20 Março 2025
A relação do Brasil com o mercado financeiro é marcada por uma dependência crônica de taxas de juros elevadas, uma política que perpetua desigualdades e limita o desenvolvimento econômico. Essa dinâmica é comparada por especialistas a uma “Síndrome de Estocolmo”. O país parece fascinado pelo mesmo sistema que o sequestra.
A reportagem é de Marcelo Menna Barreto, publicada por ExtraClasse, 18-03-2025.
Mas para entender esta história, é preciso voltar algumas décadas. A novela dos juros altos no Brasil remonta à década de 1980. O país enfrentava uma hiperinflação galopante e, a fim de conter a escalada de preços, o governo federal adotou medidas de ajuste fiscal e monetário que incluíam a elevação das taxas de juros. A estratégia criou um ciclo vicioso: quanto mais altos os juros, maior o endividamento público; quanto maior o endividamento, mais o governo precisava aumentar os juros para atrair investidores estrangeiros.
Após a estabilização econômica proporcionada pelo Plano Real em 1994, os juros altos se impuseram como ferramenta definitiva da política monetária. O Banco Central passou a utilizar a taxa Selic como principal instrumento para controlar a inflação. No entanto, essa política teve um custo social elevado: o crédito caro limitou o acesso de empresas – em especial, pequenas e médias – ao financiamento, freou o consumo das famílias e ampliou a desigualdade.
Paulo Kliass, doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, é contundente: “O país está viciado em taxas de juros muito elevadas”.
Ele explica que a estratégia inicialmente justificada no Plano Real como necessária para controlar a inflação, consolidou-se como uma armadilha. “Você monta um sistema que fortalece a política monetária e subordina o restante ao medo de voltar à inflação elevada”, afirma. O resultado foi a atração de capital estrangeiro especulativo, criando um círculo vicioso: “Colocar dinheiro no Brasil a curto prazo se tornou a maior rentabilidade do planeta”, declara.
A crítica de Kliass vai além. Ele aponta a falta de medidas de regulação, como quarentenas para capitais externos. Elas, segundo o economista, poderiam reduzir a volatilidade e limitar o impacto da “ciranda financeira”. Para ele, a dependência dos juros altos consolidou o “financismo”, uma estrutura que, mesmo após três décadas, permanece difícil de superar.
“A armadilha foi criada por nós mesmos”, assegura. Kliass destaca que oportunidades de mudança, como o início do governo Lula em 2003, foram perdidas por falta de ousadia política.
Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, doutora em Direito Administrativo e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), concorda com a análise de Kliass. Ela relaciona a dependência do Brasil ao sistema financeiro à “Síndrome de Estocolmo”.
Para ela, a Emenda à Constituição 126, que, em 2022, abriu as portas para a possibilidade de revogação do teto de despesas primárias criado pelo governo Michel Temer com a PEC do Fim do Mundo (2016), representou uma oportunidade histórica e perdida para repensar a política macroeconômica. Afirma também que o governo Lula preferiu manter “um modelo desgastado, perdendo a chance de promover mudanças estruturais”.
“Era como se o governo atual estivesse numa Síndrome de Estocolmo, adotando a agenda anterior”, compara Élida. Ela critica a postura conservadora da gestão Lula por manter metas de inflação irreais e ceder às pressões do mercado financeiro.
“O teto de despesas primárias havia se provado incapaz de entregar o que havia prometido”, diz, destacando que o governo poderia ter adotado metas mais realistas e construído alternativas de médio prazo.
“A comparação com a Grécia de 2015 é inevitável”, sugere. Assim como o partido Syriza, que perdeu apoio popular ao não questionar as bases de sua inserção na crise do Euro, o governo brasileiro deixou escapar a chance de mobilização e mudança estrutural. “Agora está enredado com uma corda no próprio pescoço, numa questão de chantagem”, conclui.
Mas o que veio para substituir a Emenda 126 foi o Arcabouço Fiscal, defendido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tão austero quanto a PEC do Fim do Mundo.
Para Élida, ainda houve inconsequência da atual equipe econômica prometer para a sociedade um superávit primário em 2025.
“Bastou o governo tentar desacelerar o ajuste fiscal em 2024 para o mercado financeiro precificar riscos e gerar instabilidade”, lembra ela, destacando a dependência das decisões públicas em relação às expectativas do mercado.
As medidas, tanto o Teto de Gastos Públicos de Temer e o Arcabouço Fiscal de Lula/Haddad, acabaram reforçando a dependência do país ao mercado financeiro.
Ambos os mecanismos impuseram limites às despesas primárias (gastos com saúde, educação, segurança e infraestrutura), sem controlar diretamente os gastos com juros da dívida pública.
Isso gera uma série de efeitos que aumentam a influência do rentismo sobre a economia brasileira.
David Deccache, doutor em Economia, frisa que o sistema financeiro exerce influência significativa sobre as políticas fiscal e monetária do Brasil. Destaca a forte defesa da chamada austeridade fiscal, em especial nos gastos sociais e investimentos públicos.
A ideia nada mais é do que manter a economia desacelerada. Economistas liberais, exemplifica Deccache, chegam a apontar o quanto um país pode crescer.
“Eles têm uma taxa de desemprego que acham ideal, chamada de NAIRU (Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment), que é a taxa de desemprego que não acelera a inflação. A ideia é que, se o desemprego cai muito, os trabalhadores pedem aumento de salário, o que aumenta os custos para os patrões. Aí, os patrões repassam esses custos para os preços, gerando inflação”, explica.
Não são meras coincidências manchetes como a da agência de notícias Reuters no dia 10 de janeiro passado e da Bloomberg Línea em 30 de agosto de 2024. A agência britânica noticiava que as Bolsas de Nova Iorque tiveram forte queda após “dados de emprego acima do esperado nos EUA”. Já o braço do conglomerado norte-americano para a América Latina registrava a queda do Ibovespa com “a taxa histórica de desocupação no Brasil”.
Deccache questiona a necessidade do teto de gastos. Desde o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, passando pelos dois primeiros mandatos de Lula e os de Dilma Rousseff, “o Brasil sempre funcionou só com a meta de resultado primário”, baseado no tripé macroeconômico adotado no país em 1999: Metas de inflação, Câmbio flutuante e Responsabilidade fiscal.
Ele questiona a necessidade do teto de gastos, afirmando que “o Brasil sempre funcionou só com a meta de resultado primário”.
Sem o teto, Deccache garante que seria possível expandir gastos “em setores com alto impacto multiplicador”. Assim, a economia cresceria e geraria mais receita, permitindo alcançar superávit primário. “Foi o que Lula fez em seus primeiros mandatos”, recorda.
É aí que vem a grande crítica do economista ao governo. “Poderia ter enviado apenas uma meta de superávit primário ao Congresso, como sempre foi no Brasil”, lamenta, ao afirmar que entende que existe a correlação de forças no Congresso. “Mas o Lula nem tentou”, registra indignado.
A hipótese aventada por Deccache é que governo, neste ambiente de polarização, “tenta sinalizar para as classes dominantes que é confiável para manter a ordem, ao contrário da extrema-direita”.
Só que, na mesma linha de Élida, Deccache entende que o governo está colocado em uma camisa de força. “Hoje, a gente tem o tripé macroeconômico, mais o teto de gastos”, pontua.
Todos os especialistas ouvidos por Extra Classe são unânimes também sobre a meta de inflação do Brasil. A classificam de irreal e que dá desculpas para o Banco Central aumentar a Selic. Da mesma forma, as críticas são unânimes ao governo.
Se, de um lado, o BC se tornou independente no governo Bolsonaro, por outro, o governo tem maioria no Conselho Monetário Nacional (CMN) para definir um patamar mais condizente com a conjuntura e menos permissível.
“Poderiam ajustar a meta de inflação para 4,5%, o que forçaria uma redução na taxa de juros”, projeta Deccache.
Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli destaca o tamanho do impacto de cada 1% na taxa Selic. “É gerado um custo de R$ 55,2 bilhões ao ano em juros da dívida pública. Isso porque o aumento leva à emissão de novos títulos da dívida. Um ciclo vicioso de juros sobre juros, explica ela. “É um sistema que se retroalimenta e não para de crescer”, aponta.
Ela critica a justificativa de que o aumento da Selic ajuda a controlar a inflação, argumentando que o Brasil sofre, principalmente, com inflação de custos (preços administrados, combustíveis, energia) e não de demanda. “Subir juros não vai fazer o preço do diesel cair”, diz. Ela também condena os cortes sociais e a redução do reajuste do salário mínimo, no esforço da “chamada responsabilidade fiscal”, feita para banqueiro ver.