08 Janeiro 2025
O arcabouço representa uma derrota política, econômica e, sobretudo, ideológica para quem esperava, após sete anos e três governos de puro arrocho fiscal, finalmente a possibilidade de crescer e promover desenvolvimento real.
O artigo é de Gilberto Maringoni, jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), publicado em seu Facebook, 02-01-2025.
Neste janeiro de 2025, entramos no 15º ano de ininterrupto ajuste fiscal, iniciado a partir da posse do primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, em janeiro de 2011. Aquela gestão, como se sabe, tinha como métrica econômica o recuo do papel do Estado como condutor do desenvolvimento. A economista Denise Lobato Gentil sintetizou bem os parâmetros da época: “A política fiscal de contenção do gasto (sobretudo do investimento), o pacote de desonerações tributárias e as parcerias público-privadas foram elementos indicativos da nova orientação. O traço mais característico da política fiscal do governo Dilma, entretanto, foi, seguramente, a brusca desaceleração (e instabilidade) do investimento público.” O ajuste, a partir dessa data até os dias de hoje, teve nuances e impulsos variados, mas a diretriz era uma só: reduzir o gasto público.
Uma década e meia depois, o que temos? O ministro da Fazenda abre o ano de 2025 com um artigo na Folha de S. Paulo, exaltando o fato de que “em 2024, o Brasil fez o sexto maior ajuste fiscal do mundo, sendo o terceiro maior entre os países emergentes, segundo o FMI.” O que isso significa?
É possível que um governo, pressionado pela alta finança, seja obrigado, em determinado momento, a realizar um ajuste fiscal. É algo compreensível: trata-se de um recuo necessário para ganhar força e tempo e avançar em outras agendas. Mas transformar um problema em virtude vai além do recuo e adentra o perigoso terreno da capitulação política e – vou escrever um palavrão! – ideológica. Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na – desculpem! – correlação de forças da sociedade, em favor dos de cima. Implica cortes, contingenciamentos e reduções orçamentárias no funcionamento do Estado, em especial sobre quem mais precisa dele: os pobres. No fundo, é um processo de concentração de renda.
Vários governos da América Latina, à esquerda e à direita, adotam ajustes fiscais como se fossem medidas neutras ou “técnicas”, para possibilitar o bom andamento da economia. É um novo consenso. Os resultados, em geral, são negativos. Os anos de ajuste, no Brasil, representaram tempos de retração no crescimento, de reformas regressivas do ponto de vista social (trabalhista e previdenciária) e de perda de direitos sociais.
A expectativa gerada pela campanha de Lula, em 2022, foi que, depois dos desastres econômicos de Dilma II, Temer e Bolsonaro, teríamos finalmente a quebra do mantra do ajuste fiscal – ou pelo menos sua versão draconiana do “teto de gastos” – em favor de uma dinâmica de aumento do investimento público e de uma diretriz desenvolvimentista no governo. Isso tudo, apesar de Lula ter sido eleito sem programa claro, a não ser promessas soltas, como “cerveja e picanha para todos”, “revogação da reforma trabalhista”, “fim da PPI”, “reestatização da Eletrobrás” etc. Após a posse, a conversa mudou de rumo.
A partir daí, percebemos que o único programa disponível era aprovar um novo teto de gastos, como definiu o ministro Fernando Haddad em entrevista à Mônica Bergamo (FSP, 14/10/2024). Chamado de Novo Arcabouço Fiscal, o mecanismo se mostrou um teto com características mais barrocas, cujo centro é bloquear as despesas em 70% da receita corrente líquida e possibilitar uma expansão do PIB entre 0,6% e 2,5% ao ano. O motivo da definição de tais números – 70, 0,6, 2,5 – não é explicado por nenhuma ordem cabalística. Mas a intenção é clara: impedir o crescimento da atividade estatal e abrir lugar para negócios privados. Ou seja, sequer o surrado bordão neoliberal de só gastar o que se arrecada vale mais. Agora, só se gasta 70% do que se recolhe. E mais: com os gatilhos sancionados pelo presidente Lula no último dia do ano, haverá sanções se a regra for descumprida.
O que possibilitou maior dinamismo econômico nesses anos de governo Lula III, para além da PEC da Transição (cerca de R$ 160 bilhões a mais no orçamento) e dos precatórios (mais R$ 90 bilhões)? Por pressão do presidente Lula, os gastos constitucionais (Saúde e Educação) não foram cortados, e direitos como o BPC, a lei do salário mínimo (e suas vinculações previdenciárias) e o abono salarial vigoraram plenamente ao longo do ano que passou. Ou seja, houve crescimento porque o arcabouço não entrou em vigor em sua totalidade.
O gasto público se expandiu. A Carta de Conjuntura do IPEA, de dezembro, informa que “a despesa primária do governo central no acumulado até novembro registrou R$ 2.029,2 bilhões a preços desse mês, com aumento real de 4,6% em relação ao mesmo período de 2023.” A atividade econômica – PIB, renda e emprego – aumentou. A Faria Lima literalmente surtou, detonando um efeito manada no câmbio em dezembro. E o que faz o governo? Recuou ainda mais.
Fernando Haddad foi à TV apresentar um pacote de cortes, depois de mais de um mês de intensas reuniões com o presidente. A apresentação foi puro improviso marqueteiro, na qual foi anunciado um complemento fictício sobre isenção no IRPF até ganhos de R$ 5 mil mensais e taxação de rendas mais altas, certamente para tentar aplacar uma base social confundida por tantas idas e vindas. Ato contínuo, Lula gravou uma live dirigida ao “mercado”, na qual fez juras de amor à independência do Banco Central, diante do novo presidente, Gabriel Galípolo, numa versão hype da Carta aos Brasileiros, de 2002.
Às pressas, o Planalto enviou para o Congresso um pacote de cortes, votado em rito sumário – pressa não observada quando os temas são de interesse dos de baixo –, que logo deixou à mostra as intenções do Ministério da Fazenda. As tesouradas foram direcionadas aos direitos dos pobres e miseráveis. Pegou tão mal e abriu tamanho flanco diante da extrema-direita que o presidente Lula teve de recuar e vetar cortes mais profundos no BPC. O salário mínimo crescerá menos do que na regra anterior. Saímos da fórmula INPC + variação do PIB para INPC + 2,5% (mesmo que o PIB seja maior, como é o caso de 2024).
Neoliberais, dentro e fora do governo, valem-se da relação dívida/PIB como métrica de boa gestão fiscal. Trata-se de ficção neoliberal de quinta categoria. Qual o problema desse indicador chegar a 80%, como em breve teremos por aqui? Países centrais, em geral, têm dívidas ao redor ou acima de 100% do PIB, como Japão (214,27%), Estados Unidos (110,15%), Espanha (102,25%), Itália (140,57%) e França (92,15%). Já Estados pobres têm débitos abaixo de 40%, a exemplo de Azerbaijão (20,68%), Bangladesh (39,9%), Bulgária (31,5%), Botsuana (20,35%), Estônia (18,83%) e Haiti (25%). Os dados estão na página do FMI. Apesar dessas proporções constituírem uma mitologia mercadista, existe a possibilidade virtuosa de se reduzir a relação dívida/PIB através do aumento do denominador, com o crescimento da produção e do emprego.
O que importa é o custo da dívida, ou seja, a taxa básica de juros que os Bancos Centrais precisam fixar para que seus papéis se tornem atraentes para agentes financeiros e para regular a liquidez da economia. As taxas nos EUA e na zona do euro, em geral, não são altas quando comparadas às da periferia. Já o baixo endividamento pode indicar desinteresse de investidores e ausência de um mercado de capitais com alguma robustez. Apesar disso, esse é o indicador que baliza as ações da Fazenda.
Por fim, é preciso perguntar: por que precisamos dar continuidade a um infindável ajuste, se não há sequer sombra de crise fiscal no horizonte? Não estamos em perigo de default ou de qualquer tipo de suspensão de pagamento da dívida pública.
Talvez a maior vitória ideológica do neoliberalismo na gestão do Estado tenha sido a criminalização do gasto público e o convencimento de expressivos setores da esquerda a aderirem a essa cruzada. Corte, contingenciamento, bloqueio e outros sinônimos viraram virtude.
Temos uma equipe econômica que não se pauta pelo desenvolvimento e para a qual os bons resultados de expansão do PIB, emprego e renda de 2024 são problemas que podem superaquecer a economia e provocar – a partir da discutível teoria do PIB potencial – inflação. Essa também é a visão do capital financeiro e da grande mídia. É palavrório vazio.
O arcabouço representa uma derrota política, econômica e, sobretudo, ideológica para quem esperava, após sete anos e três governos de puro arrocho fiscal, finalmente a possibilidade de crescer e promover desenvolvimento real. O que temos contratado para 2025 pode ser mais um voo de galinha, a se concretizarem as duas novas altas de 1% na Selic prometidas na ata do BC, agora sob hegemonia de diretores indicados pelo lulismo. O arcabouço nos impõe uma lógica de Peter Pan, o menino que não queria crescer. Não precisamos desse pó de pirlimpimpim.
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O arcabouço e a lógica de Peter Pan: não podemos crescer. Artigo de Gilberto Maringoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU