06 Julho 2020
Os entregadores no Brasil organizaram uma greve nacional para exigir mais segurança, comida durante a jornada, tarifas justas, cobertura em caso de acidentes e o fim do sistema de pontuações e bloqueios.
A reportagem é publicada por OpenDemocracy e reproduzida por CPAL Social, 01-07-2020.
A precarização do trabalho é um fenômeno global, característico da realidade pós-crise financeira de 2008-09, que minou os direitos trabalhistas e cimentou a hegemonia do neoliberalismo agressivo e o fundamentalismo do benefício máximo a um custo mínimo.
Mas o fenômeno teve efeitos desproporcionais no Sul Global, onde a precariedade histórica dos direitos trabalhistas e a desigualdade extrema e sistêmica encontraram na uberização (neologismo que define a insegurança no trabalho que a empresa americana Uber simboliza) a maneira de aprofundar ainda mais as brechas entre quem tem muito e quem tem muito pouco.
A precarização do trabalho na América Latina reflete uma série de deficiências do Estado, que vieram à tona com a emergência sanitária de Covid-19. Nesse cenário, os entregadores emergiram como um dos principais ‘serviços essenciais’ da sociedade em tempos de crise. No entanto, a importância central dessa atividade não trouxe maior valorização de seus trabalhadores, mas sim sua exploração.
Conhecida como ‘Economia Laranja’ ou ‘Economia Criativa’, a prática de transformar o trabalhador formal em um trabalhador pontual foi disfarçada sob um manto de empreendedorismo. Empresas tecnológicas, como a Rappi, tendem a ignorar os regulamentos estabelecidos para o pagamento de impostos e contribuições para a previdência social, e a não respeitar as relações de trabalho e outros custos arcados pelas empresas da economia tradicional. É assim que a Uber, a empresa de táxi particular, evita pagar o licenciamento de carro e as taxas de registro e seguro para seus ‘parceiros’, e que o Airbnb evita impostos sobre hotéis quando torna possível o aluguel de apartamentos através da internet.
Enquanto as empresas lucram bilhões de dólares, os ‘parceiros' trabalham sem contrato, enfrentam dias que excedem as oito horas legais, com remuneração abaixo do mínimo, sem acesso a seguro de saúde, remuneração, férias, entre muitos outros direitos básicos. As empresas driblaram suas obrigações e os trabalhadores – principalmente de setores menos favorecidos – foram submetidos a um sistema de exploração sistemática.
Em vista do desastre administrativo da crise de covid-19 por Jair Bolsonaro – que contribuiu para tornar o Brasil o segundo país com o maior número de mortes, com quase 60.000 –, o caso brasileiro talvez sirva como principal ilustração da situação nesse momento.
Durante a pandemia, o Brasil adotou o slogan: “O Brasil não parou. Está andando sobre duas rodas".
De acordo com uma pesquisa, em março, o número de downloads de aplicativos de entrega – como Rappi, iFood, UberEats, Loggi e James – cresceu 54%, e 33% dos entrevistados dizem que irão a restaurantes com menos frequência devido à pandemia, mesmo após o relaxamento. E 42% dos consumidores responderam que comprariam mais online, não apenas comida ou alimentos, mas também produtos em geral, indicando que as entregas em domicílio chegaram para ficar e espera-se que cresçam ainda mais no futuro.
O setor de entregas, que já sofria com a falta de assistência e direitos básicos, viu o cenário piorar em meio à crise. Considerado uma atividade essencial, o serviço viu sua demanda aumentar e sua remuneração cair, enquanto os riscos, principalmente de contrair a doença, continuam aumentando.
Segundo outra pesquisa, 60,3% dos entrevistados relataram uma queda na renda, em comparação com o período anterior à pandemia. Outros 27,6% disseram que a renda se manteve e apenas 10,3% disseram que estão ganhando mais durante a quarentena.
Diante da popularização do serviço e de sua evidente precariedade, os entregadores organizaram uma greve nacional para exigir dignidade no trabalho.
“Ninguém aqui é empreendedor de porra nenhuma. Nóis é força de trabalho nessa porra!” disse Paulo Lima, também conhecido como Galo, entregador e rapper fundador do grupo ‘Entregadores Antifascistas’.
Com a paralisação, os revendedores demandam mais segurança, comida durante a jornada, tarifas justas, cobertura em caso de acidentes, além do fim do sistema de pontuações e bloqueios, que exerce pressão excessiva sobre os trabalhadores.
Uma pesquisa realizada no Brasil em 2019 estabeleceu um perfil de entregadores ciclistas a partir de centenas de entrevistas: 99% são homens, 71% se declaram negros, mais de 50% têm entre 18 e 22 anos, 57 % trabalham todos os dias da semana e 75% permanecem conectados ao aplicativo por 12 horas seguidas e 30% trabalham ainda mais. E fazem isso por uma média mensal de R$ 992 (R$ 6 a menos que o salário mínimo, fixado em R$ 998 na época).
Já os motoboys, segundo uma pesquisa realizada em São Paulo, 32% dos entregadores em moto tinham menos de 30 anos e os outros 68% entre 30 e 60 anos. Quanto à jornada, 90% dos entrevistados trabalhavam mais de oito horas por dia. 50% mais de dez horas e 20% trabalhavam normalmente entre 13 e 16 horas por dia. Quanto à remuneração, 30% ganhavam entre R$ 500 e R$ 1.500 reais; 40% entre R$ 1.300 e R$ 2.000 reais; 20%, entre R$ 2.500 e R$ 3.000 reais. Apenas 10%, ganhavam mais de R$ 3.000.
Não é por acaso que, em todo o mundo, a Economia Laranja teve um boom após a crise financeira de 2008. Com as disparadas das taxas de desemprego, as empresas com base na tecnologia foram vistas como uma solução para os milhões de pessoas que perderam seus empregos como resultado da recessão.
Pouco a pouco, as economias se recuperaram e as pessoas voltaram a procurar empregos formais. As startups começaram a procurar ‘parceiros’ nas populações mais desfavorecidas, que sofreram as consequências mais graves dessa crise – como certamente também acontecerá nesta. Como resultado, a maioria dos entregadores na América Latina vem de bairros pobres, muitos na periferia, e precisam pedalar suas bicicletas e dirigir suas motos de regiões distantes para áreas centrais e privilegiadas, enfrentando o tráfego violento das metrópoles latino-americanas, risco de assalto, acidentes e longas horas de transporte, muitas vezes sem remuneração.
Por mais difíceis que sejam, essas oportunidades de trabalho são essenciais nas economias emergentes. Como disse o próprio Galo, a intenção não é proibir essas atividades ou fechar as empresas, mas regulamentá-las.
Mas a maneira como a indústria é arquitetada hoje acentua o processo de informalização do trabalho, ao projetar uma aparência de inovação, quando se apropria produtivamente de diferentes aspectos socioeconômicos, aproveitando as lacunas legais e a fraca regulamentação.
A chamada uberização do trabalho contribui para agravar o problema em uma das regiões mais afetadas pela informalidade. Na América Latina, onde 54% da força de trabalho, ou 158 milhões de trabalhadores, carecem de proteção legal de trabalho, os governos devem se posicionar para combater a precariedade e não, como costumam fazer, lavar suas mãos.
“A uberização do trabalho é global, não só dos entregadores. É impossível e nem devemos parar esse movimento, mas é preciso regrá-lo. Se querem crescimento, expansão, isso deve ser feito com responsabilidade”, disse Galo em uma live na última sexta-feira (26).
A expansão da demanda em tempos de pandemia é uma oportunidade de trabalho em um cenário difícil para muitos, mas as empresas, sob a supervisão de órgãos reguladores, devem assegurar que os trabalhadores tenham direitos que estão acima do objetivo de lucro máximo e custo mínimo para acionistas.
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A pandemia expôs a urgência de controlar a uberização na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU