“A manutenção do teto de gastos pelo projeto do 'arcabouço fiscal' vem no sentido contrário ao que a sociedade brasileira precisa”. Entrevista especial com Maria Lúcia Fattorelli

Auditora analisa como a IA pode seguir mantendo orientações que manipulam dados reais. Na entrevista, também analisa o novo arcabouço fiscal e a elevada taxa de juros no Brasil

Foto: Sruenkam | Canva

Por: João Vitor Santos | 17 Mai 2023

Ao longo do Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, Fronteiras Tecnológicas e Devires Humanos – com encontros on-line que iniciaram em 26-04 e seguem até 21-11 –, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o conceito de Inteligência Artificial – IA vem sendo tensionado. Afinal, de que inteligência que estamos falando?

Para Maria Lúcia Fattorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida, não podemos perder de vista que essa IA é concebida por pessoas, que podem seguir mascarando dados concretos. “O uso da inteligência artificial obedece aos comandos de seus programadores. Por isso, no caso da dívida pública, essa programação precisaria ser feita com o conhecimento da natureza dessa dívida e seus mecanismos, além da identificação dos detentores de títulos, para de fato conseguirmos avançar no controle desse que é o maior gasto público”, adverte.

Na entrevista, concedida por e-mail ao IHU, Fattorelli exemplifica essas distorções que acabam alimentando sistemas de IA. “Por exemplo, a tabela divulgada pelo Tesouro Nacional referente aos setores econômicos que detêm os títulos da dívida interna federal omite mais de R$ 2 trilhões de títulos públicos que estão em poder do Banco Central e que são usados pelo BC para pagar a Bolsa Banqueiro aos bancos, remunerando-os diariamente sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles, por meio do uso abusivo das ‘Operações Compromissadas’, e dos Depósitos Voluntários Remunerados”. Por isso, mesmo reconhecendo que a IA traz avanços para a realização de auditorias, defende que o fator analítico humano esteja sempre presente nestes contextos em que os números também podem ser construções tendenciosas.

Na mesma entrevista, Fattorelli analisa a proposta do novo arcabouço fiscal apresentado pelo atual governo, com destaque à forma como a dívida pública é tratada na matéria. Para ela, esse modelo, que privilegia o estéril gasto financeiro com juros exorbitantes, “tem provocado escassez crescente de recursos para atender à demanda social que vai ficando represada nas diversas áreas sociais, aumentando a desigualdade social e agravando todos os demais problemas sociais que temos assistido”.

Por fim, a auditora também examina a queda de braços entre Planalto e Banco Central, que tem como centro os altos juros no país. “Os juros praticados no Brasil são exorbitantes e sem justificativa científica que se sustente, e o governo está certo em defender a queda dos juros”, dispara.

Maria Lúcia Fattorelli (Foto: Auditoria Cidadã da Dívida)

Maria Lúcia Fattorelli é auditora-fiscal aposentada da Receita Federal e fundadora da organização Auditoria Cidadã da Dívida. Possui Especialização (MBA) em Administração Tributária pela FGV-EAESP, graduação em Ciências Contábeis pela Fundação Educacional Machado Sobrinho e graduação em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Entre as publicações mais recentes, destacamos “Auditoria da dívida pública: vamos fazer?" Brasil: realidade de abundância e cenário de escassez (Brasília: CNBB, 2018).

Confira a entrevista.

IHU – Como os usos de inteligência artificial e outras tecnologias pode contribuir para uma auditoria e um acompanhamento das contas públicas?

Maria Lúcia Fattorelli – Em uma conjuntura na qual a maior parte do orçamento federal tem sido destinada ao pagamento de juros e amortizações da chamada “dívida pública”, que até o Tribunal de Contas da União – TCU já confirmou que não tem servido para investimentos no país, é de fundamental importância realizar a auditoria integral dessa dívida, sendo imprescindível que ela seja feita com ampla participação da população que paga esta conta.

É inegável que o avanço tecnológico tem possibilitado acelerar uma série de processos relacionados ao tratamento de dados.

No caso das contas públicas, sistemas governamentais fazem uso de determinadas tecnologias que, por exemplo, totalizam diversos gastos relacionados a cada tipo de despesa orçamentária, tais como os gastos com saúde, educação, juros da dívida, amortizações etc. A Auditoria Cidadã da Dívida – ACD utiliza dados oficiais totalizados nos sistemas governamentais disponibilizados, embora no caso dos gastos com a dívida pública não haja transparência alguma acerca de quem recebe os vultosos juros e amortizações pagos anualmente, pois no Brasil esse dado tem sido tratado como sigiloso, o que configura mais um argumento que reforça a necessidade de auditoria e transparência.

É preciso ter cautela no uso de inteligência artificial para análise dos gastos públicos com a chamada dívida pública, tendo em vista a atuação de diversos mecanismos que inúmeras vezes seguem critérios ilegais, ilegítimos e até interesses políticos, como tem sido denunciado pela ACD, sendo, portanto, necessário conhecer esses mecanismos para não distorcer dados.

Juros escondidos

Por exemplo, grande parte dos juros da dívida pública é contabilizada pelo Tesouro Nacional como se fosse amortização (“refinanciamento” ou “rolagem”). Qual o resultado disso? Esconde-se o verdadeiro peso dos juros da dívida para as contas públicas. Para se ter uma ideia da distorção provocada por esse tipo de contabilização, os sistemas governamentais indicaram um gasto com juros da dívida em 2022 de R$ 247 bilhões. Porém, segundo estimativa simples e extremamente conservadora que aplica a taxa média anual dos juros da dívida divulgada pelo Tesouro Nacional sobre o estoque inicial da dívida interna federal no início do ano (desprezando-se todo o crescimento dessa dívida durante o ano e desconsiderando também o gasto com juros da dívida externa), tem-se um gasto com juros de R$ 780 bilhões.

Saiba mais detalhes desse tema no artigo preparado pela ACD. Mas, enfim, de imediato percebemos que é três vezes superior ao valor informado pelo governo. A inteligência artificial pegaria essa distorção?

Mera rolagem?

Além disso, o gasto com as amortizações fica superestimado por essa contabilização distorcida, pois a maior parte dos juros passa a ficar registrada indevidamente como se fosse mera “rolagem” (que em tese seria o pagamento do principal da dívida com recursos obtidos com a venda de novos títulos públicos). Dessa forma, essa questionável forma de contabilização mostra um gasto elevadíssimo com “amortizações” anualmente e, apesar disso, o estoque da dívida aumenta, o que não tem a menor lógica. Somente a ACD vem denunciando essa manobra, enquanto muitos embarcam nesse erro e ainda ficam repetindo o argumento enganoso de que “a dívida não seria um problema e o seu custo não seria expressivo, pois se trataria de simples rolagem”, quando na verdade estamos tendo um processo completamente insustentável.

As receitas obtidas com novas dívidas estão sendo consumidas no pagamento dos juros e amortizações da própria dívida, fazendo-a crescer como uma bola de neve e sem contrapartida alguma em investimentos de interesse da sociedade que paga essa conta de várias formas.

IA com conhecimento de causa

O uso da inteligência artificial obedece aos comandos de seus programadores. Por isso, no caso da dívida pública, essa programação precisaria ser feita com o conhecimento da natureza dessa dívida e seus mecanismos, além da identificação dos detentores de títulos, para de fato conseguirmos avançar no controle desse que é o maior gasto público.

Existem inúmeras distorções, por exemplo, a tabela divulgada pelo Tesouro Nacional referente aos setores econômicos que detêm os títulos da dívida interna federal omite mais de R$ 2 trilhões de títulos públicos que estão em poder do Banco Central – BC, e que são usados por este banco para pagar a Bolsa Banqueiro aos bancos, remunerando-os diariamente sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles, por meio do uso abusivo das “Operações Compromissadas” (que, no Brasil, já chegaram a 25% do PIB, patamar incomparável com a prática internacional que não passa de 3%), e dos Depósitos Voluntários Remunerados. Ao compilar os dados corretamente, verificamos que a maior parte dos títulos está em poder do mercado financeiro, conforme gráfico. E tudo sob sigilo!

Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida.

IHU – Como a alta tecnologia, incluindo a inteligência artificial, contribuiu para o funcionamento do mercado financeiro hoje? Em que medida o grande poder do mercado está atrelado à alta tecnologia?

Maria Lúcia Fattorelli – Desde a década de 1970 o capitalismo vem passando por uma modificação e entrou em sua fase de financeirização, processo que se acelerou a partir da década de 1990, acompanhado dos avanços tecnológicos e da desregulamentação do funcionamento do mercado financeiro. A cada ano esse processo se aprofunda, apesar das crises que afetaram os Estados Unidos da América a partir de 2008 e a Europa a partir de 2010, com reflexos para o mundo todo. A lição não foi aprendida e ultimamente temos assistido a uma nova onda de quebra de grandes bancos que, mais uma vez, contam com grande apoio dos orçamentos públicos para serem salvos.

Se, por um lado, a alta tecnologia facilita a vida de todas as pessoas que podem pagar suas contas e fazer todo tipo de operação financeira a partir de um celular, por outro lado, ela permite a realização de infinitas transações virtuais nocivas, de várias partes do mundo, em segundos, protegidas pelo sigilo bancário.

No Brasil, diante da completa falta de controle do fluxo de capitais, qualquer investidor de qualquer parte do mundo pode comprar títulos da dívida “interna” federal e receber os juros mais elevados do planeta que, por incrível que pareça, desde 2006 passaram a ficar isentos de Imposto de Renda. É preciso ressaltar que essa benesse injustificada não se deu apenas em decorrência dos avanços tecnológicos, mas devido à força do poder financeiro mundial que influencia o sistema político, muitas vezes financiado por este ou simplesmente submisso.

IHU – Recentemente, bancos ligados a big techs sofreram grandes baques. O que isso revela sobre o nosso tempo? Que alertas devem ser acesos a partir desses fatos quanto à relação estreita entre tecnologia e mercado?

Maria Lúcia Fattorelli – Eu não colocaria a culpa nas big techs, mas sim no relaxamento de regras de segurança para o funcionamento do sistema financeiro, permitindo elevada alavancagem (bancos emprestam várias vezes o mesmo dinheiro), o que aumenta o risco devido à falta de lastro, como evidenciado em diversas notícias.

Com alavancagem exacerbada, qualquer falha faz ruir a “pirâmide”. No caso recente, as grandes empresas de tecnologia tiveram um crescimento exponencial durante a pandemia, que restringiu os contatos familiares, relações de trabalho, compras, aulas, funcionamento de órgãos governamentais, parlamentos etc. ao campo virtual. Com o fim da pandemia e a volta das atividades presenciais, era de se esperar uma redução das atividades virtuais, com forte impacto às empresas de tecnologia.

O mercado financeiro está mal-acostumado, porque, em todas as crises que produz, acaba contando com o generoso apoio estatal que corre para salvá-lo, embora este seja o primeiro a pregar a necessidade de redução do Estado, dos serviços públicos prestados à população, contrarreformas, privatizações etc.

Essa hipocrisia precisa ser percebida pela sociedade porque um alerta que eu faria é o risco que de fato estamos correndo com a drástica redução da estrutura do Estado em todos os níveis (federal, estadual e municipal), principalmente por causa do modelo equivocado que estabelece “teto” rebaixado para os investimentos sociais e deixa livre, sem controle algum, os gastos financeiros com uma dívida pública sem contrapartida. E esse modelo (presente tanto na Emenda Constitucional n. 95/2016 como no projeto do novo arcabouço fiscal de Haddad) está bastante vinculado ao discurso de que o avanço tecnológico poderia vir a substituir servidores públicos...

Menos Estado para uns, mais para outros

O grande capital que prega essa ausência de Estado – para os outros setores – se locupleta de benesses estatais constantemente e não quer regulação, controle de capitais, tributação de seus ganhos, auditoria ou a mínima transparência; ao contrário, vivem sob o manto do sigilo bancário enquanto produzem as pirâmides financeiras com uso de tecnologias de informação.

No Brasil a situação é ainda mais grave que no resto do mundo, tendo em vista que aqui os bancos são salvos todos os dias, graças aos mecanismos operados pelo Banco Central, em especial a Bolsa Banqueiro (remuneração diária aos bancos por meio das operações compromissadas e depósitos voluntários remunerados); escandalosos contratos de swap (nos quais bancos e grandes empresas privilegiadas recebem a variação do dólar), e os juros mais elevados do mundo (definidos pelo Banco Central, sem justificativa técnica ou científica que se sustente, alegando “combate à inflação” que é causada, na verdade, por preços administrados pelo próprio governo e outros preços como alimentos que não caem quando os juros são elevados). Tudo sob sigilo! Em leilões virtuais, com uso de alta tecnologia, em ambiente no qual somente as grandes instituições financeiras e corporações têm acesso.

IHU – O que o novo arcabouço fiscal, apresentado por Fernando Haddad, revela sobre a relação entre governo e mercado nesse terceiro mandato do presidente Lula?

Maria Lúcia Fattorelli – A proposta de um “Novo Arcabouço Fiscal” (Projeto de Lei Complementar n. 93/2023) foi previamente articulada pelo ministro Haddad com líderes partidários, presidente do Banco Central e representantes do “mercado”, porém, sem debate algum com a base da sociedade.

A manutenção do teto de gastos pelo projeto do “arcabouço fiscal”, com um pífio acréscimo real que pode ser de apenas 0,6 a 2,5% em relação às despesas primárias do ano anterior, vem no sentido contrário ao que a sociedade brasileira precisa. Além de impedir que de fato possamos sair do fosso socioeconômico em que nos encontramos, a manutenção do teto de gastos acaba abrindo espaço para os que defendem a privatização de serviços essenciais, que estes estão ficando cada vez mais sucateados e, com a manutenção do teto, não terão como se recuperar. Nesse sentido, o “arcabouço fiscal” aponta para a redução cada vez mais profunda da estrutura do Estado brasileiro, o que é extremamente prejudicial a toda a sociedade.

Outro fator prejudicial à sociedade é o fato de que o teto coloca as áreas sociais em disputa entre si. É importante lembrar que o teto incide somente sobre os gastos e investimentos do governo com as despesas primárias, que correspondem às despesas com os serviços prestados à população (saúde, educação, previdência, assistência social etc.) e com a manutenção da estrutura do Estado. Tal como o teto de gatos da EC n. 95, o novo teto do PLP n. 93/2023 também coloca as áreas sociais para disputar recursos, porque a totalidade desses gastos terá que caber dentro do teto estabelecido. Por exemplo, para conceder reajuste maior ao salário-mínimo, que todos nós apoiamos e reconhecemos ser necessário, outra área social terá que receber menos, para que o conjunto de gastos caiba dentro do teto. Coloca em risco até os pisos constitucionais da saúde e educação, conforme já noticiado.

Por outro lado, o “arcabouço fiscal” deixa livre, sem teto ou controle algum os gastos financeiros que precisariam ser controlados, correspondentes aos juros e amortizações da chamada dívida pública, onde de fato se encontra o ralo das contas públicas, como a Auditoria Cidadã da Dívida tem denunciado há anos.

Acesse as conferências do Ciclo de debates promovido pelo IHU acerca da nova proposta de arcabouço fiscal:

 

 

 

IHU – Acredita que a geração de superávit primário, projetada por Haddad, é factível? Por quê?

Maria Lúcia Fattorelli – Sim, e o mercado financeiro sabe disso, por isso tem ficado tão contente desde o anúncio do conteúdo desse “arcabouço”. O resultado primário prometido por Haddad superou as expectativas do mercado financeiro, como demonstraram durante a apresentação do projeto.

Além do PLP n. 93/2023 limitar o crescimento real dos gastos e investimentos sociais à pífia margem de 0,6% a 2,5% ao ano, tal projeto estabeleceu outro teto de até 70% do crescimento da receita tributária e impediu o pagamento de despesas primárias com qualquer outra receita pública que não a tributária. A tendência é de geração de “superávit primário”, e que cada vez mais recursos do orçamento sejam desviados para o pagamento da dívida pública. O privilégio da dívida está garantido nesse projeto.

O governo possui um volume estratosférico de recursos no caixa único do Tesouro Nacional, atualmente R$ 1,7 TRILHÃO, reservados para o rentismo da chamada dívida pública. Adicionalmente, os recursos obtidos com novos empréstimos têm sido integralmente consumidos nos gastos com a própria dívida.

IHU – Em que medida o novo arcabouço muda a realidade em relação ao financiamento de áreas sociais?

Maria Lúcia Fattorelli – O novoarcabouço” traz uma tênue mudança em relação ao atual teto de gastos criado em 2016 pela Emenda Constitucional n. 95. Naquela EC n. 95, em cada ano, o teto das despesas primárias era limitado ao valor gasto no anterior, corrigido pelo IPCA. O teto do arcabouço de Haddad, em cada ano, é limitado ao valor gasto no anterior, corrigido pelo IPCA, acrescido de um crescimento real que poderá variar apenas entre de 0,6% a 2,5% em relação às despesas primárias do ano anterior. Isso mantém o teto em nível rebaixado e é totalmente insuficiente para um país com tantas demandas sociais urgentes, apesar dos imensos recursos disponíveis.

Desta forma, áreas sociais distintas (saúde, educação, previdência etc.) ficam dentro de um mesmo teto e continuam disputando recursos entre si, enquanto o grande volume de recursos passa ao largo disso tudo, indo diretamente aos bancos e grandes rentistas beneficiários do “Sistema da Dívida” sem nenhuma restrição ou teto.

IHU – Como a dívida pública é tratada nessa nova proposta de arcabouço fiscal? Qual sua avaliação sobre o espaço e o tratamento da dívida pública nessa nova proposta?

Maria Lúcia Fattorelli – A dívida pública é tratada com todo privilégio, sem teto ou controle algum, e receberá:

Esse modelo que privilegia o estéril gasto financeiro com juros exorbitantes tem provocado escassez crescente de recursos para atender à demanda social que vai ficando represada nas diversas áreas sociais, aumentando a desigualdade social e agravando todos os demais problemas sociais que temos assistido (fome, desemprego, deficiências na educação, saúde, assistência, previdência, atraso tecnológico etc.), ao mesmo tempo que torna os bancos atuantes no Brasil os mais lucrativos do mundo.

IHU – Outro grande debate que tem sido travado é sobre a taxa de juros. Como avalia os argumentos do governo que defende a queda da taxa?

Maria Lúcia Fattorelli – Os juros praticados no Brasil são exorbitantes e sem justificativa científica que se sustente, e o governo está certo em defender a queda dos juros. O vencedor do prêmio Nobel de Economia, professor Joseph Stiglitz, tem afirmado que os bancos centrais do mundo erram ao combater a inflação atual com elevação de juros. Para ele, a elevação atual dos juros piora a situação, por ser uma medida de política monetária que visa aumentar o custo e restringir a oferta de crédito, esfriando a economia sob o argumento de que isso iria supostamente reduzir a inflação.

Ele chegou a firmar que a taxa de juros praticada no Brasil seria uma pena de morte! E olha que Stiglitz não sabe do funcionamento da Bolsa Banqueiro, que rende juros diários aos bancos sem esforço algum. Essa remuneração diária do dinheiro da sociedade que se encontra depositado ou aplicado nos bancos é uma das principais práticas responsáveis pelos altos juros de mercado aplicados no Brasil. É evidente que se os bancos podem depositar esse dinheiro da sociedade no Banco Central e ganhar a remuneração com base na Selic (ou até mais), por que razão irão emprestar à sociedade a juros baixos? Esse mecanismo gera dívida pública e trava toda a economia, além de representar um rombo aos cofres públicos. O volume de juros pagos pelo Banco Central aos bancos em 2022 atingiu R$ 181 bilhões.

A taxa básica de juros (Selic) também influencia o comportamento dos juros de mercado. A Selic é arbitrada pelo Banco Central e foi elevada ao absurdo patamar de 13,75% ao ano desde agosto 2022 e permanece aí até hoje, provocando estragos a toda a economia, aprofundando a recessão econômica, além de provocar a explosão da dívida pública, tendo em vista que a cada 1% de aumento da Selic temos um aumento de R$ 40,1 bilhões no gasto anual com os juros da dívida pública, segundo dados do próprio Banco Central. Para pagar esses juros são emitidos mais títulos públicos. Com essa alta injustificada da Selic para quase 14% a.a., o gasto com juros teve um aumento anual de quase meio trilhão de reais.

Só nesses dois parágrafos acima já indiquei rombos de quase R$ 700 bilhões, provocados pelo Banco Central, que estão fora do alcance do PLP n. 93/2023. Todos os demais gastos com a dívida e prejuízos do Banco Central também estão fora do teto estabelecido pelo “arcabouço fiscal”. Justamente para que ninguém debata onde de fato está o rombo das contas públicas, vem essa chantagem de que para reduzir os juros teria que aprovar o tal “arcabouço”.

Controle inflacionário

É bom lembrar que a desculpa reiterada usada pelo Banco Central desde março de 2021 para elevar a Selic (que estava em 2% ao ano) a esse patamar de 13,75% a.a. foi a necessidade de “controlar inflação”, o que não tem base científica alguma, tendo em vista que a inflação no Brasil tem sido provocada pelos constantes aumentos dos preços que não se reduzem quando os juros sobem, como é o caso do aumento dos preços de alimentos (em decorrência de erros de política agrícola e agrária que priorizam o agronegócio de exportação) e dos preços administrados pelo próprio governo (principalmente combustíveis, devido à aplicação do preço de paridade de importação pela Petrobras, como se não produzíssemos uma gota de combustível no país).

Portanto, fica claro que a elevação da Selic não teve nada a ver com o controle inflacionário, já que subir juros não serve para controlar o tipo de inflação que existe no Brasil. O próprio presidente do Banco Central declarou sua intenção deliberada de subir juros para provocar recessão: “Você tem que colocar o país em recessão para recuperar credibilidade”. Ele conseguiu o que queria: colocou o país em recessão, explodiu a dívida pública, e agora usa essa situação para forçar a aprovação desse inaceitável PLP n. 93/2023, entre outras coisas.

IHU – Como compreender os jogos políticas por trás dessa queda de braço entre governo e o Banco Central? Quais devem ser as consequências dessas disputas? Quem realmente sai perdendo com isso?

Maria Lúcia Fattorelli – A Lei Complementar n. 179, aprovada em 2021 pelo Congresso Nacional, em plena pandemia, em votações virtuais e sem nenhum debate com a sociedade, deu a chamada “Autonomia do Banco Central”, dificultou sobremaneira a possibilidade de que seus diretores e presidente sejam demitidos pelo presidente da República, que foi eleito pelo povo. A Auditoria Cidadã da Dívida alertou para esse estrago com artigos, ferramenta de envio de cartas a parlamentares e até interpelação extrajudicial, mas o inconstitucional PLP n. 19/2019 foi aprovado e referendado, absurdamente, pelo STF na ADI 6696.

Passamos a ter no comando da moeda, do câmbio, das reservas internacionais e de toda a política monetária do país uma pessoa que nem sequer foi eleita pela população e que, logo após ganhar autonomia (blindagem), começou a subir a taxa de juros básicaSelic”, de 2% para 13,75% ao ano, favorecendo bancos e grandes rentistas e amarrando o funcionamento de toda a economia.

O problema é que a “queda de braço” tem ficado restrita ao discurso. Na prática, por que o governo não apoia o PLP n. 104/2022 que estabelece um limite para os juros em lei? Porque o ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet que formam maioria no Conselho Monetário Nacional não pedem a sua exoneração, como prevê a Lei Complementar n. 179/2021 (artigo 5º, IV, § 1º)?

IHU – A queda na taxa de juros é uma das pautas econômicas do governo que o grande empresariado nacional tem comprado. Como podemos compreender essa relação?

Maria Lúcia Fattorelli – Todos os setores da economia real sofrem com as elevadíssimas taxas de juros praticadas no Brasil. Uma parcela do grande empresariado nacional já se transformou em rentista e desistiu de sua indústria ou negócio e passou a viver de juros. Mas a parcela do empresariado que ainda investe na economia real tem razão de reclamar dos juros altos que impedem os investimentos necessários ao avanço de seus negócios, aquisição de novas tecnologias, maquinário, ampliação etc., e impedem o escoamento da produção, pois a população não tem como financiar compras com juros tão altos. Recentemente, o próprio presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp, Josué Gomes, chamou os juros altos de “pornográficos”.

Quando a economia para, o governo arrecada menos, então os interesses do grande empresariado e do governo se encontram. Juros altos representam também um grande rombo aos cofres públicos, como comentei anteriormente: a cada 1% de aumento da Selic, há uma aumento anual de R$ 40,1 bilhões em juros da dívida pública.

IHU – Para além desse debate econômico sobre a taxa de juros, que outras ações devem ser tomadas para destravar a economia nacional e, especialmente, aliviar uma massa de famílias endividadas?

Maria Lúcia Fattorelli – O mais importante é limitar os juros no Brasil e, para isso, é necessário aprovar uma lei que limite a ganância desenfreada do mercado financeiro que comanda o Banco Central, além de impedir a prática da Bolsa Banqueiro, pois esta impede que os juros de mercado caiam, como já mencionei anteriormente.

O PLP n. 104/2022 tem origem em proposta legislativa apresentada pela Auditoria Cidadã da Dívida ao Congresso Nacional e visa instalar, no Brasil, uma economia equilibrada, que gere mais renda e empregos para a população como um todo, e que possibilite o nosso desenvolvimento, atendendo aos objetivos fundamentais da República, tal como previsto no artigo 3º da Constituição Federal.

Para atingir esse objetivo, o projeto de lei complementar fixa limite equivalente ao dobro da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), estabelecida pelo Banco Central do Brasil, observado o limite máximo de 12% ao ano, já incluídas quaisquer comissões e outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito. O limite proposto pela Auditoria Cidadã da Dívida é perfeitamente aplicável no Brasil, que precisa urgentemente passar a praticar juros civilizados, deixar de ser paraíso de rentistas e recordista de lucratividade de bancos, enquanto toda a economia fica paralisada e o povo empobrece e até passa fome.

IHU – Nesse terceiro mandato do presidente Lula, a senhora acredita que haverá efetivamente uma auditoria, ou até uma revisão, na dívida pública?

Maria Lúcia Fattorelli – Seria bom para o governo que ele tomasse essa iniciativa, pois essa dívida pública, sem contrapartida em investimentos, serviu de justificativa para o nocivo “arcabouço fiscal”, como constou expressamente da exposição de motivos:

 

Essa dívida tem absorvido a maior fatia do orçamento federal anualmente e tem sido também a justificativa para contínuas privatizações de patrimônio público estratégico e lucrativo, além de contrarreformas que retiram direitos da população. Se não enfrentar esse Sistema da Dívida, não há espaço para um desenvolvimento socioeconômico efetivo, que possa inclusive usar dívida pública para investimentos sociais massivos, o que na estrutura do novo arcabouço fiscal está vetado.

Sabemos que o governo só tomará essa iniciativa se houver ampla mobilização popular em torno do tema, como ocorreu no Equador a partir de 2007, quando o presidente da República assinou um decreto e determinou a realização da auditoria integral com participação da sociedade civil nacional e internacional, obtendo resultados impressionantes.

IHU – De modo geral, como avalia os movimentos do atual governo nas áreas econômica e social?

Maria Lúcia Fattorelli – Muitas coisas importantes já foram feitas nesses poucos meses de governo, mas na área da economia, além da temerária atuação do Banco Central, a apresentação do atrasado PLP n. 93/2023 foi lamentável e indicou a opção de privilegiar o Sistema da Dívida, quando o ideal seria enfrentá-lo. E a ferramenta talhada para esse enfrentamento é a auditoria, como explicamos na Cartilha que estamos lançando.

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