Grupo compõe a mesa no primeiro encontro do ciclo de debates promovido pelo IHU, que discute a proposta de controle fiscal gestada por Fernando Haddad e sua equipe na Fazenda
A metáfora de uma camisa de forças é bastante ilustrativa: quando estamos amarrado por ela, qualquer centímetro em que conseguimos mover os braços parecerá ser metros. E foi justamente esta metáfora usada pelos professores Leda Paulani e José Carlos de Assis para defender a proposta fiscal do governo Lula, o chamado arcabouço fiscal. “Tudo foi feito, essa engenhoca bem pensada, com toda a inteligência e o brilhantismo das pessoas que estão lá com o Fernando Haddad e dele próprio, dentro de uma camisa de força que a gente não precisaria estar vestindo. Chegamos nessa camisa de força dos interesses da riqueza financeira que são predominantes no Brasil há mais de três décadas e da grande mídia corporativa, que sempre foi a parceira primeira dessa gente”, avalia Leda. “Tinha de ser esse plano, não podia ser melhor, porque se ele fosse um pouco melhor o Congresso não aprovaria”, completa Assis.
Os dois professores, juntamente com o jornalista Luis Nassif, participaram da mesa de debates promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que analisou a nova proposta de arcabouço fiscal tendo sempre em perspectiva a conjuntura nacional. A segunda mesa de debates foi realizada ontem, com mediação de Assis e participação de Daniel Negreiros Conceição, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e Glaucia Campregher, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (assista o vídeo aqui). O próximos encontros serão no dia 2 de maio, com Assis e José Luiz Pagnussat (ENAP/UDF) e Marcio Pochmann (Unicamp), e no dia 9 de maio, que serão recebidos por Assis Sergio Vale (USP) e Paulo Klias (Ministério do Planejamento).
Nassif é bem mais crítico ao projeto. Para ele, é fruto de Lula que surge como um conciliador e como um estadista, aquele que, na sua visão, é capaz de fazer uma efetiva transformação. “O arcabouço fiscal trouxe inúmeras dúvidas. Por exemplo, não se mexe na questão em que se tem a maior parte do custo financeiro brasileiro: os juros da dívida pública. Além disso, você tem um presidente do Banco Central [Roberto Campos Neto] que é um profundo burocrata”, diz. Mas se há um ponto em comum entre os três é justamente este: a independência do Banco Central sob a presidência de Campos Neto é uma trava para o desenvolvimento e o ajuste das contas públicas.
A camisa de forças que Leda coloca foi amarrada justamente por essa autonomia do Banco Central. Só que ela vinha sendo costurada há bem mais tempo pelo que ela e Assis consideram o poder do capital personificado na elite, a classe dominante brasileira. “Em suma, eles sempre tiveram o queijo na mão, a faca estava um pouco dividida e agora está inteiramente com eles também”, resume Leda.
Nassif é ainda mais enfático: “nós estamos na nas mãos de um burocrata, é o chamado homem comum que se encanta com o poder e, na outra ponta, temos as reclamações do Lula, sem nenhuma estratégia para tentar reverter esse cenário”. Para Assis, vivemos “em função do domínio de uma tecnocracia, completamente vendida aos interesses internacionais e vendida ao mercado financeiro. Continuamos seguindo os chamados conselhos do Fundo Monetário Internacional”.
Abaixo, reproduzimos trechos do debate divididos em quatro eixos: “Avaliação do arcabouço fiscal apresentado pela equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad”; “Governos Lula do passado e o governo Lula 3”; “Roberto Campos Neto e camisa de forças do Banco Central”; e “Destravando o desenvolvimento e o futuro do Brasil”.
Saiba mais sobre os debatedores:
Leda Paulani (Foto: Jornal da USP)
Leda Paulani é graduada em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA-USP e em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes – ECA-USP. É doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo – IPE/USP, livre-docente do Departamento de Economia e professora do Departamento de Economia e da Pós-graduação da FEA/USP. De 2004 a 2008, presidiu a Sociedade Brasileira de Economia Política – SEP. De janeiro de 2001 a abril de 2003, chefiou o gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, e de janeiro de 2013 a março de 2015 foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo.
Luis Nassif (Foto: reprodução Jornal GGN)
Luis Nassif é jornalista, foi colunista e membro do conselho editorial da Folha de S.Paulo, escrevendo por muitos anos sobre economia neste jornal. Nas composições que faz dos possíveis cenários econômicos, não deixa de analisar áreas correlatas que também são relevantes na economia, como o sistema de Ciência & Tecnologia. Em abril de 2013, lançou o piloto do Jornal GGN (Grupo Gente Nova), projeto jornalístico que visa aprofundar temas relevantes pouco abordados pela mídia convencional, como gestão, inovação, direitos sociais, justiça de transição etc., além de comentar notícias do dia. É diretor do Jornal GGN, projeto que se concretizou como conhecido portal de notícias.
José Carlos de Assis (Foto: Arquivo pessoal)
José Carlos de Assis é doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e ex-professor de Economia Política e Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Lançou recentemente o livro A economia brasileira como ela é (2022), que está disponível para acesso na Estante Virtual da Amazon. Assis também é autor de A razão de Deus (2012), A chave do tesouro (1985) e Os mandarins da República (1984), entre outros.
Luis Nassif – O arcabouço fiscal trouxe inúmeras dúvidas. Por exemplo, não se mexe na questão em que se tem a maior parte do custo financeiro brasileiro: os juros da dívida pública. Além disso, você tem um presidente do Banco Central [Roberto Campos Neto] que é um profundo burocrata. O ministro Fernando Haddad fez desse arcabouço fiscal uma estratégia para vencer a de Roberto Campos Neto, mas que vai colocar em risco o governo Lula.
Qual é a estratégia? Ele dá o que o mercado quer, uma âncora fiscal. É melhor que a lei do teto de gastos, que nasceu morta por incapacidade de atender à realidade, e que, agora, dá o que o mercado quer, dentro do que o mercado quer e, com isso, ele até tira o principal argumento de Roberto Campos Neto para manter a Taxa Selic nesse nível alto. Só que fica refém do discurso de Campos Neto.
Haddad vai vencer o Roberto Campos Neto? Não tenha dúvidas que sim. Mas vai adiar por dois anos qualquer chance de recuperação da economia. Por mais que você tenha um conjunto de possibilidades muito grande de parcerias com a China, mudanças das cadeias produtivas globais, com mudanças na questão da transição energética e tudo mais, não tem quem aguente uma taxa de juros básica de 13,75%.
Olhem bem, o arcabouço, a maneira como foi apresentado, era pior do que PowerPoint lá do Deltan Dallagnol. Eram 11 páginas em que só em uma havia um gráfico explicando a lógica. Depois, uma ou duas páginas de projeções da dívida pública, mas sem nenhuma indicação de projeções do PIB. Quando falamos de receita fiscal, o PIB é essencial. A receita é a razão do PIB. Não vi nenhuma informação.
Ficamos sem saber como é que ficam os investimentos. Eles estabelecem um piso insuficiente. Como que ficam os gastos públicos em caso de crescimento da receita? O Estado diminui porque a receita cresce mais e os gastos não podem crescer mais do que um determinado percentual da receita. Se a economia cai, aquela âncora que eles colocam, em que vai ser anticíclica? Não vai ser nada, porque vai permitir que as despesas caiam tanto, mas não a ponto de ser uma arma anticíclica. Assim, ficamos numa dúvida aí monumental sobre o que se pretende.
E além desse monte de problemas sérios, se está sem base política na Câmara. Enquanto isso, o Lula evita criar marola no mercado com esse plano. No fim, se repete, com todas as diferenças entre um grande pensador, um grande ministro da Educação que foi o Haddad, o Antonio Palocci. É a mesma coisa.
O Lula 1, quando assume, tinha uma disparada no câmbio por conta de erros do Armínio Fraga. A conta já estava paga. Se ele mantivesse o câmbio naquele patamar, não haveria inflação, que é a variação de preços. Não é um novo patamar de preço. Teria entrado uma safra agrícola, teria uma baita competitividade para as exportações de manufaturados brasileiros. Mas o que se faz? Votamos apreciar o câmbio. Câmbio, câmbio, câmbio, câmbio, câmbio até chegar em 2008. Se não fosse a crise Internacional, o Brasil teria entrado com problemas nas suas contas externas.
***
José Carlos de Assis – Concordo com Nassif, mas o plano é um plano moderado no limite do possível. Eu sou principalmente um economista político, não sou um economista de mercado, por isso digo que é preciso ver as condições políticas do país para avançar. Tinha de ser esse plano, não podia ser melhor, porque se ele fosse um pouco melhor o Congresso não aprovaria.
Outra coisa: essas projeções que fazem, eu não levo a sério. Quando você projeta em grandes números, PIB, demanda, oferta, essa coisa toda, é bonito na área aritmética – não é nem na matemática, mas na aritmética –, só que não tem nenhuma credibilidade porque são números depois da curva decimal. Depois da curva decimal, falar em PIB de trilhões e dizer que isso vai variar em 0,1% ou 0,2% não tem nenhum sentido. Isso não vai acontecer, se acontecer, será por acaso.
Então, o problema todo é de credibilidade. Você está colocando para o mercado alguns objetivos, de acordo com os interesses do mercado. No fundo, o plano é esse. Poderia ser diferente? Como disse, muito provavelmente não, porque nós temos um Congresso nessas condições que vemos. E, ainda, não é só o fato de o Congresso atual ser muito ruim. É que os congressos anteriores, sobretudo na época de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, colocaram travas no desenvolvimento brasileiro para funcionarem lá na frente. A economia brasileira está travada porque criaram esse negócio de teto de gastos, criaram o superávit primário.
Aliás, aceitar essa ideia de superávit primário é um absurdo porque dizem que é para combater a inflação. Só que inflação não é um problema orçamentário, que se combate com restrições no orçamento. A inflação é um problema de mercado. É uma relação entre oferta e demanda no mercado. Se você tiver mais demanda do que oferta, você tem inflação. Se você tiver mais oferta do que demanda, você tem deflação. É claro que se fizer um déficit público alto demais, e a economia ficar descontrolada, você explode o câmbio, a economia se desorganiza, aí se pode ter inflação. Isso é possível, mas numa desorganização completa do sistema econômico. Em termos normais, nunca vai acontecer, porque se a oferta estiver mais ou menos equilibrada com a demanda, não tem problema nenhum.
A questão central, quando se fala em plano econômico, é planejar a médio e longo prazo. É isso que não aparece direito. Esse arcabouço tem uma projeção de metas de longo prazo de forma aritmética, ou matemática, mas não têm uma formulação econômica por debaixo disso. Quer dizer que o que nós estamos fazendo não é para valer.
Falam em tecnologia, em infraestrutura, fazem investimentos, mas não falam em quais setores. Qual é o desdobramento disso especificamente? Então, não se sabe qual é o efeito que isso vai ter na demanda, por exemplo. Se você faz o investimento em infraestrutura de longo prazo, terá efeito de curto prazo. É, por exemplo, construir ferrovia, que é uma coisa que a gente precisa. O efeito deste investimento, em termos de criação de ativos para a economia, é de longo prazo, mas ele cria demanda a curto prazo porque é preciso pagar trabalhadores. Esses trabalhadores vão para o mercado para comprar coisas, como alimentos, bens e serviços essenciais. Assim, esse pessoal cria demanda de curto prazo. O planejamento tem que compatibilizar isso, investimento de longo prazo com investimento de curto prazo para que não tenhamos inflação.
Hoje, acho que a prioridade brasileira seria investir pesadamente em agricultura, produção de comida, porque aí você afasta o risco de uma crise alimentar no Brasil, que poderia criar uma instabilidade política muito grande e uma instabilidade social. O resto a gente faz depois que sair o presidente do Banco Central, porque agora ele não vai deixar fazer nada, ele tem o controle, a taxa de juros na mão, e controla os grandes investimentos de longo prazo para fazer infraestrutura.
***
Leda Paulani – A primeira coisa que a gente precisa falar sobre essa proposta do arcabouço fiscal do governo Lula é que existem várias formas de você estabelecer controles sobre o comportamento das contas públicas. E a gente, mesmo antes é do teto de gastos, tinha dois outros mecanismos de controle. Um estabelecido pela é Lei da Responsabilidade Fiscal e o outro chamado Regra de Ouro. Então, a gente já tinha mecanismos de controle. Digo isso porque sempre que a gente conversa, sobretudo com economistas ligados ao mercado, ou aqueles mais ortodoxos, eles vão entender que foi com o teto de gastos que o controle sobre as contas públicas começou a existir no Brasil. Isso não é verdade, não é?
Pelo contrário, pelo menos desde o Plano Real, sobretudo depois da adoção do regime de metas de inflação, a gente tem um controle muito afinado, e muito persistente, do comportamento das contas públicas. Persistentes porque ele é feito muito no detalhe, sempre são regras que têm que ser respeitadas pelos gestores e assim por diante.
O que aconteceu foi que com o golpe – eu chamo de golpe a saída da presidenta Dilma – entrou em vigência, através do Michel Temer, que usurpou o lugar de presidente, aquele programa deles, do PMDB, que se chamava “Ponte para o Futuro”. É um programa caracterizado por um ultraliberalismo, ou seja, um liberalismo levado às últimas consequências e que implica, portanto, em um projeto para reduzir o tamanho do estado brasileiro. É isso que estava em jogo ali.
É evidente que numa regra do teto de gastos tão estúpida como era aquela, em uma década a gente teria um Estado completamente atrofiado, incapaz de cumprir minimamente com as suas obrigações para com um país tão desigual e tão fraturado socialmente, como como é o nosso. Só que isso não aparece na imprensa. Esse é o problema, pois a imprensa tem um papel enorme nessa história toda, nisso que eu chamo de camisa de força, que, bem ou mal, envolveu essa proposta da Fazenda apresentada agora.
A imprensa mostra como se as contas públicas brasileiras estivessem numa situação de descalabro, como se a relação dívida/PIB estivesse numa escalada absolutamente sem freios e, então, era preciso uma medida como teto de gastos. Foi assim que apareceu na imprensa essa história. A imprensa, a grande mídia corporativa sobretudo, compra essa avaliação e essa narrativa 100%. E não só nos seus editoriais, na opinião que eles, enquanto veículos de comunicação, expressam, mas também com relação às pessoas que eles convidam para falar sobre o sistema. Veja que são sempre as mesmas pessoas, sempre os mesmos economistas ortodoxos, sempre aqueles agentes vinculados ao mercado financeiro, analistas do mercado financeiro e assim por diante.
Então, uma regra que fazia parte de um de um projeto ultraliberal que tem como objetivo último reduzir o tamanho do Estado brasileiro, nem que fosse pela violência. Isso quer dizer que o Estado pequeno para cuidar da população pode ser forte e violento, falo isso porque o Estado mínimo, muitas vezes, é entendido como Estado fraco e não, não é fraco.
Pois bem, havia esse projeto, mas tudo aparece como se fosse uma mera questão técnica, era um problema que tinha que ser resolvido, uma questão de economia e que o teto de gastos ia resolver. E o que que aconteceu com ele? De fato, ele nunca foi respeitado. O governo que esteve inteiramente sob a lei do teto de gastos foi o governo Bolsonaro e o governo Bolsonaro reiteradamente desrespeitou. Ele furou o teto de gastos em 700 bilhões de reais ao longo do seu mandato. Tudo bem que houve a pandemia e nós mesmos, todos os progressistas, lutamos muito para que o Auxílio Emergencial fosse pago, sob pena de colocar nossa população numa situação desesperadora. Mas ainda assim, por exemplo, em 2022, ano em que a pandemia já não estava mais exercendo toda pressão, se furou o teto de gastos em 140 bilhões de reais.
Assim, o teto de gastos nunca foi usado e sempre serviu como arma, sempre serviu como álibi, como argumento para constranger o governo Lula desde que venceu as eleições. Veja o mercado aí exigindo. Por isso, digo que houve uma grande habilidade do pessoal, sobretudo da Fazenda, da equipe do ministro Fernando Haddad, quando entra na discussão no Congresso, ainda antes de tomar posse, pois conseguiram tirar o teto de gastos da Constituição. Aliás, que era uma outra estupidez sem tamanho, né? Imagine se a regra de controle fiscal tem que estar na Constituição. Não, não fazia sentido. E essa equipe conseguiu que regra fiscal, qualquer que fosse, fosse aprovada ou sancionada por lei complementar. Isso já foi uma grande vitória. Outra grande vitória foi a própria aprovação da PEC da Transição, que liberou 140 bilhões de reais para governo Lula poder minimamente cumprir as suas promessas de campanha.
E sobre o arcabouço fiscal, me parece que a equipe da fazenda conseguiu dar nó em pingo d’água. Conseguiu fazer um arranjo minimamente aceitável pelo mercado financeiro e, ao mesmo tempo, dando espaço para que o presidente Lula pudesse colocar em vigência seu programa de governo, que tem, enfim, todas as implicações em termos políticas públicas, políticas sociais que a gente sabe.
Por isso considero que o arcabouço fiscal tem muitas virtudes e alguns problemas. Mas eu acho que isso tudo foi feito, essa engenhoca bem pensada, com toda a inteligência e o brilhantismo das pessoas que estão lá com o Fernando Haddad e dele próprio, dentro de uma camisa de força que a gente não precisaria estar vestindo. Chegamos nessa camisa de força dos interesses da riqueza financeira que são predominantes no Brasil há mais de três décadas e da grande mídia corporativa, que sempre foi a parceira primeira dessa gente.
Luis Nassif – Está faltando ao meio acadêmico começar a conceituar melhor quem é Lula. Se tem o Lula que entra em 2003 e vai até 2008, em 2008 temos uma crise econômica mundial e emerge um outro Lula. Este, em dois anos, entra para a história não só do Brasil, mas do mundo porque tira o Brasil da crise da forma mais rápida possível.
O Lula 1 teve uma fundamental importância nas políticas sociais, mas não ousou romper com o estabelecido. Então, é bom a gente separar o perfil dele: há um estadista e um pacificador. O estadista é aquele que quer redesenhar um país, que tem um projeto de desenvolvimento, um projeto de país. Temos vários casos na história nesse sentido. Já o pacificador não tem essa pretensão. Ele é um sujeito da paz, é cara que veio para tentar somar e para melhorar as condições existentes, mas sem rupturas. É o Lula que emerge agora no terceiro governo.
Lula, agora, veio cumprir um papel histórico de salvar a democracia brasileira com sua eleição, mas ele vai se revelando, cada vez mais, um conciliador. Esse plano, o arcabouço fiscal, revela muito isso. Ou seja, repete um discurso da mídia, do mercado e deixa o Banco Central intocado. Tudo bem, você tem um conjunto de restrições como a falta de apoio no Congresso, mudança com a chegada da independência para o Banco Central, mas se percebe toda a estratégia de repetir o discurso hegemônico.
O que é um discurso hegemônico? Há um mercado, você tem que atender as expectativas do mercado, mesmo que você não concorde teoricamente com o sistema de metas inflacionárias. A cabeça do mercado está fechada, você não pode ir contra a cabeça do mercado. Pode até tentar corrigir, aumentando a arrecadação em cima do setor produtivo, que, aliás, tem seus benefícios indevidos. Mas é justamente aí que há um discurso do mercado livre. É evidente que esses setores produtivos têm os seus benefícios indevidos. Não se discute isso, mas quando você vê a estratégia que foi montada começa a perceber algumas coisas.
Quando Lula vai para fora do país se percebe que a diplomacia dele deu um passo gigantesco, como agora, na viagem para a China. Com relação à Rússia, eu acho ele escorrega um pouco, porque se o Brasil quer ser um mediador não pode tomar posições. Mas o problema mesmo é quando se olha para as questões internas e não se vê ousadia nenhuma.
***
José Carlos de Assis – O fato é que temos várias travas na economia que foram colocadas aí pelos neoliberais e é muito difícil para um governo progressista, qualquer que fosse esse governo, romper com essas travas. Foi deliberado, não era uma coisa para o Lula. Era uma coisa para qualquer presidente progressista. Eles se precaveram para que, se numa eleição democrática se colocasse no poder um presidente progressista, haveria as travas na Constituição.
Eles querem liquidar com o Brasil, é deliberado. São políticas em favor das classes dominantes, em favor das elites e contra o povo. Essa basicamente é a condição política sobre a qual o Brasil vive hoje, uma coisa simplesmente revoltante.
Eu ouvi outro dia Lula falando que vamos ter que esperar, pois daqui um ano e meio esse presidente do Banco Central sair. Então, se baixa a taxa de juros, para valer, pelo menos se contorna algumas dessas travas constitucionais, ou então você tira tudo junto, tira travas monetárias e fiscais através de um expediente qualquer.
A outra opção é esperar daqui a quatro anos, com o povo mais consciente para formar uma maioria parlamentar para gente conseguir isso. Do contrário, o Brasil, que tem as maiores e melhores condições para ter um desenvolvimento acelerado nos próximos anos, vai continuar em estagnação, continuar com grandes partes do país em situação de miséria, vai continuar subdesenvolvido, vai continuar com alto desemprego, vai continuar com todas essas mazelas que a gente conhece e que estão sendo acumuladas ao longo de séculos.
***
Leda Paulani – É engraçado, até um pouco ironia da história, porque no primeiro mandato do presidente Lula, quando não existia a lei da autonomia do Banco Central, a taxa de juros chegou a ficar em 26,5% ao ano. Isso lá no comecinho, em 2003, porque a taxa de inflação é anualizada, tinha acelerado, estava em torno dos 12%. Só que havia tido uma especulação muito grande em 2002 por conta justamente da perspectiva de o Lula ser eleito presidente e o mercado fez um "banzé", fez uma algazarra. Isso acabou, via efeito especulativo, provocando uma imensa desvalorização do dólar, tendo impactos na inflação.
Nessa época, o Banco Central não tinha essa autonomia operacional que ele tem hoje, ou seja, o presidente da República que assumisse colocava lá no Banco quem quisesse. Aliás, o presidente Lula de agora, esse Lula 3, é o primeiro presidente que está sofrendo as consequências desta lei da autonomia operacional do Banco Central. Ela foi aprovada no final de 2021, para começar a funcionar no final de 2022. Quem entrasse, iria ficar até os dois anos do próximo governo. Só que quem ficou foi o mesmo presidente que já estava lá, que era o escolhido do próprio Bolsonaro. Então, Bolsonaro nunca teve que trabalhar com um presidente do Banco Central que não foi ele quem escolheu.
Veja que, assim, o presidente Lula tem que trabalhar com um presidente que não foi ele que escolheu, com cujos posicionamentos ele não concorda e tem que aguentar até o final de 2024. Essa é a situação que existe institucionalmente a partir da aprovação dessa lei da autonomia operacional.
Lá atrás, não havia toda essa conjuntura e, apesar disso, sobretudo no governo Lula 1, foi feita uma política monetária muito dura. Só não teve maiores consequências porque a gente vivia, em nível internacional, um momento de bonança. Tivemos um período de crescimento muito forte depois de décadas na economia internacional, puxada sobretudo pela China e, também, pela recuperação da economia Americana. Foi um respiro que permitiu que o governo Lula conseguisse fazer políticas sociais de alto impacto e que ele, depois, inclusive se reelegesse e saísse do segundo governo com mais de 80% de aprovação do governo.
Agora que o Lula tem uma visão mais desenvolvimentista do que ele tinha quando assumiu o governo na primeira vez, muito pressionado pelo mercado, ele não pode colocar em marcha aquilo que ele imaginaria poder fazer. Isso porque existe a lei da autonomia do Banco Central. Se pensarmos do ponto de vista de uma perspectiva mais progressista, é uma situação muito ruim, porque a gente tem poucos graus de liberdade para fazer, por exemplo, investimentos públicos.
Falo em investimentos públicos não só porque são absolutamente necessários, mas porque eles têm um efeito multiplicador muito forte na economia. Há vários estudos econométricos que demonstram isso. O gasto que tem maior efeito multiplicador é gasto do investimento público, que justamente puxa o investimento privado. O investimento privado sozinho não vem.
Luis Nassif – No meio do caminho paira a sombra tenebrosa do Roberto Campos Neto [presidente do Banco Central], dos 13,75% de taxa Selic e de uma paralisia do governo para enfrentar esse problema. Isso é terrível, não tem como avançar com esse cenário. Já se tem a explosão de recuperação judicial que não gera recuperação efetivamente. Com um piso de 13,75% de juros ao ano não tem empresa que se recupere. Temos o BNDES querendo estabelecer linhas mais baratas para a pequena empresa, só que Roberto Campos Neto já disse que, se houver qualquer subsídio do BNDES, vai aumentar a taxa de juros. Ou seja, estamos na nas mãos de um burocrata, é o chamado homem comum que se encanta com o poder e, na outra ponta, temos as reclamações do Lula, sem nenhuma estratégia para tentar reverter esse cenário. No máximo, ele vai conseguir, até o ano que vem, reduzir em dois pontos a Selic.
Esse é o ponto, temos o pacificador que está vindo aí [o presidente Lula]. E o mercado que já começa a pressionar Roberto Campos Neto. Essa conjugação de fatores internacionais e internos poderia levar o Brasil ao salto que nos faltava. Mas não espere ousadia do Lula, ousadia dos estadistas. Espere a responsabilidade social, a pacificação, alguns escorregões como esse apoio à Rússia, querendo ser o mediador da guerra com a Ucrânia – olha, para ser mediador pode até pensar isso, mas não pode manifestar. Por enquanto, eu acho que teremos que esperar até o segundo semestre para ver até que ponto essa estratégia do ministro Fernando Haddad [o novo arcabouço fiscal] traz algum coelho na cartola, como algo que nós não percebemos até agora. Mas, por enquanto, temos o Lula pacificador, não é o Lula estadista não.
No ano passado, Roberto Campos Neto foi escolhido o melhor presidente de Banco Central do mundo. Não sei por que, pois é o maior desastre que eu já vi em termos de presidente do Banco Central desde Gustavo Loyola, no começo do Plano Real, porque ele jogou a taxa de juros para 2%, provocou uma explosão no câmbio. Depois, joga para 13,75% [ao ano] e não quer arredar pé. Então, temos uma crise no mercado de varejo por conta de juros, uma crise no mercado de alimentos e vai ter crise nas FinTechs. Aliás, já começou essa crise, o sistema bancário está com problemas por conta de desse casamento de taxas e de prazos e não se faz nada.
A submissão que se tem ao discurso hegemônico do mercado é tão grande que você tem sujeitos ditando suas regras. Por exemplo, o dono da CNN, Rubens Menin, que também é dono da Construtora MRV, construtora de casas populares que cresceu com o Minha Casa, Minha Vida, e do Banco Inter, cujas ações estão lá para baixo. Quando se assiste a CNN, só vê economista de mercado defendendo a Selic de 13,75%. Outro dia, no Twitter, o Menin fez um protesto, primeiro, pedindo desculpa por criticar o Banco Central e, depois, disse que essa taxa de juros está desestabilizando a economia. E está realmente!
***
José Carlos de Assis – O esquema criado pelo Fundo Monetário Internacional para entrarmos num acordo para pagar a dívida externa era basicamente o esquema de reduzir a demanda interna, com isso reduzindo a produção, e também criar desemprego. Essa é a origem da nossa crise. Não é provocada principalmente pela dívida externa no fim dos anos 70.
Só que, depois disso, sobretudo no governo Lula, nós fizemos grandes superávits comerciais e reservas internacionais. Nós dispensamos o Fundo, mas em função do domínio de uma tecnocracia, completamente vendida aos interesses internacionais e vendida ao mercado financeiro. Continuamos seguindo os chamados conselhos do Fundo Monetário Internacional, sobretudo através do chamado consenso de Washington, que estabeleceu os tais parâmetros para a política fiscal monetária, que era de fazer superávit primário, que, por sua vez, resultou depois em teto orçamentário.
Isso não é equilíbrio fiscal, é contração monetária do lado da moeda. A política do Campos Neto é essa política, uma política de 40 anos, anacrônica, sobre a qual nós estamos submetidos. E por que não se consegue sair fora dela? Porque ela está cravada na Constituição. É preciso uma maioria de dois terços no parlamento para você mudar alguns aspectos essenciais.
***
Leda Paulani – Tenho um amigo, o professor André Singer, da ciência política da USP, que diz o seguinte, e eu acho que ele tem razão: "a lei que determinou a autonomia operacional do Banco Central é a cereja do bolo do projeto da direita, da extrema-direita, desse ultraliberalismo".
É verdade, porque realmente, hoje, o Banco Central funciona como um quarto poder. Veja: quem é que não precisa dar satisfação de suas decisões, das suas iniciativas, a ninguém? Bom, o próprio presidente da República, óbvio. Ainda assim, ele tem os outros presidentes dos outros poderes e que trabalham junto com ele. Esses também, incluindo o presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, também não precisam responder a ninguém. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário, os seus presidentes, as suas autoridades últimas, não respondem a ninguém. Por isso eles são os presidentes desses três poderes.
No entanto, o presidente do Banco Central também não responde a ninguém. Ele faz aquilo que ele acha que deve fazer e não importa que isso seja uma coisa contestada. Aliás, hoje, por muita gente. O próprio mercado financeiro acha que é um absurdo essa taxa de juros onde está.
Mas qual seria a solução? Tirar o presidente do Banco Central. Fácil de falar, difícil fazer, porque, dentro dessa lei, só o Senado é que pode destituir o presidente do Banco Central. E isso, se eventualmente o Senado chegasse a essa conclusão de que o presidente do BC deve ser substituído, teria que ser o resultado de uma requisição do Poder Executivo para o Senado. Com certeza se avaliou politicamente e se percebeu que não havia espaço para uma coisa desse tipo, infelizmente.
Isto posto, significa que os interesses financeiros, associados à preservação da riqueza financeira e à continuidade da sua valorização, nunca estiveram tão representados e tão fortes na política brasileira, na economia política brasileira quanto hoje. Isso porque toda a atuação do Banco Central, sobretudo no que diz respeito à condução da política monetária, depende das expectativas do mercado financeiro. E isso é característico desse arranjo. O mercado financeiro, quando não gosta de um governo, vai fazer aquilo que se chama de "desencorajem das expectativas". Desencorajar as expectativas significa que se está prevendo um crescimento da taxa de inflação e, para enfrentar isso, o Banco Central eleva a taxa de juros.
Em suma, eles sempre tiveram o queijo na mão, a faca estava um pouco dividida e agora está inteiramente com eles também. Acho que a equipe do Ministério da Fazenda pensou: "bom, dado esse quadro, o que que podemos fazer?" E aí acharam uma solução em que se pode lá mudar um outro parâmetro, mas que foi uma solução muito inteligente dado esse quadro. Mesmo assim, dentro desta camisa de força que é essa situação da autonomia operacional do Banco Central, que na realidade não é uma autonomia operacional, mas é uma independência política, o Banco Central acaba impondo seu desejo para quem estiver lá no comando do Ministério da fazenda.
***
José Carlos de Assis – Sobre o que a professora Leda disse de o presidente Lula ir ao Senado para destituir o presidente do Banco Central, eu gostaria de acrescentar que, para que isso acontecesse, deveria se fazer uma grande mobilização social no Brasil. Estamos vendo em dois países democráticos, na França e em Israel, mobilizações sociais gigantescas contra ações que se colocam contra os interesses do povo.
Tenho falado muito com dirigentes sindicais para dizer que é preciso que se preparem para uma mobilização. Busquem as lideranças dos grupos identitários, mulheres, negros, homossexuais, índios, entre outros, e agendem essa mobilização para pôr esse cara para fora do Banco Central. Assim, o mercado não tem como reagir. Não vejo outro caminho.
Ou é preciso esperar por uma eleição, daqui há três anos e meio, em que poderíamos tentar mudar o Congresso. Mas temos que fazer isso já, temos que aproveitar a situação de desconforto que a maioria da população está tendo ainda como consequência do que foi o governo Bolsonaro.
Leda Paulani – Com essa situação institucional e essa situação das contas públicas a gente não tem espaço para investir. Quer dizer, vai haver mais investimento do que se tinha, pois não vinha havendo nada de investimentos, ou seja, algum espaço vai ter, algumas dezenas de milhões de dólares, mas é muito pouco. É como uma gota de água no oceano daquilo que seria necessário para gente, de fato, a partir de um projeto nacional, estruturado nas questões relacionadas à sustentabilidade ambiental, entabular um crescimento sustentável ambientalmente e junto com as políticas públicas, políticas sociais que caracterizaram os governos do PT e que tem um impacto social grande. Junto disso, seria preciso fazer mudanças estruturais, e foi o que não foi feito nas outras duas gestões. Nessas outras gestões [petistas], começamos a fazer políticas de alto impacto, políticas sociais muito pesadas e efetivas, só que dentro de uma moldura institucional em que o protagonismo, do ponto de vista dos interesses, continua a ser o da riqueza financeira. Não se mexeu, em absoluto, nisso. E agora, quando há uma consciência maior disso por parte do presidente Lula, existe essa trava institucional.
***
Luis Nassif – Aí, temos um problema, um “nó de caroço”. Há um pacificador como Lula, uma pessoa que, dentro dos limites, vai melhorar os programas sociais, têm possibilidades que se abrem com essas mudanças no aparelho e na economia mundial. Mas não vejo esse arrojo por aqui.
Temos uma circunstância que ocorre de século em século. Ocorreu na Independência do Brasil, ocorreu no pós-guerra: é o aparecimento de duas potências, permitindo que se negocie. Foi o que fez Getúlio Vargas, negociou primeiro com os alemães e, depois, com os americanos. Foi uma mudança nas cadeias produtivas globais. Foi também como o Juscelino Kubitschek fez quando trouxe a indústria automobilística. Ou seja, é ter uma visão muito objetiva do que o Brasil quer nesses acordos comerciais.
Essa viagem à China [realizada pelo presidente Lula em meados de abril] foi excelente, mostrou que o Brasil quer transferência de tecnologia. Esse negócio de entregar o mercado brasileiro sem barganhas, sem nada, não funciona. É preciso transferência de tecnologia, transferência de tecnologia exige mapeamento das pesquisas no Brasil para poder assimilar a nova tecnologia e exige condições e pré-condições para fornecedores brasileiros. E temos a questão da Amazônia e tudo que abre o leque. É um mudo fantástico de oportunidades.
***
José Carlos de Assis – Eu aproveitaria isso, se eu tivesse alguma influência no governo, para fazer um planejamento de longo prazo, para se aplicar daqui há dois anos. E, em curto prazo, eu investiria em bens e serviços de consumo popular para assegurar a estabilidade social e a estabilidade política.
Quem viu o que aconteceu em 8 de janeiro sabe o risco que o país corre com os 40% de bolsonaristas que ainda estão por aí. E eles podem fazer qualquer coisa, se eles tiverem uma razão para voltar a fazer uma instabilidade social, do tipo que foi feito em janeiro, são um risco para o país.
Toda essa costura que o Lula fez em termos político-partidário para montar um governo pode ir para o espaço. Se você tiver uma crise alimentar, por exemplo, você cria uma instabilidade social e arrebenta com a estabilidade do governo dele. Quer dizer, não vai adiantar ele ter 37 ministérios, cada um representando não sei quantos partidos. Isso não vai aguentar, não vai suportar uma crise social. Por isso, a prioridade absoluta é alimentos e bens de consumo popular. O resto a gente faz depois e, alguma coisa, a gente pode fazer em associação com a China, que é a nossa saída para o médio e longo prazo na questão da tecnologia, da reindustrialização.
Sou muito favorável a um modelo que foi adotado no governo Geisel, que era o governo tripartite. Você juntava o Estado, o setor privado brasileiro e o setor privado estrangeiro e fazia grandes empreendimentos, sobretudo industriais. Só que com essa liderança tríplice enfrentava problemas de longo prazo.
***
Luis Nassif – Alimento tem. Nós temos um problema sério que é o emprego. Segundo dados do IBGE, o setor que mais desempregou nos últimos anos foi o setor que mais cresceu economicamente, que foi agricultura, uma área profundamente mecanizada. O governo tem um programa para agricultura familiar que pode ajudar, mas além de ter alimentos, precisa ter renda. Para ter renda, você tem que ter investimentos. Assis colocou bem os investimentos populares, investimentos em infraestrutura, tudo. Mas daí ele volta para o campo central que é a questão do orçamento. Como vai ficar o orçamento com esse plano fiscal do Haddad?
A variável fiscal é a despesa, esse é um ponto um ponto complicado. A variável de ajuste é despesa, e sem você conseguir colocar investimentos em indústria, em infraestrutura, tudo o que tem multiplicadores nos próximos dois anos, não se consegue recuperar a economia nem a política.
Outro ponto é a questão do enfraquecimento do Lula perante o Congresso. Teremos Congresso em que o governo não tem maioria nenhuma. Como Lula vai poder enfrentar o poder do Congresso, do Lira Neto e de outros? Quando você tiver uma situação de bem-estar público de forma nítida. Quando que você vai ter esse Estado de bem-estar? Quando você recuperar a economia. Quando você vai recuperar a economia? Vamos esperar até o Roberto Campos Neto sair para começar a trabalhar?
Então, temos um tempo político aí que é descosturado do tempo econômico. Por exemplo, esse plano de ousar mais. Poderia, se têm 100 maneiras de ousar mais, poderia estabelecer limites de investimento público bem maior, não precisaria prometer para o próximo ano já o equilíbrio nas contas públicas com aquela margem de segurança.
Podemos pegar a questão das taxas longas, que é um ponto que define muito o custo do dinheiro, mas o Banco Central deixa solto. Pega títulos do Tesouro, negocia no mercado, traz da nas taxas longas e não interfere. Qualquer especulador vai lá, quando tem algum descontentamento com o governo, puxa as taxas e vê a mídia falar que todas as taxas estão subindo, sendo que o Tesouro poderia atuar, por exemplo, para amenizar esse ponto.
O ponto central da inflação brasileira, de muitos e muitos anos para cá, não foi nem oferta, nem demanda. É um negócio chamado câmbio, uma maluquice que surgiu lá atrás, mundialmente, com a teoria das metas inflacionárias e outras que coloca o câmbio como um fator de ajuste. Só que o câmbio é o que tem de mais relevante para investimento, inclusive externo.
Se uma empresa do setor produtivo quiser montar uma fábrica no Brasil, ela quer um câmbio estabilizado e competitivo. Isso porque ela precisa fazer uma projeção de quanto vai faturar em real e fazer uma projeção de quanto vai faturar em dólar. E o câmbio é o que faz a conversão do real para o dólar. Então, se passou a usar uma política econômica em que o ajuste é o câmbio, é uma coisa maluca. A inflação está aumentando, não tem nada de demanda e oferta. O que se faz? Aumenta a taxa de juros. O Banco Central, aumentando a taxa de juros, começa a entrar dólar. Entrando dólar, os produtos comercializáveis, os exportados e os importados, ficam mais baratos e, assim, caiu o preço à custa da manipulação de um dos preços fundamentais da economia.
Até o Brasil acumular reservas cambiais, isso era a pior jogada que já aconteceu com a economia brasileira, porque o que pessoal vinha, comprava e o dólar aí entrando. Se pagava dólar 3% ao ano, trazia para cá, convertia em reais e aplicava. Se chegou a aplicar em 40% ao ano aqui em reais, ou 15%, ou 20%. Quanto mais entrava dólar, mais o real ia se apreciando. Com o real se apreciando, na saída, o real poderia comprar mais dólares do que aqueles dólares que entrariam. O sujeito ganhava na taxa de juros, diferencial de taxa de juros e na apreciação do câmbio até o limite em que entrava numa crise cambial. Quando entrava a crise cambial, todo mundo saía correndo. Ocorria uma maxidesvalorização, vinha a inflação, o Banco Central era obrigado a aumentar a taxa de juros. O dinheiro voltava e voltava tudo de novo, aquele mesmo jogo que custou o que custou. Se tivesse pego esse dinheiro e investido em infraestrutura, teríamos estrada ladrilhada no Brasil inteiro.
Isso aí acabou, esse modelo acabou quando Lula conseguiu acumular as reservas cambiais. Agora nós temos o caso em que veio o mercado e joga com câmbio e com o Banco Central. Nós somos de um tempo em que o Brasil não tinha um tostão de reservas cambiais e o Banco Central, com Emílio Garofalo, conseguia, atuando no mercado, segurar o câmbio. Hoje, com 350 bilhões de reservas cambiais, o Banco Central deixa os especuladores entrarem no mercado e atuarem politicamente em cima do câmbio. É como se dissessem: “eu estou insatisfeito com a indicação de tal pessoa, puxa o câmbio. Agora fizeram o que eu quero, baixar o câmbio”. O câmbio virou um fator político.
Quando o Brasil vai sair dessa armadilha? Quando tiver limitações ao livre fluxo de capitais, que vai acontecer em algum momento no mundo porque isso aí arrebentou a economia mundial. Provocou bolhas especulativas em cima de bolhas especulativas, acabou com o crescimento que vinha desde [os acordos de] Bretton Woods.
***
José Carlos de Assis – Agora, uma coisa de que se fala muito é o processo de desindustrialização e da importância da reindustrialização brasileira. Isso depende fundamentalmente da política cambial. A desindustrialização foi um efeito da valorização do câmbio. As empresas passam a ter desincentivos para investir por causa do câmbio e incentivo a importar. Essa é a questão.
Tem um exemplo que eu gostaria de trazer sobre como funciona para valer a questão da inflação: você tem 33 milhões, segundo as estatísticas, de brasileiras e brasileiros com fome. Você tem 65 milhões em situação de falência alimentar. O que o governo faz? O governo dá dinheiro para as pessoas através do Bolsa Família para comprarem comida, principalmente. A pessoa vai ao supermercado comprar comida. Vamos supor que supermercado não tenha comida quando a pessoa chega lá. Então, você vai ter um desequilíbrio entre oferta e demanda. Quando você faz um programa consistente para enfrentar a fome, terá que considerar a questão tanto do lado da oferta quanto do lado da procura. Tem, assim, que incentivar a produção e, ao mesmo tempo, a demanda. Quer dizer, se estimula a compra, tem que incentivar a produção que é oferta. E aí o mercado se equilibra.
Temos muita produção agrária no Brasil agrícola, mas ela está concentrada em commodity, não é na área alimentar. Até há área alimentar de muita produção. Mas se você olhar os números do Plano Safra, que é quem investe em toda a agricultura brasileira, verá que o peso das commodities é muito maior que na agricultura familiar, por exemplo.
Esse é um grave problema, porque, embora se conheçam essas estatísticas por alto, só o efeito disso no mercado indica que há um desequilíbrio entre oferta e demanda, pois, do contrário, você não tinha 33 milhões de pessoas, mesmo ajuda do governo, em situação de fome. Não é porque não tem o produto, embora esse não seja o problema, que não terá impacto no custo de vida em geral. Se você tem um risco de demanda maior do que a oferta produtiva, terá um aumento do custo de vida. E isso é inflação, que não afeta só os pobres, mas a sociedade inteira.
Por isso, considero importante a prioridade na área da agricultura básica, sobretudo a agricultura familiar. Ela responde por cerca de dois terços da produção alimentar brasileira.
Assista a íntegra do debate: