27 Junho 2025
A Frente ampla foi necessária para frear o avanço conservador e fascista, mas não foi nada além disso. Hoje ela serve para impedir o governo Lula de adotar políticas progressistas, e o presidente contém a retórica que poderia dar um sentido mais amplo de luta política redistributiva em função da Frente Ampla.
O artigo é de Moysés Pinto Neto, doutor em filosofia pela PUC-RS e professor visitante do programa de pós-graduação em literatura da UFSC, publicado por A Terra é Redonda, 25-06-2025.
Não resta dúvida que Lula foi eleito em um esforço conjunto da sociedade civil, dos setores menos radicalizados à direita, da organização capilarizada do PT e da população mais pobre cada vez mais pauperizada diante do programa neoliberal imposto de modo inclemente por Michel Temer e Jair Bolsonaro. Chamou-se esse esforço coletivo de “Frente Ampla”.
Mesmo analistas conservadores “taparam o nariz” e admitiram que a sorte nos brindou com uma figura carismática e de forte popularidade como Lula para derrotar não só a popularidade digital e social de Jair Bolsonaro, mas também a própria máquina do Estado. Eles preferiam a “terceira via”, mas ficou claro que a escolha era entre democracia e autoritarismo – e só Lula mantinha a primeira viável.
O tempo mostrou que a prudência e o esforço eram mesmo necessários. Hoje conhecemos não apenas diversos projetos de golpe de Estado, como inclusive planos para o assassinato e prisão de importantes figuras jurídicas e políticas do país – como Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. O planejamento golpista mostra que, com a reeleição de Jair Bolsonaro, a tendência era o endurecimento do regime nos moldes da Hungria ou até coisa pior – como, aliás, os bolsonaristas nunca fizeram questão de esconder.
Contudo, olhar para o governo hoje sob a ótica da Frente Ampla é um erro, porque a Frente Ampla acabou.
Basta fazermos o seguinte teste: quando pensamos em Frente Ampla, quem vem à cabeça? Simone Tebet? Geraldo Alckmin? Quem mais? Poderíamos rebater: alguém imagina que Tebet ou Alckmin hoje teriam espaço fora da coligação do Governo Federal, como forças autônomas da direita moderada? Não parece nem um pouco plausível.
Quando montou seu governo, Lula pensou em algumas frentes: os cargos de confiança – como Fernando Haddad, Alexandre Padilha e Rui Costa –, os representantes da sociedade civil – como Marina Silva, Anielle Franco, Sonia Guajajara e Silvio Almeida –, a “Frente Ampla”, com Simone Tebet e Geraldo Alckmin, e os “inimigos na trincheira”, como José Múcio e Juscelino Filho.
Explicando melhor os últimos: Lula tentou incorporar as tensões sociais como tensões ministeriais, como fez nos seus primeiros mandatos, neutralizando a dissidência na forma de uma conciliação. Trazendo inimigos “não-hostis” para perto, como no caso de José Múcio Monteiro, ele buscava um reequilíbrio de forças, por exemplo com os militares.
Mas existe uma diferença substantiva no cenário. Antes, havia uma esperança social que precisava ser balanceada com as forças conservadoras, desacelerando mudanças. Agora, o programa radical vem do outro lado: uma aliança entre as forças reacionárias, com um plano drástico à mão baseado em privatizações e desregulamentação, e um apoio social baseado na influência das redes de direita vitaminadas pelas plataformas e seu ecossistema de apostas, coachs, investimentos e ideólogos de todos os matizes.
E a esquerda, desorganizada.
Os tucanos, enquanto principal força da direita, representavam uma força politicamente silenciosa que atuava de modo mais tecnocrático e negocial, enquanto o bolsonarismo e o Picaretão (chamado benignamente de “Centrão”) atuam de modo muito mais agressivo.
Essas coisas não têm data exata, mas eu calculo que o fim da Frente Ampla ocorreu em 2 de janeiro de 2024, quando houve a confluência de agentes envolvidos no programa da agenda da direita no Brasil – agronegócio, establishment midiático, grandes gestores do mercado financeiro e políticos envolvidos com lobbies diversos – entrando em um consenso pró-Tarcísio Freitas, encerrando a etapa bolsonarista do projeto.
Nisso, o bom funcionamento das instituições acabou levando a uma solução à direita: o fato de que o STF assumiu o encargo de responder à possibilidade de ruptura institucional de modo enérgico e não-eufemístico tirou Bolsonaro e os militares da frente, facilitando um discurso ganha-ganha com sua base. É possível sustentar que Jair Bolsonaro é vítima da arbitrariedade judicial e, ao mesmo tempo, deixar que o STF faça o trabalhar de o afastar do páreo.
Claro, o plano não é tão linear, porque política não é tão simples. Há forças correndo por fora. O bolsonarismo tem uma energia própria e a figura pessoal do líder é ainda poderosa, mesmo que não tanto como antes. As rupturas mostraram-se sempre perigosas, levando independentes ao ostracismo.
Além disso, o gancho popular impulsionado pela rejeição ao reconhecimento de direitos iguais para os grupos com cidadania limitada – chamado, eufemisticamente, de “guerra cultural” ou “agenda dos costumes” –, que se conecta sobretudo com o público religioso, sobretudo evangélico, segue em aberto, trazendo inclusive a ameaça de uma chapa com algum Bolsonaro como candidatura para 2026.
Mas – voltando ao ponto – por que a Frente Ampla acabou?
Basicamente, fora Simone Tebet e Geraldo Alckmin, não temos nenhum nome da Frente para dizer que colabora com Lula. Todos os demais, inclusive partidos que integram o governo, votam apenas com seu autointeresse. Os jornalões abandonaram qualquer posição governista há muito tempo, atuando em franca oposição. O agro continua tão radicalizado à direita quanto antes. Os “pensadores” da Faria Lima, que direcionam quantidades gigantes de dinheiro, viraram anarcocapitalistas. Os conglomerados milicianos-gampeiros-desmatadores-extrativos continuam a plenos pulmões – ou melhor, destruindo os nossos pulmões sem dó.
Para que funciona a retórica da Frente Ampla? Basicamente, para que a direita liberal atribua ao Governo todas as responsabilidades como “erros políticos”. A autocrítica, muito cobrada à esquerda e nunca feita à direita, serve como um mecanismo elegante de aversão à problematização, fugindo do debate sobre o fundo das questões a partir de panaceias como “articulação política” e “comunicação”.
Com isso, estou longe de afirmar que o Governo é perfeito, longe disso. Mas o que Lula parece estar finalmente começando a perceber – a partir da notícia de que suspeita que as disputas fiscais podem gerar resultados eleitorais a partir da polarização, e não da conciliação – é que a Frente Ampla é, cada vez mais, apenas um impeditivo para que governo efetive sua agenda política, ou que pelo menos tenha suas “marcas”, como muitos cobram.
Isso não significa que a agenda governista possa ser efetivada de pronto. Mas Lula está contendo a retórica populista que poderia dar um sentido mais amplo de luta política redistributiva em função da Frente Ampla.
Não quero dizer com isso que, nas circunstâncias atuais, não existam dificuldades crônicas de negociação e que o simples embate à esquerda seria suficiente para resolver nossos problemas. Mas é preciso que o governo perceba que se a Frente Ampla ainda existe, ela precisa existir para os dois lados. Se ninguém mais da “direita democrática” aceita compor junto, então é hora de deixar de se comportar como se isso fosse possível.
Note-se: isso pode significar uma negociação. Mas, agora, negociação com um antagonista, e não uma pretensa composição que vincula todo o tempo os planos do Governo a uma agenda minimalista e conservadora.
Nesse ponto, o governo, a partir de Fernando Haddad – que é detestado pela esquerda desenvolvimentista – vem propondo seguidamente medidas de “ajuste fiscal” com caráter redistributivo. Há, portanto, algo sendo proposto que não viola, em tese, o pacto das elites, pois assume o modelo ortodoxo como base, mas não é aceito por uma razão simples: porque atinge o “andar de cima”.
Em um contexto de quase fim de mandato, aparentemente as forças com dinheiro no país estão dispostas a fazer sangrar o governo até o fim, apostando que seja substituído por Tarcísio Freitas no próximo período. E os políticos acompanham.
Mas há uma polarização que pode render politicamente ao governo. Qual é? A de que “nós não queremos bagunçar a casa”, porém Congresso, mercado e mídia querem cortar por baixo. Nós queremos baixar o teto; eles, quebrar o piso.
Isso coloca de volta o governo na posição anti-establishment, desfazendo a surreal construção de que as forças mais alinhadas com os fatores de poder do país – os bolsonaristas – seriam “outsiders”.
É preciso insistir usando todas as armas possíveis de comunicação: quando políticos de direita, empresários do ovo e editoriais de jornais paulistas afirmam que o governo não deve aumentar impostos, mas cortar seus próprios gastos e investimentos, só quer dizer uma coisa: é preciso cortar benefícios sociais, é preciso cortar direitos previdenciários, é preciso empobrecer mais os de baixo a fim de fazer o mercado funcionar melhor para os de cima. Esses são os custos que eles querem cortar, privatizando saúde e educação, diminuindo os reajustes do salário-mínimo e os benefícios previdenciários – tudo a fim de baratear a mão-de-obra, que aos poucos vêm recuperando o fôlego da década passada.
A população hoje com certeza é menos receptiva a ideias à esquerda do que já foi antes. Mas será que, diante de uma ameaça concreta, ela vai continuar indiferente? Se a coisa for colocada nesses termos – piso contra teto – os poderes estratosféricos dos parlamentares e dos humores do mercado não podem ser questionados?
É preciso dizer: o problema deles não é responsabilidade fiscal, que não cansamos de tentar efetivar, o problema é a melhoria da qualidade de vida dos pobres, a valorização do trabalho, a garantia de direitos sociais em caráter público e gratuito.
Alguém diz: mas e a Frente Ampla? E os liberais moderados? E o Centrão?
Eu respondo: quem?