a presidente Dilma disse que manteria os direitos trabalhistas no próximo mandato. Contudo, com o anúncio da nova equipe econômica e a partir das declarações da própria presidente, temem-se cortes sociais para o próximo ano e, inclusive, alguns economistas já falam que o governo prepara uma minirreforma da previdência para 2015. Concorda com esse tipo de análise? Em que consistiria essa minirreforma?
Grijalbo Coutinho – Durante a campanha, a presidente Dilma se comprometeu com os direitos sociais dos trabalhadores. Ela tem uma frase famosa, se contrapondo aos adversários no primeiro turno, dizendo que não retiraria nenhum direito dos trabalhadores “nem que a vaca tussa”. Esse foi um compromisso importante que a candidata assumiu, mas nós não somos ingênuos e sabemos que há um movimento intenso do capital para flexibilizar o direito do trabalho, para liberar de forma generalizada a terceirização, para diminuir os direitos previdenciários, e o governo está num momento político de dificuldades por várias razões, a exemplo do caso da Petrobras, que na atual circunstância o coloca, de certa forma, na defensiva. Por isso mesmo, o governo precisou inclusive indicar uma equipe econômica mais tradicional e ortodoxa do ponto de vista monetário, até para acalmar os ânimos do mercado.
Tem-se a impressão de que a presidenta reeleita não tem a intenção de flexibilizar os direitos do trabalho, mas sabemos que o sistema é muito maior do que a pessoa. Nesse início de governo, até estabilizar a economia ou passar a crise da Petrobras, ela vai ter que compor com setores mais conservadores da sociedade e é isso que parece fazer no atual momento. Se setores conservadores patronais vão conseguir seu intento trabalhista e previdenciário, não sabemos, até porque a Presidência da República tem o apoio do movimento sindical, da CUT e de outras centrais, que estão vigilantes e, imagino, reagirão contra quaisquer reformas capazes de tirar os direitos de seus representados.
Correlação de forças no segundo mandato
Essa correlação de forças é que vai determinar a ação política do segundo mandato da presidente. Se o governo dela se fortalecer e conseguir mostrar para a sociedade que não tem envolvimento com o caso da Petrobras, ela terá condições de rejeitar as tentativas empresariais. Mas se o governo estiver mais frágil, o palco vai estar aberto para a flexibilização no campo legislativo.
Quanto ao Supremo, ela terá oportunidade de indicar vários nomes: já tem uma vaga aberta, com outras três ou quatro ao longo do mandato. É a hora de a presidente olhar, no momento das indicações, para o direito social. Não precisa nomear, necessariamente, juristas do mundo do trabalho, embora seja interessante que também prestigie os juslaboralistas, mas escolha, sobretudo, pessoas com perfil identificado com a causa dos direitos humanos em sua integralidade, porque os direitos humanos não se resumem aos clássicos direitos liberais, os civis e políticos; os direitos econômicos, sociais e culturais também são direitos humanos.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Grijalbo Coutinho – Gostaria de dizer que a flexibilização ou precarização do Direito do Trabalho se dá quase de forma silenciosa, sem a crítica ou participação da sociedade brasileira, lamentavelmente. Temos mais de 50 milhões de trabalhadores regidos pela CLT, sem contar os informais. Ou seja, são mudanças trabalhistas as quais impactam a sociedade inteira. Não estamos tratando de uma questão menor. É o prazo da prescrição sensivelmente reduzido, é a redução de garantias dos trabalhadores com a nova lei de falências, é a terceirização que se encaminha para ser liberada de forma geral, sendo que tudo isso tem ficado muito restrito ao debate entre os operadores do mundo jurídico.
Está ocorrendo uma reforma trabalhista silenciosa sem a participação da sociedade, capaz de impactar mais de 50 milhões de trabalhadores e o Brasil inteiro, porque são 50 milhões de trabalhadores com suas famílias que podem estar perdendo seus direitos. Temos de avaliar por que isso acontece. A sociedade brasileira precisa dizer o que quer: se está de acordo com a flexibilização e precarização do direito do trabalho, que diga. Se não está, que também se manifeste, porque na prática, direitos trabalhistas, direitos humanos por excelência assim reconhecidos por normas nacionais e tratados internacionais, estão sendo reduzidos por atos diversos.
(Por Patricia Fachin)
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“A flexibilização do Direito do Trabalho se dá de forma silenciosa, sem a crítica da sociedade”. Entrevista especial com Grijalbo Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU